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Os textos não nascem do chão. Nem são objectos
imóveis: cruzam-se, casam-se, emigram, mudam de género e de regime de
veridicção. Em De unitate intellectus, o Aquinata qualifica Averróis de
deprauator e mesmo de peruersor do pensamento de Aristóteles (De unitate
intellectus contra averroisteas, 2 linha 155; 5, linha 392, p. 302 e
314). O caso é que, se o contexto belicoso, que tem a verdade por
objecto, convém à História e à Dogmática, já à ficção de nada serve. Não
há autor que não per-verta (entenda-se, traduza) os textos sobre que
consciente ou inconscientemente inscreve a sua obra. Dizia Picasso que
os bons artistas copiam, enquanto os génios roubam. Consciente ou
inconscientemente, roubar, transformar, combinar, reciclar são operações
que podem fazer duma obra uma obra de arte.
Os antigos distinguiam três tipos de histórias: a
factual (praktiké), a falsa (pseudé) e uma terceira que se ocupava de
acontecimentos considerados “como verdadeiros” e definidas com o termo
plásmata, que quer dizer moldadas, plasmadas, imagens, figuras. Este
tipo de história é a do verdadeiro e do falso porque produz efeitos
reais, sem pertencer à categoria da acção histórica verdadeira da res
gestae. Para os antigos, este terceiro tipo de história era reservado ao
teatro, à arte, ao espectáculo que na antiga Grécia exerciam sobre o
público uma influência catártica e duradoura. Mas já na Roma imperial os
plasmata deixavam os espectadores insatisfeitos, que tinham necessidade
de coisas mais fortes, mais verdadeiras para serem envolvidos
emocionalmente. Os espectáculos dos gladiadores respondiam perfeitamente
a esta exigência, colocando a morte em cena. Não já o “fingimento” de
morrer, mas a morte “verdadeira” de homens que se combatem em jogo.
Ora, é de morte que fala este Tango Sebastião de
Maria Estela Guedes. Fazer cruzar-se três histórias, três militares e
três causas a defender, é a proeza textual desta peça, composta em
grande parte por poemas (belíssimos) já publicados pela autora. Como
personagens, além de D. Sebastião, S. Sebastião e Mishima, a Máscara,
que é como a figura da recepção e do comentário das falas de cada
personagem. Vale a pena lembrar que persona significa na origem
“máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma
identidade social. O escravo, em Roma, sem antepassados nem máscara, nem
nome, esse não podia ter uma “pessoa”, uma capacidade jurídica (servus
non habet personam).
Voltemo-nos para o tríptico que a peça encena. D.
Sebastião é o Capitão de Deus e El-rei de Portugal, um rei virgem, que
sonha com a conversão dos mouros, mas não quer casar, nem morrer cedo. É
a personagem que mais traços mostra do puer (adolescente), glabro,
chorão, mas, ao mesmo tempo, muito defendido do “assédio” do santo que,
por momentos perde a compostura estática e ganha “carne”. S. Sebastião (sebastos
= venerável) é a figura do “soldado da fé”, venerado como mártir e
baluarte contra a peste. A Depositio martyrum (354) e um passo de
Ambrósio de comentário ao salmo 118 (PL, XV, col. 1574) são os únicos
documentos mais antigos que testemunham da existência do santo. O que
sabemos dele reduz-se ao martírio romano em fins do século III, à
sepultura in catacumbas e à data da festa, 20 janeiro. A passio lendária
influenciou a arte, a literatura e iconografia. A Passio S. Sebastiani (PL,
XVII, coll. 1111-50) data da metade do século V - um romance histórico
em que abundam os prodígios e as descrições do suplício. Sebastião
entrou na guarda pretoriana tornando-se cedo agradado do imperador
Diocleciano e Maximiano que o fazem guarda pessoal. Assistia aos
cárceres e enterrava os mártires. Por razões de crença religiosa (Jacques
de Voragine em La Légende Dorée conta que Sebastião destruiu duzentas
estátuas de ídolos) é condenado: ligaram-no nu a um cepo e cravaram-no
de flechas (“quasi ericius ita esset irsutus ictibus sagittarum”). A
Escola catalã de Mazzan de Sas mostra-nos uma imagem de Sebastião como
um oficial militar (Madrid, Museo Lázaro Galdino (séc XV)). Aqui acaba a
“verdade” histórica e começa a lenda. “Há mil versões da história de
cada santo”, diz a Máscara.
