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José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998 e
recentemente falecido, escreveu e publicou o essencial da sua obra nos
20 anos anteriores à conquista desse prémio. O primeiro dos romances em
que se revela o seu estilo próprio de escrita é precisamente
Levantado do Chão. Publicado em 1980, representa para o autor «o
último romance do Neo-Realismo, fora já do tempo neo-realista» (Reis,
1998, p.118). De facto, não sendo estritamente um romance neo-realista,
Levantado do Chão pode ser visto como um entroncamento para onde
confluiu toda uma forma de fazer literatura em Portugal no século XX.
Nesta obra de ficção Saramago aborda, por um lado, a história da vida e
morte do latifúndio; com efeito, desde a Idade Média até finais dos anos
70 e, por outro lado, num espaço histórico mais curto, a saga da família
Mau-Tempo «que, em três gerações (Domingos Mau-Tempo, seu filho João e
seus netos António e Gracinda, esta casada com outra personagem central,
António Espada), vai conquistar a terra para as capacidades do seu
trabalho, vai arrancar-se à vergonha das humilhações, vai preencher a
fome de uma falta total. O romance é, assim, a história de um fatalismo
desenganado, constantemente combatido pelo apontar da esperança feita
luta» (Seixo, 1987, p.39). As duas ondas históricas entrelaçam-se num
período de tempo que vai do final do século XIX até aos anos seguintes à
Revolução de 25 de Abril de 1974. Esta articulação entre dois planos tem
a vantagem de oferecer uma problematização assaz instigante do papel e
do lugar do(s) indivíduo(s) no desenvolvimento histórico mais vasto.
Não obstante a narrativa atravessar diferentes
regimes políticos (anos finais da monarquia, a I República, a ditadura
fascista do Estado Novo, o regime democrático, nota-se um corte de
grande significado na e para a vida das personagens: o antes e o pós 25
de Abril. Por outras palavras, no que toca à melhoria das condições de
vida do operariado agrícola alentejano e da possibilidade de este surgir
como sujeito colectivo portador de uma história própria e de dinâmicas
de profunda democratização da sociedade, nenhum dos regimes anteriores à
democracia foi capaz de admitir tal processo. «Entre o latifúndio
monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as
parecenças eram todas, porque os salários, pelo pouco que podiam
comprar, só serviam para acordar a fome» (Saramago, 2000, p.34). Nesse
sentido, a situação económica e social dos trabalhadores até 1974 era
assim descrita por António Gervásio, operário agrícola e actor
participante nas lutas contra o fascismo na região a partir dos anos 40,
«os assalariados agrícolas eram trabalhadores privados dos direitos mais
elementares. Não havia emprego certo. Não tinham subsídio de desemprego,
de férias, de baixa, nem reforma, nem direitos sindicais. Eram
trabalhadores sem direitos nas mãos dos grandes proprietários»
(Gervásio, 2004, p.182).
Neste cenário, o proletariado alentejano assumiu-se como um actor social
de primeira importância na resistência ao regime fascista e na
reivindicação por melhores condições de vida e de trabalho. A conquista
das oito horas diárias de trabalho, acabando com o sistema do trabalho
de sol a sol (que chegava às catorze e dezasseis horas diárias de
trabalho), em Abril e Maio de 1962 é, nesse aspecto, elucidativo da
relevância inapagável da luta da classe trabalhadora agrícola alentejana
na contestação à ditadura e nas aspirações a uma outra sociedade. No
contexto do latifúndio - com o cortejo de miséria, opressão e
vulnerabilidade das vidas das famílias operárias - a luta pela posse da
terra evidenciava-se como um pilar central e como um objectivo
primordial para esses trabalhadores. Com o processo revolucionário e
democrático subsequente à revolução de 1974, a Reforma Agrária surgiu
como uma necessidade e uma exigência imperiosa das populações laboriosas
dos campos do Sul (margem esquerda do Ribatejo, Alto e Baixo Alentejo).
