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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 06
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Este pequeno estudo é dedicado a Viseu e aos
Viseenses, que conheceram como o 1.º Duque em Portugal, o Senhor Duque
de Viseu - o Infante D. Henrique - que fará, a 13 de Novembro deste ano,
550 anos que faleceu. Aqui será apenas muito simbolicamente celebrado. O
Infante não tem apenas no trabalho que desenvolveu com homens e mulheres
de sua Casa, dos seus feudos e da importantíssima Ordem que administrou,
um significado ímpar que se revele em Tomar, Lagos e Viseu. Na verdade,
foi um cidadão de todo Portugal no século XV (1).
A figura do Navegador,
que tem sido tão falada e escrita há, pelo menos, quatro centúrias a
esta parte, acha-se, ainda hoje, envolta em certo mistério, causador de
múltiplas interrogações acerca de episódios diversos da sua vida. Viveu
66 anos, percorreu três reinados e um longo período de Regência e, ao
que leva a crer, foi um homem que se enquadrou perfeitamente nas
variadas conjunturas quatrocentistas, saindo delas, praticamente, sem
beliscadura alguma (2). |
DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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TriploII - Blog do TriploV |
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JOÃO SILVA DE SOUSA
Do Infante a D. Manuel I
(1394/1502) |
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TriploV |
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Figura carismática, com
toda uma multiplicidade de actos políticos, económicos, sociais e
religiosos que a ele ficaram a dever-se, a sua fama envolve uma
biografia de mistério e de algum cinzentismo, pelo que nunca é demais
voltar à tentativa de o biografar, dado que estamos sempre a encontrar
dados novos e possíveis interpretações diferenciadas.
Desta feita, vamos
tentar apontar para os reflexos da sua acção empreendedora e singular,
meio século depois, quando governava D. Manuel I, seu sobrinho neto mais
novo e herdeiro de sua Casa, a qual já havia transitado para o pai, D.
Fernando, e para seus dois irmãos, D. João e D. Diogo (3), embora D.
Manuel, herdeiro da Casa da família viesse a usar o título de Viseu-Beja
e herdasse os senhorios de Serpa, Moura e Covilhã e o cargo de
administrador das Ordens tuteladas pelo Infante e pelo sucessor deste,
seu sobrinho e afilhado, o Infante D. Fernando, irmão mais novo de D.
Afonso V. Referimo-nos às Ordens religiosas e militares de Cristo e
Santiago.
Foi, no entanto, o acaso que acabou por
satisfazer os objectivos do Príncipe Perfeito que pretendia, entre
outros, tomar para a Coroa a Casa de Viseu, na concretização de uma
política centralizadora sui generis. Com efeito, D. Manuel I, ao
herdar, inesperadamente, o referido feudo e ao tornar-se, contra
tudo quanto se previa, rei de Portugal, mais uma vez cumpriu um dos
singulares mas totalmente inesperados desideratos do já então
falecido D. João II (4).
Para o efeito, seria possível traçar o caminho
político da Comarca da Beira pontificada pelo Navegador e pela Ordem que
este administrava (5), ou incidirmos na Comarca do Entre-Tejo-e-Guadiana,
prolongando a investigação para Beja, Moura e Serpa dos já citados D.
Fernando, D. João e D. Diogo e para a Ordem de Santiago com profunda
implantação por ali, liderada que fora por aqueles. |
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Mas ficámo-nos pelo Algarve (6), - podia ser outra
qualquer comarca do Reino – pois este ano assinalamos o da morte do
Infante que lançou as bases para a construção de um dos maiores impérios
do mundo, por onde a nossa Cultura se estendeu e consolidou (160-2010).
A D. Henrique ficou a dever-se a parte mais difícil da questão: o
conhecimento de novas terras, cruzando o Mar Oceano, num espaço
totalmente ignorado por todo o mundo cristão, onde seria possível
encetar uma intrincada e manifesta troca de Culturas que se notabilizou
a partir, sobretudo, de 1498. Mesmo a própria Índia que, muito
provavelmente, não estaria nos seus objectivos, o facto é que o
conhecimento do seu caminho por mar ficou a dever-se às muitas milhas de
costa já percorridas, até 1460, pelos seus barcos e pelos seus homens,
quedando-nos, então, pela Libéria, quase rasando a linha equatorial.
