REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 07

 

Paisagem e povoamento em «15 Poemas do Sol e da Cal»
de Soledade Martinho Costa

Cada poeta retira da realidade a sua realidade – isto é, denuncia, no modo como se apropria da paisagem geográfica e humana, o sistema ou processo que preside à construção de sua realidade poética.

Enquanto outros poetas usam o teatro, povoando os seus poemas de protagonistas e mantendo a geografia como cenário, Soledade Martinho Costa, por seu lado, elege a pintura como sistema e articula nos seus poemas (como num quadro) a água, o sol, o vento, as cores, a fauna, a flora, a paisagem, enfim…

Quem esqueceu os protagonistas dos poemas de Manuel da Fonseca – a Nena, o António Valmorim, o Senhor António, o Francisco Charrua, o Zé Gaio, o Julinho, o Zé Jacinto, o Manel da Água, a Marianita ou a Maria Campaniça?

Quem esqueceu os protagonistas dos poemas de García Lorca – a Preciosa, o Juan António, a Soledad Montoya, a Anunciacion de los Reyes, o António Torres Herédia, o Pedro Domecq ou a Rosa la de los Camborios?

 

 
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Maria Estela Guedes  
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JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

 

15 Poemas do Sol e da Cal

– Uma Leitura

                                                                                     JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Para Soledade Martinho Costa cada poema é um quadro, uma paisagem que, pese embora o povoamento permanente (os mendigos, os pastores, os ganhões, a fiandeira, o artesão) tem como produto final a terra seca e atormentada – ela sim eleita personagem última do poema.     

Vejamos, ponto por ponto, como se constrói a realidade do quadro – isto é, do poema:

Primeiro a água, veículo de uma alegria dinâmica pelo seu aparecimento inesperado em contraponto com uma situação de angústia. Ela é o arquétipo da pureza, um elemento de doçura – intimamente ligado, desde a mitologia antiga, com a ideia da Mãe. 

Depois o Sol com a sua majestade paternal, símbolo antigo da força, do vigor, do entusiasmo íntimo. Veja-se o poema «Algarbe» na página 25: «O avatar do tempo/ dormente / ao sol / no dorso dos lagartos.»   

Depois o vento, ar violento que se move e serve de elemento condutor de vozes e de rumores que o ouvido do poeta vai evocar. No poema tem um sentido activo, converte-se em noção ambivalente: doçura e violência, pureza e delírio. Veja-se o poema «Canto do vento» na página 14: «No sibilar do vento / manso, manso / um nome paira leve / e se enamora / da vastidão morena»

Depois as cores (o branco do sal, o azul dos pássaros, o verde das algas, das amendoeiras, das figueiras, das alfarrobeiras, dos medronheiros, dos sobreiros e dos chaparros) que com a flora (romãs, giestas, poejo, urze, esteva e rosas) e com a fauna (gaivotas, lagartos, cisnes, melros, ralos, pardais) completam o quadro de referências da paisagem.

E por falar em referências deverá assinalar-se que enquanto a geografia de Manuel da Fonseca tem Beja, Cerromaior, Courela, Montes Velhos ou Quinta Nova e a de García Lorca tem Almeria, Córdoba, Granada ou Jerez de la Frontera, os poemas de Soledade Martinho Costa cobrem uma geografia cujas referências não se concretizam em lugares com nome.

Essa situação não lhe retira, porém, o carácter concreto de uma poesia que procura objectivamente «o respirara dos homens / e das coisas» num universo que, segundo os técnicos da economia política se define pela «predominância da monocultura (trigo, azeite, cortiça) provocando um desemprego temporário que se junta à falta de indústrias e faz do Inverno um período de miséria e de sofrimento.»    

Partindo do princípio de que não é possível sentir a solidariedade com o que se ignora, este livro é, também, testemunho de uma descoberta – o relatório de uma viagem pelo Sul.

Dizem os livros que «a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente ambígua com uma pluralidade de significados no convívio de um único significante.» Mas a ambiguidade destes poemas de Soledade Martinho Costa será talvez o seu ponto mais alto: por um lado o poema testemunha o choque da ânsia de viver com a realidade social que torna impossível essa vivência plena; por outro lado testemunha a ineficácia dum projecto para alterar os destinos do Mundo – no poema e pelo poema.

Há, porém, uma saída, uma hipótese, uma possível explicação para o fim último do poema: ser a voz da «terra seca e atormentada» e desta «gente à espera dum milagre» que vá redimir décadas de servidão e de sombra, de silêncio e de desespero.

E ser a voz da terra e da gente é afinal o sonho último de todos os poetas, na múltipla verdade que a poesia lhes dá povoada embora pela força de uma política que não é só política, de uma sociologia que não é só sociológica e de uma filosofia que não é só filosófica.

E perante a possível adjectivação excessiva destes poemas surge uma pergunta inevitável: «Não será também excessiva a extensa secura da terra, esta vertical sede de séculos, entre sol, silêncio e cal? 

 

 

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO (Portugal,1951).
Prêmio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores. Colaborou no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses do Instituto Português do Livro. Poeta. Possui uma antologia da sua poesia publicada no Brasil. Jornalista, colaborou entre outros em "A Bola", "Jornal do Sporting", "Remate", "Atlantico Expresso"... Autor de "Universário", "Jogos Olímpicos", "Iniciais", "Os guarda-redes morrem ao domingo", etc., bem como de antologias como "O trabalho", "O desporto na poesia portuguesa e "As palavras em jogo", entre outras. É secretário da Associação Portuguesa de Críticos Literários.
Vive em Lisboa.
Contacto: jcfrancisco@mail.pt

 

 

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