É o próprio José Saramago que numa crónica em 1977
manifesta a naturalidade com
que os trabalhadores alentejanos e ribatejanos tomaram e ocuparam
herdades agrícolas: «se a terra está aí e daí não pode sair, são vossos
os pés que caminham nela, são vossas as mãos que a trabalham, são dos
vossos pais e avós os ossos que estão debaixo dessa terra, depois de
terem trabalhado e sofrido o que os filhos ainda hoje trabalham, mas,
sofrido, basta» (Saramago, 1999, p.39).
O impacto das ocupações de terras, o número de
trabalhadores envolvidos, a convicção com que defendiam o que
consideravam ser justo era tal, que a Reforma Agrária foi consagrada
legalmente, inclusive na Constituição de 1976. Com a Reforma Agrária
formaram-se cooperativas e UCP's (unidades colectivas de produção) com
administração económica e política dos trabalhadores sob supervisão do
Estado democrático.
A gestão operária com a Reforma Agrária era, então,
uma realidade.
No fundo, as UCP's tinham como características fundamentais «a
exploração comum da terra» e a «gestão democrática» (Barros, 1981,
p.117) das mesmas. Explicitando, o controlo democrático e popular de
base consubstanciava-se no «poder dos colectivos de trabalhadores de
eleger e demitir as direcções e de decidir sobre os diversos aspectos
das novas unidade e/ou de controlar todos os actos de gestão» (idem,
p.119).
Contudo, logo em 1976 a Reforma Agrária começou a enfrentar fortes
adversidades externas para além das dificuldades herdadas do latifúndio
(terras abandonadas, baixa aplicação de maquinaria à produção agrícola).
Com a aprovação da chamada Lei Barreto (lei 77/77 - lei de Bases da
Reforma Agrária) os trabalhadores tiveram de começar a entregar herdades
que não atingissem um novo patamar legal de pontuação das áreas a
expropriar. O cerco pelos sucessivos governos e dos antigos grandes
latifundiários à Reforma Agrária iria apertar-se nos anos imediatamente
seguintes, com os ataques aos trabalhadores e às UCP's a atingirem
níveis quase impensáveis de repressão.
A ênfase aqui colocada na repressão e na contra-ofensiva sobre a Reforma
Agrária deve-se ao facto de esse ter sido o factor principal, e em
última análise decisivo, da derrota do processo de transformação da
propriedade fundiária nos campos do Sul. Numa frase, a Reforma Agrária
não se desmoronou mas foi derrotada. Muito mais do que algumas
ineficácias económicas e erros na condução do processo - inevitáveis em
qualquer acção humana, mais ainda quando o processo é executado por
indivíduos de uma classe trabalhadora que pela primeira vez na sua
história de centenas de anos tinham a gestão económica, social e
política das suas vidas nas suas mãos - foi a reacção de classe das
classes dominantes e do aparelho de Estado que colocaram um ponto final
na Reforma Agrária. Aliás, a Reforma Agrária atingiu patamares de
viabilidade e desenvolvimento económico só postos em causa precisamente
pela repressão que foi alvo. Lembre-se, a título meramente ilustrativo,
alguns dos aspectos bem-sucedidos economicamente com o processo da
Reforma Agrária:
os postos de trabalho antes da Reforma Agrária
que rondavam os 21.700 e que em 1976 se cifravam em 71.900 e que até
1982 inclusive tiveram sempre um efectivo de trabalhadores superior
à base de partida. A área total das UCP chega aos 1.130.000 de
hectares de 1975 a 77. A produção de bovinos passou de 55.000
cabeças, antes da Revolução de Abril e das ocupações de terra, para
84.000 em 1976 e 103.000 em 1977. A produção de ovinos e caprinos,
respectivamente, de 272.000 cabeças para 401.000 e 437.000. A
produção de cereais passou de 90.000 toneladas para as 240.000
toneladas em 1976. O arroz passou de 23.550 toneladas para 38.000
toneladas em 1977. Os tractores antes da Reforma Agrária eram apenas
2.690, quase dobrando em 3 anos (4.560) (Leal, 2005, p.255-256). O
povo operário como sujeito conseguiu conquistas sociais e económicas
jamais vistas na região. Por conseguinte, a tese burguesa de que as
massas operárias e populares não saberiam administrar colectivamente
a produção cai por terra perante a evidência empírica das conquistas
extraordinárias da Reforma Agrária alentejana. Perante o sucesso
económico, político e social da Reforma Agrária só a repressão
furiosa e o cerco económico e financeiro poderiam destruir a mais
bonita das conquistas de Abril.