Como S. Sebastião, D. Sebastião (o desejado do V
Império) também pretende ser um destemido herói da fé que parte em
combate contra os Mouros. Como Mishima, o último samurai, tragicamente
quis ser o herói que defende a divindade do Imperador, suicidando-se.
Três loucos amorosamente “santos”, como Sartre diria de Genet. O mártir
que nos vem na onda dos anos sessenta, Yukio Mishima, cuja vida trágica
testemunha da passagem da acção à comunicação literária é o primeiro a
trazer as extremas consequências do facto que os livros por si só não
bastam para mudar a vida de quem quer que seja, se não são acompanhados
por um acto exemplar de forte impacto mediático. Mishima organiza uma
espécie de exército privado, a Associação dos Escudos, a Tatenokai,
constituída por cem jovens que se referem à tradição japonesa dos
samurais. A 25 de novembro de 1970, com quatro dos mais fiéis da sua
associação, ocupa o quartel-general, em Tóquio, e tenta um golpe de
estado. Do terraço do gabinete do general, frente a um milhar de
soldados que alucinadamente o seguem, faz o seu último discurso que visa
sublevar a opinião pública contra a colonização americana. No fim põe
fim à vida com um espectacular harakiri. Depois de se ter esventrado, é
decapitado por Hiroyasu Koga que decapita igualmente o seu amigo íntimo.
Na senda de Mishima, o austríaco Rudolf Schwarzkogler, protagonista de
acções artísticas que reproduzem imagens de operações cirúrgicas,
suicida-se em 1969, arrancando a pele em público. “Sou um mártir”,
repete Yukio Mishima várias vezes nesta peça; mais afirma que quis
morrer por amar a morte: esse é a seu drama e a sua glória. Proust
mostra como uma paisagem ou um rosto humano se transformam em objecto
estético no momento em que, sendo visados por um observador, resistem,
escapando a qualquer reconhecimento, não oferecendo senão uma parte ou
um momento do que os constitui como paisagem ou rosto. É esta parte
imperfeita e decepcionante que desencadeia a busca do sentido. Ou da
morte.
Dar vida a uma figura é um topos da Renascença. A
virtuosidade dos pintores não é estranha à erotização da figura nua do
santo. Que pode a devoção contra a volúpia da carne? Se o corpo do santo
é o atractor que pode atingir o olhar do espectador, é porque deve ter a
capacidade de o visar, como o faria uma flecha. Visar o corpo de
Sebastião é admirá-lo, encará-lo como um objecto de contemplação e um
objecto de desejo. Como dissimular a nuditas naturalis de um homem de
carne e de sangue? Como travar a comoção que um belo corpo pode
suscitar, sem véus que o cubram, nem rugas que o desfigurem? Não
tardarão a aparecer, de vara na mão, os zeladores da Contra-Reforma que
vituperam a nudez de efebo apolíneo, sem flechas, de belas carnes, em
que converteram o santo. Em 1584, Lomazo, no seu Trattato della pintura
escreve: “Gli spettacoli lascivi d'uomini, si possono contaminare gli
animi delle donne; e però si fanno a santo Sebastiano, quando è saetato
all'arbore, le membra tutte tinte e sparse di sangue per le ferite,
acciò che non si mostri ignudo, bello, vago e bianco” ( Lomazzo G.P.,
Trattato della pittura, in Scritti sulle arti, vol. 2, Florence,1973, p.
320. Traduction empruntée à Arasse D., op. cit., p. 62). Assim se prova
o poder da imagem (a estampa com que Mishima se comove).