Numa fase em que o Algarve perdia a passos largos o
anterior protagonismo das Descobertas marítimas, em que Lagos não era
mais a plataforma portuária por excelência das Conquistas do Norte de
África e da Expansão, as suas gentes, ouvindo os avós historiarem os
feitos dos mais famosos cavaleiros de Ceuta, Arzila e Tânger e dos
navegadores que debandaram o Bojador, o Rio do Ouro, o Cabo Verde e a
Guiné, dificilmente aceitariam perder os privilégios que a fama antiga
lhes havia proporcionado, guindando o governo do Algarve à situação
política, social e económica cimeira. E aqueles que não tiveram a
possibilidade de virem a tornar-se os protagonistas mais directos desses
tempos, como crianças, velhos e mulheres, trabalharam em diversas
actividades de bastidores, não menos úteis, para que nada faltasse nas
embarcações daqueles que partiam, sem saber se regressavam, contribuindo
em muito para a fama de Lagos, sede, em 1454, da Feitoria dos tratos de
Arguim.
Eram os pescadores, petintais e marinheiros que
reivindicavam junto de D. Manuel I a segurança e as imunidades que
tinham já do tempo do Infante.
O caso particular do
Algarve era talvez o mais difícil de solucionar, porquanto, ao tempo do
1.º Duque de Viseu e, sobretudo, quando, a partir de 1434, ele aí veio a
acolher-se por mais tempo – o que não está provado que assim fosse -,
escolhendo-o como local de residência preferencial (?), é difícil
percebermos que as populações da área tivessem cruzado os braços e
admitissem perder os seus privilégios que advinham de uma agitação
comercial e da actuação de aventureiros ímpares, no País. A Comarca
estava organizada da forma seguinte:
a) Os Cabos de S. Vicente e de Sagres eram observatórios
únicos para poderem pôr-se em prática os conhecimentos científicos
que se haviam adquirido;
b) A Vila do Infante ou a Vila do Bispo e a Raposeira eram
casarios não muito alargados mas onde se hospedavam cartógrafos de
várias proveniências e outros conselheiros e amparos científicos do
Infante – também os sabemos em Lagos e, seguramente, em Silves;
c) Lagos era um enorme palco de partida e chegada das mais
variadas tipologias de embarcações com os mais diversificados
produtos e gentes;
d) De Vila Nova de Portimão a Tavira, a extensa área era
habitada por quantos, paralelamente, teriam uma intervenção activa e
em muito contribuiriam para a dotação dos vasos de mar, dos
marinheiros, soldados, cientistas e missionários;
a) Em Silves tinha Paços, cujos alicerces foram
recentemente identificados;
b) A ponta Leste, da Ordem de Cristo, intervinha directa e
prontamente em tudo quanto D. Henrique requeresse ou requisitasse;
c) Reconhecendo os méritos das gentes da Comarca, enquanto
Silves, como cidade, sede de bispado, pontificava na região, de
longa data, outros lugares, mais simples, houve que se elevaram a
vilas, como Portimão (por 1470)(7); o Alvor, a primeira vila nova a
ser criada por D. Manuel I, desmembrando-a, por carta de 28 de
Dezembro de 1495, do termo da cidade de Silves (8). Elevadas à
categoria de Vilas Notáveis, entre 1475 e 1525, foram Tavira (9),
uma cidade sem bispo e Lagos, elevada igualmente a cidade sem bispo
(10), além de Faro (11). Loulé foi honrada por D. Manuel mas só
mereceu oficialmente o epíteto de grande vila, por carta de 26 de
Maio de 1573 (12).
Lembram, então, os
marinheiros, nos Capítulos Especiais de Lagos (13), às Cortes de D.
Manuel I de 1498, que se achavam umas 800 almas isentas, de longa data,
do pagamento de impostos que o concelho lançasse, o que era frequente,
pois havia infra-estruturas cuja reconstrução era imperiosa, existindo
verba para o efeito.
As terças das rendas do
concelho resultavam, de ordinário, da necessidade de aplicadas nas obras
dos muros de Lagos e, se havia anos em que não eram gastas, o monarca
seu antecessor, D. João II, mandava recolhê-las, não podendo as verbas
transitar de uns anos para os outros. Nas Cortes de 1502, ainda Lagos e
Silves (14) se queixavam desta política que se lhes afigurava totalmente
desastrosa para as localidades, de um modo geral(15). O pedido vai no
sentido de tais montantes poderem acumular-se e virem a ser utilizados
quando lhes parecesse mais oportuno, aplicando-se o remanescente anual
da verba no restauro das muralhas do castelo da vila. Correspondiam a 5
000 ou 6 000 reais brancos por ano e não era justo despenderem-se
noutras rubricas e em diferentes locais, estando agora o castelo muito
danificado, na eminência de vir a desmoronar-se. Assim, os montantes
correspondentes às ditas terças deveriam permanecer em Lagos para
poderem passar de uns anos para os outros, destinando-se, quando
houvesse verba suficiente, à total recuperação das infra-estruturas
(16).