Até 1980, data de publicação de Levantado do Chão, podemos
registar alguns dados da repressão contra o proletariado agrícola
alentejano, precisamente um período de forte contra-ofensiva dos
ex-latifundiários e respectivos governos contra a Reforma Agrária e
a administração colectiva dos trabalhadores:
«Foi a prolongada desocupação da herdade da Lobata, em Serpa, ainda
em Novembro de 1976; foram os brutais espancamentos realizados na
UCP S. Bartolomeu do Outeiro, em Portel, em 28 de Outubro de 1978; o
cerco e a prática ocupação de Pias, no concelho de Serpa, em Julho
de 1979, com mais de uma centena de pessoas espancadas e perseguidas
ao longo das ruas; foi a utilização de balas de borracha maciça na
UCP Fonte Boa da Vinha, em Évora, em Julho de 1979; foi o fogo
aberto contra os trabalhadores na Cooperativa de Casebres em Agosto
seguinte, que atingiram inclusive os ocupantes da carrinha que se
deslocava para o Hospital Distrital de Évora transportando os
feridos desta operação; foi a brutal entrega de reservas na herdade
das Testas, na UCP 6 de Agosto em São Pedro da Gafanhoeira,
Arraiolos, com um aparato nunca visto de metralhadoras, cavalos e
cães e de que também resultaram vários feridos e presos; foi, em
Julho de 1980, o tiroteio desencadeado contra os trabalhadores
presentes na entrega de uma reserva na UCP Estrela da Manhã, em
Vendas Novas; prisões arbitrárias e sem qualquer mandato judicial de
alguns dos dirigentes mais destacados dos Sindicatos dos
Trabalhadores Agrícolas, dos Secretariados das UCP/Cooperativas
Agrícolas e dos dirigentes destas, atraídos ou levados sob coacção
aos postos da GNR, onde durante horas eram alvo de autênticos
sequestros e, em muitos casos, espancados» (Carvalho, 2004, p.84-85)
Ao mesmo tempo, foi nesta altura que ocorreu
«O assassinato de dois trabalhadores da Reforma
Agrária, António Casquinha e José Geraldo, o primeiro dos quais
tinha somente 17 anos de idade e o segundo 57 anos, sucedeu em 27 de
Setembro de 1979, em pleno Governo dirigido por Maria de Lurdes
Pintassilgo, na herdade Vale de Nobre na UCP Bento Gonçalves em
Montemor-o-Novo. Consumada a entrega do monte, a força da GNR
destacada para a operação, em conjunto com os técnicos do Ministério
da Agricultura e com grupos de agrários armados, apoderaram-se de
múltiplas cabeças de gado bovino, propriedade dos trabalhadores.
Junto o rebanho, deslocaram-se para o monte que tinha acabado de ser
entregue, onde enfrentaram o legítimo protesto dos trabalhadores.
Nesse momento vários tiros foram disparados por alguém do único
grupo que possuía armas, GNR e agrários. Resultado: dois
trabalhadores cairiam por terra para não mais se levantarem, perante
a insensibilidade e as ameaças de repetição proferidas pelos
comandos da GNR presentes. Até hoje nunca foram apuradas as
responsabilidades materiais e directas destas mortes» (idem, p.87).
As razões e motivações para esta sucessão de
acontecimentos contra a Reforma Agrária devem-se ao facto de que as
classes dominantes não podiam aceitar que os trabalhadores assumissem
com êxito a gestão e produção de cinco centenas de modernas empresas
agrícolas que eram as UCP's.
Portanto, é neste quadro histórico que surge a obra Levantado do Chão
de José Saramago. Até às duas machadadas finais na Reforma Agrária - as
revisões constitucionais de 1982 e de 1989 - o seu potencial de
viabilidade económica ainda era real. Assim, Levantado do Chão é
uma obra estética de elevado valor mas com uma componente militante
rara, expressa num comovente incentivo do autor aos trabalhadores
alentejanos para que prosseguissem com a sua luta.
