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Toda reminiscência, interiormente,
evoca, queira-se ou não, o conceito de memória. O que é a memória? Um
arquivo que armazena blocos desordenados de fatos, sensações e
acontecimentos vividos exclusivamente por um eu? Ou, de fato, conforme
já nos colocou Bergson, a memória seria pequenos pontos que, em si
mesmos, contêm todas as nossas lembranças? Inacessíveis? Até que ponto
elas mantêm fluida nossa subjetividade? Enfim, em muitos aspectos a
memória ainda está por ser revelada, desvelada. Duas coisas, certamente,
já temos como postulados basilares: a memória identifica o ser. É
fundamento do ser. Um outro ponto: quando o ser humano rememora está
sempre condenado aos fatos de acordo com aquele momento em que está
lembrando. A memória, sabe-se, filtra, hierarquiza, seleciona. A memória
em si escapa. Condenação humana.
Pois bem: numa manhã abri a porta
de meu apartamento e no meio de minhas correspondências (contas para
pagar e outros tormentos de nosso cotidiano) um envelope diferente,
vindo de Portugal, destacava-se. Abri ansiosa. Chão de Papel com
uma delicada dedicatória de Estela Guedes. Dizia um grande escritor
alemão, que, muitas vezes, adiamos uma leitura, um livro, porque sabemos
que seu conteúdo deverá fascinar. Contudo, não pude adiá-lo. E, desde os
primeiros momentos, sabia que estava diante de uma literatura densa,
cativante. Estava realmente diante de um livro que era uma reserva de
vida. Sim, os bons livros são reservas de vida, diria Giorgos Seféris.
Reservas potencializadoras. |
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Nada de imagens líricas ou choros
piegas, muitas vezes, evocando momentos que se foram e não voltam mais.
Não. Eu estava diante de um livro cuja literatura materializou um
passado vivido, em parte, na África.
Chão de Papel não evoca
fatos ordenados, feitos a um diário ou com identificações precisas,
cronológicas. Eis um ponto forte do livro: todos os poemas são jogados
para os espaços dos leitores. Deve-se imaginar quase tudo.
Destaco, para efeito de
comentários, A Formiga-Branca.
Que tempo seria?
Provavelmente, o das chuvas
Aquele em que as plantas
ressuscitam
Com pujança, e os animais,
tendo alimento,
Mais se reproduzem.
Foi hoje, façamos de conta.
A poetisa não lembra exatamente
do momento cronológico, mas pelo acontecido deduz que seria o das
chuvas. Não importa quando tenha sido: “Foi hoje, façamos de conta”. O
que importa não é a data em si, mas o fato tal como ela o lembra no
momento de sua escritura.
Descreve as cenas de uma recepção
de casamento. Todos saboreando a canja e outras iguarias. De repente os
insetos, as formigas brancas estragando tudo. Num primeiro momento
pode-se pensar, como eu, que a poetisa está brincando. Mas o poema, no
fundo, lembra cenas amargas. Prejuízo. Decepção. E somente restou o pato
assado de uma Dona Leonor. Talvez uma mulher mesquinha que não quis
abrir o pato para todos e pretendia levá-lo de volta. Não sei. São
espaços que a poetisa nos deixa. Ou Dona Leonor pressentia o que viria a
acontecer e o pato salvaria o jantar?
De qualquer forma todos os poemas
deixam espaços que deveremos completar com nossa imaginação. Este tipo
de literatura é justamente aquele que nos abre as comportas da
imaginação, dos necessários exercícios de fantasia. A literatura de
Estela é feita de silêncios. São os silêncios reveladores, indicadores,
apenas. Não há certezas. Somente possibilidades nos espaços que
completamos.
Contudo, o maior mérito de Chão de
Papel está naquele das grandes literaturas: a escritora, por intermédio
de sua perspectiva subjetiva, materializa momentos de sua vida que não
pertencem somente a sua vida, num eu egoísta. Não. Haja vista que não há
datações inúteis. Apenas um contexto africano, definido, mas que jorra
imagens poéticas universais. E essas imagens pertencem a todos.
Retomei a leitura de Chão de
Papel, diversas vezes, e, em alguns momentos, pensei, por conta de
minhas associações subjetivas, somente por isso: quando Estela teria
escrito Chão de Papel? Foram poesias planejadas e durante anos ela as
retomava e arrumava? Será que houve algum fato que a impulsionou a
escrevê-las? Por quê? Será que Estela fez um retiro somente para
escrever Chão de Papel? São questões, bem sei, que beiram o processo de
criação da artista. Mesmo que ela revele o processo, somente ela, a
poetisa, pode produzir o efeito final da arte, somente o escritor, com
sua sensibilidade incomum, está a serviço da verdade. Por isso, na
Grécia Antiga os poetas, conforme se sabe, eram denominados os mestres
da verdade.
Chão de Papel, estrelas
miúdas, pontos brilhantes nos infinitos labirintos da memória, resgata
um passado ressignificado e, como tal, restabelece, em parte, uma
possível intersujetividade há muito tempo perdida no perverso cotidiano
(intencionalmente provocado pelos poderes) da humanidade. |