Um dos muitos
privilégios que detinham, de um modo geral, os moradores das cidades,
vilas e lugares algarvios era a da isenção da aposentadoria, da qual já
D. Afonso V os dispensara e que consistia em dar guarida, alimentar,
fornecer novas montadas e roupas de cama a quantos atravessavam,
regularmente, o Algarve no seu caminho para África. Imaginamos que o
número seria imenso e que as populações distraídas dos seus serviços
comuns e aptas a uma requalificação como aguadeiros, calafates,
armeiros, tanoeiros, oleiros, trabalhadores na secagem e na salga do
peixe e da carne, no fabrico do biscoito, na cubagem do vinho e da água,
entre muitas outras actividades, não estiveram nunca dispostos a ver-se
sobrecarregados de imposições como aquela, em que as práticas abusivas
dos grandes senhores e dos oficiais do rei e daqueles tornavam em
autênticos esbulhos. Nos Capítulos Especiais de Tavira, datados de
Lisboa, de 24 de Março de 1498, os vizinhos desta vila queixavam-se
também de quanto pagavam em pão (quer dizer em cereais: trigo, centeio,
cevada e aveia), pela aposentadoria dos corregedores e juízes de fora
(17). E dispensa ou autorização, privilégio que se concedesse a uma
localidade seria, obviamente, assegurado às demais na mesma Comarca.
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D. Manuel defere os
pedidos apresentados, ordenando que “sse guarde o priujlegio”,
excepto os que “leuarem nosso mamdado ou da Raynha”. Quer dizer:
salvo os que aí se deslocassem para fazer correição ou no desempenho
de outras funções, a mando do soberano ou da mulher deste. E as
gentes de Lagos vêem-se de novo potenciais intervenientes no
eventual reconhecimento da importância histórica da vila e dos seus
vizinhos (18). Lembram importantes factos relativos ao Infante e ao
seu determinismo, concretamente ao trato na Ilha de Arguim e à
Guiné, aos escravos, ao ouro e à malagueta (19). Àquelas
reivindicações, acresce a isenção de tutorias e curadorias, que não
interessavam de todo aos mesmos, dado o peso da tarefa e a sua
grande responsabilidade, podendo, inclusive, virem a ser chamados a
ressarcir os tutelados, no caso de haver suspeitas de uma gestão
deficiente ou irregular. E, relativamente, às normas poucos teriam
conhecimento delas (20), como seria de prever. Relembram, então, o
monarca que havia sido fixada uma pena pecuniária a quantos fossem
contra estas disposições antigas: seis mil reais brancos. Esta verba
deveria ser entregue nos cofres do concelho para as obras e acções do
bem comum. (Cap. 1.º): “assy como ssam pontes e fomtes calçadas caminhos
e outras cousas” (21). Alude-se ainda à situação de pobreza de muitos
dos vizinhos (aponta-se para 50 pessoas), que não podem pagar nada de
seu. Como sempre o grande argumento é o despovoamento inevitável da
zona, se acaso se lhes retirarem os privilégios que entre D. João I
(1415) e D. João II (1474/1481-1495), quando, como parte do dote, tornou
a vila património da rainha (1471) (22), lhes havia deferido, “ pois nem
se podera fazer nemhuua Cousa do bem comuun e nobreçimento da villa”, o
que causaria grandes danos, como o referiam, insistentemente, os seus
moradores. Era um argumento de peso, mas já muito batido.
Esta situação devia
abranger os moradores de Sagres, tal como sucedia no tempo do Infante D.
Henrique. Mas, ao contrário disso, os vizinhos preferiam morar na
Raposeira, aldeamento por perto com outras condições habitacionais e de
vida, despovoando a vila da Sagres e o seu promontório e gozando das
referidas benesses. A situação não é de todo irregular como poderia
parecer à primeira vista, dado que a vila da Raposeira que era da
propriedade henriquina, contava com os mesmos privilégios, sendo estes,
então alargados a Sagres, a S. Vicente e a Lagos (23).
Estamos no Barlavento
algarvio, a cujos habitantes, cinquenta anos depois, o rei não pode nem
deve negar-se a ter em consideração as imunidades que D. Henrique
conseguira obter para os seus apaniguados, mordomos, amos e servidores
em geral, neste alargado e importante rincão meridional, observatório e
local de troca de informações entre mareantes incipientes e os mais
experimentados. O primeiro a ter de acatar as ordens do soberano é o seu
alcaide (24), que, segundo a lei, “deve seer leal, porque ElRey, nem o
Reigno, nom sejam deserdados do Castelo, que elle tever” (25).
