As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de
longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se rainha das aves, logo
engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.
Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos
que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora
praticada sobre um ser
vivente.
Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, desde a águia-real, de peito branco e bico adunco,
até ao colibri que é mais pequeno que a mais pequena flor. Vieram os
papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os
patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as
perdizes e as galinhas da Guiné, todas louçãs na sua vestimenta preta de
bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico e plumagem verde,
azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os
céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e por fim
chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.
Reunidos todos, a garça Macute dedarou que era necessário escolher um
presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida
no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.
A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.
Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
- Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que
elas não são aves. Com efeito, desde que o mundo é mundo, não há notícia
de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam
e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.
Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um
certo burburinho, prontamente reprimido pela presidente que declarou ir
pôr o caso à votação.
A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
- o problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas
têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão.
Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se
serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre
os bichos que andam e não entre os que voam.
Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da
palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora, foi
decidido que as avestruzes não eram aves,
mas sim bichos que andam.
Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião,
e Macute começou:
- As aves são neste mundo em que vivemos, os
animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós
sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente
respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração
oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na
bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de
agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode
ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a
todos os bichos que andam.
Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas
as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.
Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que deu
mostras de grande contentamento e ainda disse:
- O que vocês querem é que haja guerra para
poderem comer a carne dos que morrem.
Logo o jagudi, gritando “traidor”, deu-lhe uma sapatada e
em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! Gritava a águia-real, receosa de não ter mão na
assembleia.
Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro
orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora
grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas
se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para
que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois,
uma comissão de inquérito.
O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o
comportamento dos bichos que andavam para com
os bichos que voam demonstrava crueldade e propôs que o
caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que
possui discernimento mais do que suficiente para resolver
o conflito.
As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem
falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem.
Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem,
dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.
O papagaio, como falador de grandes conhecimentos,
presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho
homem para fazer as suas lamúrias.
Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou
que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa
justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.
A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem
ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça
surgira um plano.
Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam
e que é, contra o que se pensa, o elefante.
Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia
parte o seu melhor conselheiro, o macaco.
Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante
que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e
que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos
fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento
do bicho homem que tudo sabe.
- Na verdade, na verdade, retorquiu o homem. Mas
há uma queixa e é necessário saber quem tem razão.
Parece-me que seria melhor que os bichos que andam
nomeassem um delegado e os que voam, outro, para
trazerem à minha presença as alegações de cada parte e
as provas a produzir.
Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias
se realizaria o julgamento do caso.
Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande
assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o
maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um
e a esquerda a outro, propôs que o representante de cada parte ocupasse
a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à
sorte.
Constituído o Tribunal, entraram o macaco como
advogado dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo
seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e
cinco testemunhas.
Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e
pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua
justiça.
Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza,
citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens,
o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. Empertigou-se o
macaco, abriu os braços como já vira fazer em comícios do bicho homem e
analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no
amor, na justiça, na piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal
ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal, estouvado e
brincalhão como todos os pardais.
Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição
das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam
nada saber do assunto.
Concedida novamente a palavra aos advogados, estes
excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram
chorar a assembleia e, logo a seguir, fizeram-na rir desabridamente e
foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara
intuição científica, classificou o homem de seu primo.
O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos
menores detalhes, comentou em aparte: primo, mas degenerado... Depois
desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho
homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é
ponto assente a existência de tal parentesco.
O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao
cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça cheia de
considerandos e que começava por afirmar que “em virtude de se não ter
provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça,
profiro a seguinte sentença: julgo a acusação improcedente mas, tendo em
atenção que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e
para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e
para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam
e que andam”.
Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta
pobreza das partes.
Todos os animais, tanto os que voam como os que
andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado
no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que
“começara a escravatura”.
Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso
(recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou
encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados
por sua indústria.
A verdade é que com o correr dos anos as palavras do
macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou
nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não
tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais
apetite.
Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão
prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda
ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com
sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada,
mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha
justiça proverbial. É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é
certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em
utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer
a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção
social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para,
então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.
Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo
pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho
homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz
de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa. |