O painel de elementos sociais presentes em Levantado do Chão é
notavelmente profícuo, com particular incidência no inventariar dos
efeitos mais perversos da forma de organização da produção nos campos do
Sul de Portugal durante a Primeira República e, sobretudo, durante o
fascismo.
a) A cumplicidade entre a polícia e os patrões,
«diz o sargento, Por falar em patrão, estou precisado de um bocado
de lenha. Diz o feitor, Lá lhe irá uma carrada. Diz o sargento, E
umas poucas telhas. Diz o feitor, Não será por causa disso que
dormirá ao relento. Diz o sargento, A vida está cara. Diz o feitor,
Mando-lhe uns chouriços» (Saramago, 2000, p.38);
b) a miséria que «empoeirava o rosto a esta gente» (idem, p.43)
trabalhadora;
c) o trabalho infantil, «mas esta criança, palavra só por comodidade
usada,
pois no latifúndio não se ordenam assim as populações em modo de
prever-se e
respeitar-se tal categoria, tudo são vivos e basta, esta criança
é
apenas uma entre milheiros, todas iguais, todas sofredoras, todas
ignorantes
do mal que fizeram para merecer tal castigo» (idem, p.56);
d) o desemprego e os baixos salários, «vão caravanas pelos caminhos
à
procura de um salário miserável» (idem, p.56);
e) o desprezo pelos indivíduos das classes populares, vistos como
sub-humanos,
«o povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um
povo
que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas
aqui, no
latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de
casa, e
meses até, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do
contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. É
preciso
que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela
da
noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos
sovacos, das
virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do
trabalho no
latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse,
para se
limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se
respeite
a si próprio nem aos seus próximos» (idem, p.73);
f) as desigualdades sociais gritantes logo a partir da mais tenra
idade e o
fatalismo inscrito na condição social de pertença dos indivíduos,
«aí está
esse infinito estendal de sexos abertos, dilatados, vulcânicos, por
onde
rompem sujos de sangue e mucos os novos homens e as novas mulheres,
tão
iguaizinhos naquela miséria, tão diferentes logo nesse minuto,
consoante os
braços que os recebem, os bafos que os aquecem, as roupas que os
envolvem»
(idem, p.294).
Estas são algumas exemplificações
do
vendaval de fenómenos que pintam a paisagem alentejana do período
histórico
anterior a 1974, com particular incidência nas circunstâncias em que
o
operariado agrícola vivia no decurso do regime fascista.
Conquanto estes sejam indicadores com um elevado
interesse sociológico, do
nosso ponto de vista, o elemento de maior valor substantivo no romance
aqui
em mãos prende-se com o processo de formação da classe trabalhadora
(Thompson, 1991). Evidentemente, Saramago não desenvolve nenhuma teoria
nem
sistematiza cientificamente dados empíricos e proposições analíticas.
Tal
não é o seu objectivo nem a criação artística propugna esse tipo de
exercícios e operações. Assim, a riqueza de uma obra de arte avalia-se
não
apenas pela inovação formal - no caso a escrita fluente e poderosamente
confluente de múltiplas vozes de Saramago - mas também pelos implícitos
qualitativos e pelas marcas da sociedade que nela se plasmam. Em
Levantado
do Chão, como nó de (inter)mediação entre a linha histórica de longa
duração
da vida do latifúndio e a vida pessoal e colectiva da família Mau-Tempo,
surge o já referido processo de formação da classe trabalhadora.
Nas suas linhas mestras, uma classe social é um «fenómeno histórico,
unificando um número de eventos distintos e aparentemente desconexos»
(Thompson, 1991, p.8) em que nunca é vista como algo «definitivo,
definido e
como um facto consumado» (idem, p.937). Por conseguinte, uma classe é a
corporização colectiva de práticas sociais, económicas, culturais e
políticas e que é apreendida sob uma perspectiva relacional, ou seja,
uma
classe social não age de forma isolada mas em relação às dinâmicas e
interesses objectivos e subjectivos das outras classes.
Com efeito, o desenvolvimento histórico de uma classe social, em
Levantado
do Chão, a classe trabalhadora, é uma constante, se bem que evolua a
velocidades e ritmos heterogéneos, apesar das diferentes formas em que
esta
se manifesta na luta (económica, política e ideológica) de classes. De
referir que a evolução política e ideológica de uma classe social, ainda
mais quando estamos a tratar de classes dominadas, não é evolucionista.