À semelhança de um
antigo privilégio que D. Henrique obtivera do rei de Portugal para a
isenção de impostos de bens de natureza alimentar (peixe, sal, frutos e
leguminosas) oriundos das ilhas atlânticas (26), também o Algarve vem
reivindicar um direito que já tinha de trás e que consistia na isenção
da dízima de “todo o pam e legumes que a esta villa [de Lagos] vem por
mar de fora do Regno”. E de dentro também. Era um benefício de que
gozavam, confirmado de dez em dez anos, e que D. João I havia concedido
ao Navegador e a seus criados. D. Manuel I defere-o, por mais uma década
(27).
Lagos tinha uma frota piscatória notável e bem
apetrechada. Foi desenvolvida também pelos começos do século XV, dado
que o peixe era imprescindível na dotação das naus e caravelas com
destino a África. A pesca, como monopólio henriquino, foi-lhe outorgada,
faseadamente:
a) A 10 de Janeiro de 1421, ela
ficava-se pelo rio Ródão, onde, sob determinadas penas, o monarca
proibia alguém de fazer canal ou colocar estacada a fim de reter o
peixe (28).
b) A 25 de Setembro de 1433, D. Duarte
concedeu a D. Henrique o exclusivo da pesca do atum no Algarve, com
todos os direitos, excepto a sisa percebida da venda que ficaria
ressalvada para a Coroa (29).
c) A juntar ao atum, vieram as corvinas
e a sardinha, desde 1 de Junho de 1436 (30).
d) Igualmente de 25 de Setembro de
1433, o Eloquente doava-lhe a dízima nova da pesca no mar de Monte
Gordo (31).
e) A 4 de Dezembro de 1449, D. Afonso V
doava ao Navegador as Berlengas e o Baleal, nas proximidades de
Peniche, mais a captura do peixe (32).
f) Desde cedo, talvez mesmo antes de
1434, o Infante deteve o exclusivo das pescas nas Ilhas Atlânticas e
na Costa de África, juntamente com a pesca do coral e dos cetáceos
donde extraíam as peles e o óleo para o fabrico do sabão branco e
preto de que tinha o respectivo monopólio (33).
g) Finalmente, a 27 de Outubro de 1443,
D. Pedro outorga-lhe o Cabo de Trasfalmenar e os respectivos
direitos de pesca (34), ou seja o actual Cabo de S. Vicente e uma
légua ao redor.
No que se refere a Lagos, o pescado era capturado na
sua baía e ao longo da costa até à praia de Santa Maria da Luz, onde, em
1498, se viam navios castelhanos interessados na indústria e navegando
por perto, exactamente como dantes. Ora, como sempre, todo o pescado, em
geral, era trazido ao porto de Lagos para que se vendesse, à semelhança
do que se fazia em Setúbal e noutras cidades e vilas portuárias. Tal
como se verificara em anos atrás, seria dada aos Lacobrigenses a
hipótese de comercializarem o peixe que, sendo pouco, ficaria muito
caro. O preço é indicado: 90 a 100 reais brancos o milheiro (decerto,
neste caso, referiam-se à sardinha), enquanto que os estrangeiros que o
carregavam o vendiam a 20 e a 30 e, por vezes, ainda por menor preço. A
situação tão actual, pasme-se, insustentável e inexplicável, teria de
ter a devida solução e o Venturoso, ante as queixas que lhe foram
apresentadas, ordena que tudo se fizesse, de então em diante, à
semelhança de como se procedia em outras partes do reino e quando o
Infante detinha a indústria, em regime de monopólio e exclusividade,
nesta mesma área.
Denunciam, então, o número imenso de animais de carga
(2 000 a 3000) que, de Castela, vêm carregar ao Algarve o peixe que
querem, isentos da sisa e de demais direitos. Assim, de Sagres a Lagos e
ao termo desta vila, serão os vizinhos das respectivas localidades quem
deve dar destino ao pescado que por aqui se mata, sobretudo a sardinha e
o atum. Lembram, a propósito, que o atum era “pexe de gramde preço”,
pelo que a par de Castelhanos, outros aqui chegavam com persistente
regularidade: Sicilianos, por exemplo, interessados na captura e isentos
do pagamento de quaisquer taxas.
