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Paisagem e povoamento em «15 Poemas do Sol e da
Cal»
de Soledade Martinho Costa
Cada poeta retira da realidade a sua realidade –
isto é, denuncia, no modo como se apropria da paisagem geográfica e
humana, o sistema ou processo que preside à construção de sua realidade
poética.
Enquanto outros poetas usam o teatro, povoando os
seus poemas de protagonistas e mantendo a geografia como cenário,
Soledade Martinho Costa, por seu lado, elege a pintura como sistema e
articula nos seus poemas (como num quadro) a água, o sol, o vento, as
cores, a fauna, a flora, a paisagem, enfim…
Quem esqueceu os protagonistas dos poemas de Manuel
da Fonseca – a Nena, o António Valmorim, o Senhor António, o Francisco
Charrua, o Zé Gaio, o Julinho, o Zé Jacinto, o Manel da Água, a
Marianita ou a Maria Campaniça?
Quem esqueceu os protagonistas dos poemas de García
Lorca – a Preciosa, o Juan António, a Soledad Montoya, a Anunciacion de
los Reyes, o António Torres Herédia, o Pedro Domecq ou a Rosa la de los
Camborios? |
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Para Soledade Martinho Costa cada poema é um
quadro, uma paisagem que, pese embora o povoamento permanente (os
mendigos, os pastores, os ganhões, a fiandeira, o artesão) tem como
produto final a terra seca e atormentada – ela sim eleita
personagem última do poema.
Vejamos, ponto por ponto, como se constrói a
realidade do quadro – isto é, do poema:
Primeiro a água, veículo de uma alegria
dinâmica pelo seu aparecimento inesperado em contraponto com uma
situação de angústia. Ela é o arquétipo da pureza, um elemento de doçura
– intimamente ligado, desde a mitologia antiga, com a ideia da Mãe.
Depois o Sol com a sua majestade paternal,
símbolo antigo da força, do vigor, do entusiasmo íntimo. Veja-se o poema
«Algarbe» na página 25: «O avatar do tempo/ dormente / ao sol / no dorso
dos lagartos.»
Depois o vento, ar violento que se move e
serve de elemento condutor de vozes e de rumores que o ouvido do poeta
vai evocar. No poema tem um sentido activo, converte-se em noção
ambivalente: doçura e violência, pureza e delírio. Veja-se o poema
«Canto do vento» na página 14: «No sibilar do vento / manso, manso / um
nome paira leve / e se enamora / da vastidão morena»
Depois as cores (o branco do sal, o azul dos
pássaros, o verde das algas, das amendoeiras, das figueiras, das
alfarrobeiras, dos medronheiros, dos sobreiros e dos chaparros) que com
a flora (romãs, giestas, poejo, urze, esteva e rosas) e com a
fauna (gaivotas, lagartos, cisnes, melros, ralos, pardais) completam
o quadro de referências da paisagem.
E por falar em referências deverá assinalar-se que
enquanto a geografia de Manuel da Fonseca tem Beja, Cerromaior, Courela,
Montes Velhos ou Quinta Nova e a de García Lorca tem Almeria, Córdoba,
Granada ou Jerez de la Frontera, os poemas de Soledade Martinho Costa
cobrem uma geografia cujas referências não se concretizam em lugares com
nome.
Essa situação não lhe retira, porém, o carácter
concreto de uma poesia que procura objectivamente «o respirara dos
homens / e das coisas» num universo que, segundo os técnicos da economia
política se define pela «predominância da monocultura (trigo, azeite,
cortiça) provocando um desemprego temporário que se junta à falta de
indústrias e faz do Inverno um período de miséria e de sofrimento.»
Partindo do princípio de que não é possível sentir
a solidariedade com o que se ignora, este livro é, também, testemunho de
uma descoberta – o relatório de uma viagem pelo Sul.
Dizem os livros que «a obra de arte é uma mensagem
fundamentalmente ambígua com uma pluralidade de significados no convívio
de um único significante.» Mas a ambiguidade destes poemas de Soledade
Martinho Costa será talvez o seu ponto mais alto: por um lado o poema
testemunha o choque da ânsia de viver com a realidade social que torna
impossível essa vivência plena; por outro lado testemunha a ineficácia
dum projecto para alterar os destinos do Mundo – no poema e pelo poema.
Há, porém, uma saída, uma hipótese, uma possível
explicação para o fim último do poema: ser a voz da «terra seca e
atormentada» e desta «gente à espera dum milagre» que vá redimir décadas
de servidão e de sombra, de silêncio e de desespero.
E ser a voz da terra e da gente é afinal o sonho
último de todos os poetas, na múltipla verdade que a poesia lhes dá
povoada embora pela força de uma política que não é só política, de uma
sociologia que não é só sociológica e de uma filosofia que não é só
filosófica.
E perante a possível adjectivação excessiva destes
poemas surge uma pergunta inevitável: «Não será também excessiva a
extensa secura da terra, esta vertical sede de séculos, entre sol,
silêncio e cal? |
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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Portugal,1951).
Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do
Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil.
Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting",
"Remate", "Atlantico Expresso"... Autor de "Universário", "Jogos
Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem
como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e
"As palavras em jogo", entre outras. É secretário da Associação
Portuguesa de Críticos Literários.
Vive em Lisboa.
Contacto: jcfrancisco@mail.pt |