Se
uma classe tem limites mínimos e limites máximos - gizados e ajustados
pelas
estruturas económica, política e ideológica/cultural que as enquadram e
envolvem - para o desenvolvimento e maturação da sua consciência de
classe,
de formas de organização política e social, de bandeiras de luta, etc.,
a
passagem entre esses vários níveis nunca é inelutável nem apriorística,
mas
releva sempre dos resultados políticos, sociais e económicos da
conjuntura
em que as várias classes se relacionam e confrontam.
Começando pelo início, passe a redundância, encontramos Domingos
Mau-Tempo,
um operário/artesão que deambula e vagueia com a sua família de aldeia
em
aldeia no concelho de Montemor-o-Novo em busca de emprego. As formas que
Domingos Mau-Tempo encontra para se "revoltar" com o "estado de coisas",
com
a miséria, a fome e o desemprego reinantes são a bebida, as fugas
persistentes de casa e da família para outras aldeias vizinhas e, no
fim, no
limite do desespero, o suicídio. Reportando-se aos anos 10-30 do século
XX,
fica-se com a ideia que a significação subjectiva dominante que os
trabalhadores de então tinham da pobreza e da condição social em que
viviam
era de resignação e aceitação de uma ordem ou desígnio (quase) divino e
inexplicável. «Também está [o filho] à mão direita do Pai, decerto em
boa
conversa com Domingos Mau-Tempo, a tentarem saber os dois porque é a
desgraça tanta e o prémio tão pequeno» (Saramago, 2000, p.53). Nesta
fase, a
modalidade mais "avançada" de luta dos trabalhadores alentejanos
espelhava-se na figura do maltês, portanto, pequenos bandos de operários
desempregados que assaltavam na estrada e depois entregavam parte da
colecta
pelos trabalhadores mais pobres. Sobrevêm aqui semelhanças com os
"bandidos
sociais" descritos por Hobsbawm na sua obra Primitive Rebels (Hobsbawm,
1965). As lutas colectivas e espontâneas de trabalhadores alentejanos já
ocorriam no tempo da Primeira República e no início do fascismo. Ao
mesmo
tempo, existiam formas de luta de indivíduos que isoladamente
enfrentavam o
poder dominante dos latifundiários. Relembre-se o caso de António Dias
Matos
(1890-1932), assassinado no Cantinho da Ribeira, concelho de Beja. Para
mais
informações sugere-se a leitura de (Lima, 2006, p.85-102; 133-145) e o
posfácio de Manuel da Fonseca ao seu romance Seara de Vento (Fonseca,
2001,
p.175-212). Portanto, a análise do processo de formação da classe
trabalhadora em Levantado do Chão refere-se apenas ao sucedido no
romance,
logo sem extensões à restante realidade histórica alentejana.
Sobre um desses malteses, José Gato, «nunca roubou nada aos pobres, a
orientação dele era só roubar onde o havia, aos ricos» (Saramago, 2000,
p.133).
Deste estado em que o desespero, a inacção e a desorientação e onde a
acção
de grupos dispersos e sem objectivos políticos de luta (os malteses)
eram as
notas dominantes, passa-se para uma fase de crescente revolta e
consciencialização dos trabalhadores. Primeiro, a acumulação de castigos
físicos e de humilhações atinge um grau quase insuportável, aliado ao
agravamento das dificuldades para se garantir emprego e um salário que
permita a sobrevivência económica. Pavimentam-se aí os germes da
revolta,
até ver individual, dos operários. Aqui surge João Mau-Tempo, filho mais
velho de Domingos Mau-Tempo e de Sara Conceição que «um dia, moído de
pancada e de trabalho excessivo, desafiou a ameaça de ser esfolado e
desossado [pelo capataz], e abriu-se com a mãe estupefacta» (idem,
p.55). A
insatisfação com a sua condição é cada vez mais visível - «tu és um
homem,
és o parceiro enganado de uma grande batota universal, brinca, que mais
queres, o salário não dá para comer» (idem, p.76). O questionamento da
sua
situação e a verbalização (o que implica uma reflexão) da mesma,
demonstra a
passagem para um degrau superior de consciencialização social. Todavia,
não
há aqui ainda luta colectiva organizada. No romance, o atingir de um
novo
patamar surgirá durante e no final da Segunda Guerra Mundial. É neste
período que uma onda popular de exigência de democratização percorre o
país.