Havia, efectivamente, leis e uma já antiga carta de
privilégios de mercadores estrangeiros que os habilitava e acobertava
nesta actividade, mas que deveriam ser revogadas, se é que não haviam já
sido substituídas, ao tempo do Navegador, onde e quando apenas actuava
quem tivesse permissão sua (35). Que tal se proceda, pois, como ao tempo
do Infante: assim rogam a D. Manuel I, que “sse alguus dos moradores
desta villa lamçarem sob lamço ou lamços que os mercadores estramgeiros
fizerem nos dictos atuuns e pescados e lhe forem aRematados que os
dictos vezinhos desta villa os possam tornar a vemder a quaeesquer
outras pessoas ssem pagarem nemhuua sisa nem outros dereitos elles nem
os que os delles comprarem e sejam framcos desta segumda vemda assy como
ho sam da primeira”. Quer dizer: que se os moradores da vila de Lagos
arrebatarem o peixe aos mercadores estrangeiros pelo preço que estes
pedem, que possam revendê-lo, mas, desta vez, tal como quando o
compraram, sem a sobrecarga de quaisquer taxas que deixavam de recair,
de ordinário, sobre o preço de venda e seus lucros.
A corrupção ia ao ponto de tais aí haver “que deste
djnheiro compram herdades e numca lhe foy nem he tomada comta por seer
cousa de gemte comuum”, ou seja por ser coisa de gente pobre, sem voz
para fazer ouvir-se, sem rosto por que não se conhece (36).
A par daqueles tipos de actuação tão contrários aos
interesses locais e do País em geral, os vizinhos de Tavira previnem o
soberano de algo que ele já sabia de longa data: ao Algarve deixaram de
aportar o açúcar e “mercadorias que deus daa” nas ilhas da Madeira, dos
Açores, de S. Miguel, mais concretamente, e de Santiago de Cabo Verde,
dado que o soberano autorizava que, daquelas partes, fossem directamente
carregadas nas embarcações estrangeiras com destinos vários, o que em
muito prejudicou as populações, porquanto, não vindo a Lagos como
outrora, fez diminuir a construção naval e, com ela, perderam-se as
costumagens, o que queria dizer que haviam desaparecido os direitos
alfandegários que, no tempo do Infante, quando este reivindicava os seus
direitos monopolistas, atingiam boa monta. Há que relembrar, entre
muitos outros, que os primeiros carregamentos de açúcar da Ilha da
Madeira a chegar a Bristol, data de 1456, a Dieppe, de 1479 e a
Marselha, de 1480. Havia, a par, que contribuir com a isenção de
impostos aos estalajadeiros e aos locais de venda dos produtos (37). O
traçado é referido como que passando por terras agora ermas: de Lisboa a
Évora e de Santarém para o Alentejo e de Santarém a Coimbra, até à
cidade do Porto, e de Beja a todo o Algarve (38).
E no que respeita à carne? É que o Algarve era
tradicionalmente tido (como ainda hoje) como um dos produtores da melhor
carne criada por particulares. Demos conta de normas antigas que
incentivavam o pastoreio, abrindo as fronteiras à transumância e
regulando o que fazer com o gado do vento, designação dada aos animais
que se perdiam e era achado por terceiros (39). Mareantes havia em Lagos
e no seu termo que tinham talhos cuja exploração não os favorecia
também. Referem que o repartidor não possuía jurisdição nem poder que
lhes fossem conferidos pelas Justiças dos lugares. Pelo facto, pedem ao
rei a nomeação de dois almotacés ad hoc (40), dado que o almoxarife, que
é um só, se arroga de toda a jurisdição do concelho, o que é contra o
foral (41).
Um outro privilégio local tinha a ver com
matérias relativas aos presos, ao imposto da carceragem, à
localização do cárcere e à condução dos presos (e presume-se que de
dinheiros públicos também). Desta feita, foi Vila Nova de Portimão a
despoletar os problemas múltiplos que com estes pontos mais
directamente se relacionavam (42). E mandou dizer que quando os
Corregedores vinham à vila e dela se iam, mandavam os vizinhos
conduzir os presos da sua cadeia e correição a Faro que são oito
léguas, pelo que atravessavam todo o termo de Silves e de Albufeira
que era da Ordem de Cristo. Ora esta situação era por demais
gravosa, demorada e perigosa e não se justificava. D. Manuel
determina, pois, que, como antes (em tempo de seu tio-avô) e de
então em diante, Portimão, Estombar e Alvor se revezem na condução
dos presos, desta forma, a saber: Portimão levará uma vez os presos
a Faro e outra a Lagoa; e daqui, os de Estombar e Alvor os conduzem
a Faro, nesta modalidade de giros umas vezes uns, outras vezes os
outros: por turnos, portanto!