A visão singular de um homem cavalgando uma águia
remete-nos para uma página dos amores de Júpiter, na mitologia. Júpiter,
seduzido pela beleza do jovem efebo Ganimedes, arrebata-o ao céu
dissimulando-se na aparência duma águia. A função reservada a Ganimedes
é como sabemos o de se tornar o “copeiro” favorito dos deuses no Olimpo,
vide as representações deste mito nas Metamorfoses ilustradas de Ovídio.
O rei não tem de si a melhor imagem. Mishima vê-se como um sapo verde,
venenoso. Poderão tentar o heroísmo na morte e, nesse gesto, competir
com o santo. Resta o ideal da beleza que o santo encarna e que alimenta
o seu desejo e devoção. De várias maneiras se pode enfrentar a morte:
tendo filhos, visando o heroísmo e a glória (a não confundir com a
notoriedade mediática), a conversio ad philosophiam. Nem o rei nem o
santo têm filhos. Imortaliza-os o heroísmo guerreiro ou o heroísmo da
santidade. Que haverá na representação pictórica do santo (de Piero
della Francesca, Benozzo Gozzoli, Andrea Mantegna e Guido Reni) que
permita uma leitura homo-erótica do mesmo? Que pode ligar S. Sebastião
aos manifestos gay ("Proclamação de S. Sebastião, patrono dos gays”) ou
ao romance de Gabriel d’Annunzio, o Mistero di S. Sebastiao? Na peça
pergunta-se a dado momento: “qual a causa da sua condenação à morte”?
Estela Guedes dá-nos uma explicação discursiva intrigante: “Ele não foi
condenado por ser homossexual, mas, se não fosse homossexual, hoje não
teríamos nós história nenhuma para contar”. Melhor seria dizer: a
literatura não vive do jogo da verdade e da mentira. A camuflagem é o
seu vestido, e por baixo deste vestido as tramas do desejo fazem do
falso verdadeiro, da verdade parecer, do que não parece, segredo. Manhas
da veridicção e dos fantasmas que o desejo encena. A verdade romanesca
não é a verdade histórica. A identificação mimética é bifronte. A
estratégia é a ciência da intersubjectividade, diz um grande semiólogo,
Paolo Fabbri.
Estela Guedes é, como a Máscara diz na cena 2:
criadora e reprodutora. Esta é uma peça marcada pela desconstrução de
lugares comuns e da tradição sobre a homossexualidade (“assumir”), dos
vários pontos de vista sobre a questão (Budistas, cristãos), das
estratégias do que se poderia chamar a retórica da imagem (e que a
máscara personifica), da injúria e da chacota: “o pavão fica sem motivos
para abrir a cauda”, a causa (“a homossexualidade é a última grande
causa humana a defender”). Esta é uma peça de teatro dentro do teatro (a
exibição de artes marciais, v.g.) com um final em que à poesia se
mistura a dança (o tango) a que só a imaginação da autora podia dar o
toque erótico, o ritmo. Mishima, que é um homem do teatro, confessa ter
começado a usar a máscara por causa do pai, casando, tendo dois filhos e
praticando as artes marciais. Três “heróis” se encontram nesta peça,
unidos por três formas de loucura: a conquista de África aos Mouros, a
fé em Deus, a crença na divindade (do Imperador). Várias questões
continuarão em cena: haverá ainda “alguém que deseje ardentemente
vestir-se de sanctitas”? (Maria Gabriela Llansol, O jogo da liberdade da
alma). Que fazer do heroísmo? Que verdade atribuir às “Confissões de uma
máscara”? Dirá sempre o desejo a verdade? O mártir dá a vida para
defender a liberdade da alma, para defender um emblema, ou a honra.
Rebelde à morte é o homem nobre. Sim, “O nome é a minha máscara”, dirá
Mishima, ou melhor, Kimitake Hiraoka (uma versão moderna de S.
Sebastião). Larvatus prodeo. Não nu, mas des-vestido. Expostos os três
às derivas do messianismo, do patriotismo, das sombras da fé. |