Também é neste momento que o Partido Comunista Português se torna a
força
política hegemónica nos campos alentejanos. Nos anos posteriores à
derrota
do nazi-fascismo na Segunda Guerra ocorre também um ligeiro incremento
na
industrialização no país.
A aplicação de maquinaria à produção agrícola resultaria, nas condições
de
um capitalismo atrasado, de um lado, na expulsão de mais operários do
trabalho agrícola, elevando assim a taxa de desemprego nos campos e, de
outro lado, na imposição de ritmos de trabalho (quase) insuportáveis.
«Vai o moço para a moinha, recebe-a na cara como um castigo, e o corpo
começa de mansinho a protestar, para não mais lhe sobram as forças, mas
depois, só não o sabe quem isto não tenha vivido, o desespero
alimenta-se da
extenuação do corpo, torna-se forte e a sua força regressa violenta ao
corpo, e então, de dois feito, o rapaz, que se chama Manuel Espada,
deixa a
moinha, chama os companheiro e diz, Vou-me embora, que isto não é
trabalhar,
é morrer» (idem, p.101).
Temos aqui um primeiro exemplo de greve espontânea. As consequências
para os
trabalhadores não tardam em chegar, «no domingo foram os quatro
[grevistas]
à praça e não arranjaram patrão. E no outro, e no outro também. O
latifúndio
tem boa memória e fácil comunicação, nada lhe escapa, vai passando
palavra,
e só quando muito bem lhe parecer dará o feito por perdoado, mas
esquecido
nunca» (idem, p.107-108).
Esta espontaneidade tende a ser superada pela difusão de reuniões de
trabalhadores, «encontram-se aos três e aos quatro em sítios escondidos,
e
mantêm grandes conversações. Fala sempre um de cada vez e todos os mais
ouvem. E quando acabam dispersam-se na paisagem, quando possa ser por
caminhos desviados, levando papéis e decisões. A tudo isto chamam
organização» (idem, p.120-121) - e conjuntamente com a forte presença de
uma
cultura popular baseada em ideias de solidariedade e unidade
supra-individuais, forjam-se laços de identificação colectiva de classe.
Resumindo, a existência de uma liderança política revolucionária e
ligada
aos interesses dos trabalhadores (o PCP), o carácter colectivo da
cultura
popular e a ruptura com a inércia e o conformismo contribuem para que a
classe trabalhadora se constitua como uma classe com interesses
assumidamente tomados como distintos e opostos aos das classes
dominantes. Em paralelo, a burguesia, os capatazes e a polícia respondem com o
aumento
da exploração e o recrudescimento da repressão. Contudo, esta reacção,
não
no imediato mas a prazo, tem como contra-resposta o fortalecimento da
unidade dos trabalhadores e permite que estes compreendam e identifiquem
mais objectivamente quem são os seus antagonistas e de onde vem a causa
da
sua condição de classe. A reacção das classes dominantes passa a ser um
factor de politização da classe trabalhadora, na medida em que esta já
tinha
atingido um estádio de desenvolvimento político, ideológico e
organizativo -
que a não ser destruído pela violência física - se fortalecia no
médio-longo
prazo. Ou seja, o fosso entre universos (crescentemente) distintos -
entre o
mundo das vivências, das visões do mundo, das percepções dos vários
grupos e
classes sociais, das identidades colectivas, das práticas políticas dos
operários agrícolas e das classes dominantes - era de uma tal magnitude,
que
apenas uma recomposição completa da estrutura económica da produção
agrícola
ou uma repressão que pudesse desarticular completamente a organização
política da classe trabalhadora poderia eventualmente ter revertido tal
processo. Sustente-se, todavia, que a prossecução deste processo
repressivo
exigiria uma intervenção do Estado incompatível com as suas forças e
recursos de então. Em paralelo, uma recomposição da estrutura produtiva
do
latifúndio era igualmente incompatível com os interesses de classe de
uma
das fracções de classe politicamente mais poderosas e mais influentes do
bloco no poder que se condensava no Estado fascista: o grande capital
agrário e latifundiário. Por conseguinte, a tendência mais provável de
desenvolvimento da luta de classes nos campos passaria pelo
aprofundamento
do antagonismo classista.