Curiosamente, a juntar às feiras que já antes
referimos em terras henriquinas e administradas pelo Infante (Viseu,
Tomar, Tarouca e Pombal) (43), não nos havíamos apercebido da
existência de uma outra que ele explorava como forma de beneficiar
as gentes de Lagos e do Algarve em geral: trata-se da realização de
uma espécie de certame para venda do pão e dos legumes e algo mais,
com a duração de três dias: os primeiros antes que as mercadorias
pudessem ser vendidas a outrém e fossem para fora da Comarca. Seriam
dadas oportunidades para que, em regime de exclusividade, os seus
moradores as pudessem comprar primeiro, tal como “ho comçelho desta
villa d amtigamente teue por hordenamça per que se senpre usou por
tamto tempo que a memoria dos homeems nom he em contrairo”, que
todas as mercadorias que aportarem a Lagos, por mar e por terra, que
não haja mercador nem regatão que as nom possam comprar e assim
fiquem três dias para o povo as poder adquirir se quiser (44). Outra
feira havia em Faro que parecia desgastada, dado que os comerciantes
iam vender fora da vila (45).
Em causa, relativamente à feira de Lagos, estavam
produtos e artigos como, além do pão, o azeite, ferro, breu,
madeirame, têxteis e outras coisas as quais passam primeiro pelos
olhos dos rendeiros do soberano que as compram, clandestinamente, no
dizer dos procuradores de Lagos: “as tem secretamente compradas”
(como eles diziam), vindo a revendê-las por preços tão exorbitantes
que o povo as não podia comprar. Com a sisa a sobrecarregar o preço
dos artigos, estes ficam, efectivamente, por valores incomportáveis.
Ora esta situação vai contra o estatuído, ao qual nos referimos
acima, pelo que se solicita ao rei que sobrecarregue com multas
pesadas os que se acham com direito a ser os primeiros a
escolhê-las, contra a ordenação estritamente respeitada ao tempo do
Infante D. Henrique. Aliás, compreende-se que assim fosse, pois tudo
o que se discriminava nas queixas constituía bens de primeira
necessidade para as empresas marítimas e o sustento de mareantes e
artesãos. E quanto ao vinho, irregularmente introduzido de lugares
incertos e desacostumados, deveria ser derramado e as cubas
quebradas como sempre assim se fez, a fim de não prejudicar o vinho
produzido na terra, dado que “nom há outra nouidade de que todos
uiuem soomente por vinhas e metendo sse aquy uynho de fora seriam
nossas noujdades tam abatidas que nom tirarjamos dellas nemhuu
prouejto" (46): vox populi, vox Dei. Esta ordenação seria,
naturalmente, comum a todo o Algarve desde que D. Henrique fora
nomeado seu governador perpétuo e, mesmo antes, nas localidades do
Sotavento, com as comendas da Ordem de Cristo (Junqueira, Castro
Marim e Monte Gordo) (47), até ao Barlavento, à Raposeira. Como
terras suas próprias, ele detinha do rei de Portugal, sucessivamente
confirmado pelos monarcas seguintes. Tratava-se, agora e aqui, de
fazer com que D. Manuel não esquecesse as prerrogativas das gentes
algarvias que, pelo seu indomável espírito patriótico e de
protagonismo nas viagens marítimas em que foram pioneiros e na sua
preparação, deveriam gozar de iure e de facto. Outra das queixas
recaía sobre os escravos.
A escravatura ficou a dever-se às empresas
patrocinadas pelo Navegador (48). Pelo meio de tantas vantagens,
teria de haver também alguns momentos a denegrirem as nossas
aventuras além-mar. Embora devamos entender a situação enquadrada na
sua época, o facto é que nem Zurara, ao sublinhar, com veemência, a
figura do Infante, pôde deixar de pincelar um quadro horrendo, um
infeliz exemplo de um mercado de escravos em Lagos (49). A vila, ao
tempo de D. Manuel não esquecia a velha pintura que representava
gentes de feições tristes e de desolação que eram escolhidas como
coisas, com as quais podiam pagar-se dívidas, comprar-se outros bens
necessários, fazer-se doações … como se de animais ou alfaias
agrícolas se tratasse. Era também uma situação já antiga, esta de,
em Lagos, terem de lidar com os escravos de que “Recebemos mujtos
dapnos em uvas e fructas das vinhas e ortas E pumares”. Mesmo com
pesadas penas físicas que já se haviam experimentado, o facto é que
não se evitavam consequências tão negativas. Aqui a população de
Lagos quer ser ela mesma a castigar os escravos, pois parece-lhes
que outrem – os seus próprios donos ou alguém a mando destes –
tirava certos e abastados rendimentos com estas acções dos escravos,
que ficavam impunes. E a presente situação corria todo o Algarve,
como facilmente se compreenderá (50).
Com efeito, Faro, Tavira e Loulé, além de Silves
e Alvor têm uma palavra a dizer sobre o assunto. De um modo geral,
queixam-se daqueles que a mando de outrem, derrubavam árvores de
frutos e outras na almargem, onde se arrecadava o gado, solicitando
o estabelecimento de penas que eles mesmos propõem: para o escravo,
10 açoites; o seu proprietário pagaria 300 reais brancos se fosse
peão; se se tratasse de cavaleiro e daqui para cima sofreria a pena
pecuniária de 1 000 reais brancos, assim repartidos: metade para a
Chancelaria e a outra parte para quem os acusasse. Era um forte
incentivo à vigilância e à denúncia, dado que as populações e os
concelhos lesados nada recebiam, como, aliás, era muito comum.
Muito provavelmente encarregados de vistoriar a
actuação dos presos e dos escravos, dos respectivos encaminhamentos
e da captura dos mesmos em caso de fuga, surge a figura do besteiro
de monte. Tem, como os do conto, da câmara e a cavalo, um anadel-mor
que superintende na actuação dos vários anadéis em exercício nos
centros urbanos e nos respectivos termos, anadéis estes aos quais
cumpre organizar alardos (paradas militares), onde davam as suas
instruções e inspeccionavam o equipamento e as armas.
A mancha onde a existência de besteiros do monte
é agora permitida abrange Setúbal, irradiando para o rio de Alcácer
e daqui até Beja e todo o termo desta. Com Portel, Serpa, Moura e
Beja, desenha-se um alargado quadrilátero que flecte para Norte,
para a jurisdição de Castelo Branco; e, de Norte para Sul, entre
Proença-a-Velha e Proença-a-Nova, podemos dizer que se espraia bem
junto à fronteira, com Idanha-a-Velha, Idanha-a-Nova, Salvaterra do
Extremo, Segura e Rosmaninhal, correndo em direcção ao Algarve (51).
Os escravos causavam danos e punham-se em fuga,
supostamente para as terras dos seus donos; os presos saíam em
trânsito das localidades onde se achavam encarcerados para outras,
por vezes fugindo também. Nos Capítulos especiais de Loulé, as
populações consideram que, até então, estes sempre estiveram no
castelo, “omde estauam muy presos e bem arrecadados”. Contrariamente
ao que assim acontecia, desta feita, desviavam-nos para diferentes
locais, para outras cadeias “fora da villa” e sem a devida guarda,
podendo causar grandes danos em pessoas e bens. Loulé queixava-se de
que era para a vila que traziam os presos de Tavira, Faro e
Albufeira, “jso mesmo em maneira que rreçebemos gramde agrauo”, como
é fácil supor. Ora o besteiro do monte faz a vigilância de tais
encaminhamentos, muito provavelmente, observando-os de longe ou, se
convocados, por perto, em auxílio dos carcereiros, vizinhos dos
lugares que, rotativamente, vão tendo esta difícil e ingrata missão.
Dada a situação geográfica do Algarve, tal como sucede nas outras
localidades que referimos, mantêm-se os besteiros do monte, além do
respectivo superintendente, aos quais cumpre muitas vezes “seruirem
assy nas partes d aalleem Como em outros serviços” (52). Cremos que
os seus privilégios, como forma de garantir a sua actuação, são
equivalentes aos dos monteiros do rei, devendo, inclusive,
entendê-los como um sucedâneo destes.
Não podíamos terminar sem uma palavra sobre uma
manifestação de apreço do rei D. Manuel I sobre a clerezia no
Algarve. Não queremos generalizar, mas fora um precedente aberto na
Comarca e todos sabemos como D. João III, no governo seguinte, se
comportou neste sentido. O caso leva-nos à mais antiga disposição
existente contra à acumulação de bens por parte dos clérigos.