Pelo seguinte trecho visualizam-se as características que sustentavam o
estado de desenvolvimento da classe trabalhadora naquele período (a
solidariedade, a identificação dos "patrões" como uma classe
antagónica, de
onde percebiam a migração dos frutos do seu trabalho para o lado da
outra
classe):
«Camaradas, não se deixem enganar, é preciso que haja união entre os
trabalhadores, não queremos ser explorados, aquilo que pedimos nem
sequer
chegava para encher a cova dum dente ao patrão. E avança o Manuel
Espada,
Nós não podemos ser menos que os camaradas das outras terras, que a esta
hora reclamam um salário mais certo. E há um Carlos, outro Manuel, um
Afonso, um Damião, um custódio, e um Diogo, e também um Filipe, todos a
dizerem o mesmo, a repetir as palavras que acabaram de ouvir, só a
repeti-las porque ainda não tiveram tempo de inventar outras suas
próprias,
e agora adianta-se João Mau-Tempo, juntemo-nos todos para exigir o
nosso
salário, porque já vai sendo tempo de termos voz para dizer o valor do
trabalho que fazemos, não podem ser sempre os patrões a resolver o que
nos
pagam» (idem, p.144).
«Não há justiça se uns têm tudo e os outros nada, e eu só queria dizer
que
têm tudo e os outros nada, e eu só queria dizer que os camaradas podem
contar comigo, é só isto e nada mais» (idem, p.212).
Em Levantado do Chão saliente-se ainda que a existência de luta
organizada,
correlativa da elevação dos níveis de consciencialização dos
trabalhadores
aparece como o maior receio da classe dominante. Registe-se o seguinte
diálogo entre o pároco e a esposa de um latifundiário
«é o pior defeito
que
têm, o orgulho, Tem razão, senhor padre Agamedes, e o orgulho é um
pecado
mortal, O pior de todos, senhora dona Clemência, porque é ele que
levanta o
homem contra o seu patrão e o seu deus» (idem, p.243).
O
"orgulho" mencionado mais não é do que a assunção individual e colectiva
que
os trabalhadores adquirem da sua situação na sociedade e da aspiração e
necessidade que encontram para se constituírem como uma classe
politicamente
independente dos interesses económicos, políticos e ideológico-culturais
de
outras classe sociais.
Por outro lado, um factor que ao mesmo tempo contribui para incrementar
a
consciência de classe e que com a maturação desta se eleva a novos
níveis é
a luta colectiva operária. Isto é, a compreensão subjectiva da classe
operária como uma classe diferente, oposta e antagónica ao grande
capital
(agrário, industrial, financeiro) espelha-se igualmente na extensão da
luta
reivindicativa no tempo. Portanto, a persistência temporal da luta, com
avanços e recuos, em torno de exigências económicas e/ou políticas, é um
aspecto capital na evolução qualitativa da formação da classe
trabalhadora.
Em paralelo, a compreensão de que a luta numa determinada conjuntura faz
parte de um devir histórico, de um todo histórico, é igualmente
importante,
«a Montemor vamos segunda-feira, reclamar o pão dos filhos e dos pais
que os
devem criar, Mas isso é o que sempre fizemos, e os resultados, Fizemos,
fazemos e faremos, enquanto não puder ser diferente, Canseira que não
acaba
nunca, Um dia acabará, Quando já estivermos todos mortos e ao de cima
vierem
os nossos ossos, se houver cães que os desenterrem, Vivos haverá
bastantes
quando chegar esse dia» (idem, p.308).