Imagine-se que nos referimos a 1211 (a cerca de 300 anos atrás), à
primeira das leis que D. Afonso II promulgaria na Cúria de Coimbra,
contra a aquisição de terras, por compra, por parte de religiosos. A
presente situação um tanto insólita questiona-nos acerca de uma
hipotética prática costumeira dos padres. Será que eles, singular ou
colectivamente, adquiriam um bom número de bens imóveis,
comprando-os? Ou seja, gastando um real que fosse com isso? Estudada
a época em causa e de então em diante, sabemos que são a doação post
obitum e o dote, entregue pelos noviços e noviças, por regra, os
modelos aquisitivos de leiras e latifúndios pela Igreja. Ao tempo do
Infante, aquando da análise dos seus testamentos e Escrito de
capelanias, datados de 18 de Setembro a 9 de Outubro, apensos este
último ao seu derradeiro testamento de 28 de Outubro, dezasseis dias
antes de vir a falecer, o que sucedeu a 13 de Novembro de 1460 (53),
demos conta que ele teria negociado com o rei os legados a
institutos eclesiásticos.
Ora D. Manuel I emite uma carta ao Cabido da Sé
de Silves, privilegiando-o com a autorização de compra de bens até
ao valor de 100 000 reais brancos (54), salientando que, de outra
forma, não os poderiam comprar, excepto com “nosa licemça E
autoridade”. O rei manda, no entanto, um apertado controle por parte
do seu almoxarife, a fim de que as regras e os montantes sejam
rigorosamente cumpridos.
De facto, a conclusão a que esta nossa exposição
nos conduz, é a de que, foi relevante o respeito por parte de D.
Manuel I, em 1498 e, posteriormente, em 1502, e, muito pela certa,
até findar os seus dias em 1521, pelos direitos e regalias que as
populações algarvias detinham desde o tempo do Infante D. Henrique.
Sublinhamos que, muito embora, o protagonismo algarvio, quanto ao
papel das principais zonas portuárias e, especialmente, de Lagos e
das áreas das armações não fossem sequer uma sombra do apogeu
conhecido entre 1415 e 1460, o Venturoso, quatro décadas depois,
revelou-se respeitador do nome, do trabalho desenvolvido e dos
resultados de uma máquina em permanente labor: o Infante e os
Algarvios ao tempo das Descobertas.
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Notas |
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(1) Foi já lembrado em Lamego, No
Museu da cidade, num artigo em publicação no Portal da História, em dois
no TRIPLOV e na Academia Portuguesa da História. Em Novembro, em Lagos,
um grande Congresso está a ser preparado com a intervenção de
Historiadores e Investigadores nacionais e estrangeiros, a fim de
analisar o Infante, a sua Casa, e o destino da sua propriedade dominial,
além das Conquistas, Descobertas e da Expansão Portuguesa.
(2) Entre a vasta bibliografia
henriquina, vejam-se António Joaquim Dias Dinis, Estudos
Henriquinos, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1960; C.
Raymond Beazley, Prince Henry the Navigator: The Hero of Portugal and
of the Modern Discovery, 1394-1460AD., New York and London, G.P.
Putnam’s Sons, 1895, repr. London and Harlem, Frank
Cass and Co., 1968; Richard Henry Major, The Life of prince Henry of
Portugal, Surnamed the Navigator, repr. London, Frank Cass and Co.,
1967; Edgar Prestage, The Portuguese Pioneers, repr. New York,
Barnes and Nobles, 1967 and Prince Henry the Navigator and Portuguese
Maritime Enterprise: Catalogue of an Exhibition at the British Museum,
September-October 1960, London, Trustees of the British Museum, 1960; P.
E. Russell, Prince Henry the Navigator, Canning House Seventh
Annual Lecture, London, The Hispanic and Luso-Brazilian Councils, 1960
and Prince Henry the Navigator: The Rise and Fall of a Culture Hero,
Taylorian Special Lecture, 10 November 1983, Oxford, Clarendon Press,
1984 and Portugal, Spain and the African Atlantic, 1343-1490.
Chivalry and Crusade from John of Gaunt to Henry the Navigator,
Aldershot and Brookfield, Vermont: Variorum, 1995 and Prince Henry
“The Navigator”. A Life, Yale University Press, New
Haven and London, 2000; John Ure, Prince Henry the Navigator,
London, Constable, 1977; Gomes Eanes de Zurara, Crónica de Guiné,
introdução, novas anotações e glossário de José de Bragança, Nova
Edição, Barcelos, Livraria Civilização, 1973; João Silva de Sousa, A
Casa Senhorial do Infante D. Henrique, Lisboa, Livros Horizonte,
1991 e 1394-1494: do Infante a Tordesilhas, Cascais, Patrimonia,
1995.
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João Silva de Sousa (Portugal)
Professor de História Medieval do Departamento
de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa e
Académico da Academia Portuguesa da História |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
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