Em simultâneo, a coragem em afrontar um inimigo com recursos -
financeiros,
militares e ideológicos - muito superiores e em que as suas
reivindicações e
bandeiras de luta prevalecem à repressão subsequente é uma prova do
avanço
progressivo da capacidade organizativa e da consciência de classe do
proletariado alentejano. A isto acrescente-se também a transformação da
luta
económica (por salários, por melhores condições de trabalho, por
horários de
trabalho mais reduzidos, etc.) como catalisador da luta política. A
acima
referida luta pelas oito horas nos campos em 1962 foi complementada com
a
assunção do dia Primeiro de Maio como feriado dos trabalhadores em plena
ditadura. Daí em diante, o dia da resistência antifascista passou a ser
exactamente o dia 1 de Maio. Essas lutas da década de 60 - expressas no
romance no envolvimento militante de Sigismundo Canastra, João Mau-Tempo,
António Mau-Tempo e Manuel Espada (cunhado de João) - funcionaram, desse
modo, como factor de: unidade operária, de confiança e ligação dos
trabalhadores à única força política antifascista com implantação nas
massas
populares aí existente (o PCP); consciencialização e organização
política;
formação de quadros operários; abaixamento do volume de mais-valia
apropriado pela burguesia; rachamento da legitimidade do regime fascista
e
da própria burguesia como classe dominante.
Com a Revolução dos Cravos, chegam, entre outros, a liberdade política e
a
liberdade de manifestação,
«está aqui escrito que o primeiro de Maio será festejado livremente, é
dia
feriado em todo o país, E então a guarda, insistem os de boa memória, A
guarda desta vez fica a ver-nos passar, quem havia de dizer que uma
coisa
assim nos viria a acontecer um dia, a guarda quieta e calada enquanto tu
gritas viva o primeiro de Maio» (idem, p.355).
Parafraseando Ary dos Santos, com «as portas que Abril abriu» (Santos,
2004,
p.309-330) os trabalhadores alentejanos finalmente consumaram as suas
aspirações pela posse e trabalho da terra por si mesmos sem necessidade
constrangimentos externos e em que os produtos do trabalho eram
apropriados
e distribuídos colectivamente.
«E então num sítio qualquer do latifúndio, a história lembrar-se-á de
dizer
qual, os trabalhadores ocuparam uma terra. Para terem trabalho, nada
mais,
cubra-se de lepra a minha mão direita se não é verdade. E depois numa
outra
herdade os trabalhadores entraram e disseram, Vimos trabalhar. E isto
que
aconteceu aqui, aconteceu além, é como na Primavera, abre-se um
malmequer do
campo, e se não vai logo Maria Adelaide colhê-lo, milhares de seus
iguais
nascem em um dia só, onde estará o primeiro, todos brancos e todos
voltados
ao sol, é assim o noivado desta terra» (idem, p.361).
Por conseguinte, é com a Reforma Agrária que o proletariado alentejano
atinge o cume da sua capacidade organizativa e da sua consciencialização
social e política. Isto para não falar da melhoria material e económica
da
sua vida quotidiana.
Atentemos nas palavras de um operário agrícola que viveu esse processo.
Palavras enunciadas no mesmo ano em que Levantado do Chão foi publicado.
«Os trabalhadores alentejanos e ribatejanos nunca pensaram na terra para
si
e não continuam a pensar na terra para si, nunca foram gananciosos por
terem
um bocadinho de terra. Isto em falando numa maneira muito alentejana, os
trabalhadores o que querem é pôr a terra a produzir para todo o povo
português e a terra dos alentejanos e dos ribatejanos é de todo o povo
português. Portanto, não queremos de facto um bocadinho de terra cada
um,
mas queremos de facto que a terra seja posta ao serviço da economia
nacional
e de todo o povo em geral. Não queremos, de facto, ficar com um
bocadinho
[de terra], outro ficar com outro, que a terra nos seja posta, como se
costuma dizer, em nosso nome. A terra é do nosso país, a terra hoje é de
quem volta a trabalhar. Esta é a ideia dos alentejanos, é aquilo que os
alentejanos trabalhadores rurais sempre viram da terra» (Arraiolos,
1980,
p.209).
É todo este movimento histórico de transformação das práticas colectivas
e
políticas de classe do operariado agrícola alentejano que vibra e pulsa
nas
páginas de Levantado do Chão. Um romance onde se pode afirmar que os
trabalhadores não são descritos externamente ao contexto histórico, mas
onde
a sua experiência histórica e humana é contada pela sua própria voz
colectiva. Em 1980, pela voz individual de um dos seus. |