Há dias não é visto. A filha
reclama sua presença. O gato mia pedindo o leite que só ele sabe adoçar.
Mas a mulher se refestela na cama – cansada, quer estragar o corpo.
Fulano passou dias nas ruas bebendo pessoas. Sentia luzes, cheiros;
pensava dores e ascos. Vivia sem saber o relógio.
Expulso da casa que ajudou a
destruir precisa saber outras vidas. Sugar mais, beber mais, colher esse
sangue escarlate e fresco dos dias.
Foram dias sem teto. Dormia em
terrenos, calçadas. Experimentava o orvalho na grama, nas pedras. Suou
desejos. Gritou álcool. Bebeu sentidos. Comeu gente.
— Desde quando?
— Umas duas semanas.
Ele sabe que dificilmente
encontrará Fulano. Sai pelas ruas, mas não procura. Quer encontrar a
própria casa.
Em frente à pensãozinha, Fulano
pensa em despedidas. Do que passou.
Pede um quarto de frente. Pra
olhar a rua. Pra ouvir barulhos. Pra gozar ruídos. Pra chorar o asfalto
quente e úmido.
Na parede fina do pequeno e
estreito cômodo, uma gravura de São Cristóvão. No quarto ao lado, uma
voz rouca de mulher aos berros. Finge às 3h00 da manhã.
Fulano senta no beiral da janela,
antecipando o que seria, o que faria, onde estaria para concretizar o
que se configurava como futuro.
A parca iluminação amarelada
ilumina os olhos arroxeados, com veias e bolsas, romanticamente cortados
por lépidos pontos de luz. Fugacidade dos momentos e a perda do sujeito
– era isso fervendo em Fulano de Tal.
Acorda no chão do quarto
desconfiado de insetos. Precisava lavar a boca, mas não cortaria mais os
cabelos. Promessa.
O corpo doía, mas era confortável
andar rangendo. Era um novo dia esse novo dia.
Fulano queria vomitar seu
coelhinho.
— Encontrou Fulano?
— Não. E sentirei saudades.
Abraçam o corpo um do outro como
se chorassem uma perda. Definitiva feito a morte. As sombras descem
sobre o primeiro lar. Sem mágoa nem raiva; apenas tristeza.
Os Tal nunca mais se
encontrariam.
Curitiba estava quente, mormacenta,
preguiçosa. No calçadão da XV nem mesmo locutores, berradores ou
enchedores de saco eram ouvidos. Ninguém vendendo, ninguém querendo nada
da vida da gótica província.
No chafariz da Osório, manchas de
mofo e fungos; restos de fezes na água. Fulano de Tal lembra que precisa
de um banho. Mas quer provar pessoas.
Decide começar em um café. Quer
ser ignorado, anulado para poder sugar o que fosse o serumano e o que
viesse do serumano. Não sendo.
Fixa o olhar sobre um homem baixo,
desproporcional em relação à cabeça. De meia idade. Com tintura no
cabelo.
Esse senhor se avermelha tentando
descascar a maçã. Não compreende ou conclui o que queria. Balança a
cabeça negativamente e bufa. Não está dando conta do computador que
tinha à frente.
Cansado, sai do café sem perceber
que Fulano senta no lugar que deixou vago.
O programa que usava ainda está
aberto.
Um pequeno texto.
As primeiras reações de Fulano
foram de infamiliaridade, de estranhamento, de não-aceitação. Por isso,
pediu uma folha em branco e copiou o texto como ele via na tela. Em nada
interferindo nem alterando.
Falta apenas o título. É simples.
Com letras maiúsculas, dá nome ao primeiro alimento conquistado. À
crônica entregue pra quem quisesse ler. Talvez fosse essa a intenção do
senhor gordo e baixo. Ou talvez o senhor gordo e baixo quisesse fugir
pra não morrer.
Depois daquele dia no café, Fulano
andava com um bloco negro de papéis amarelados para sugar o que objetos,
coisas e inexistências reverberavam em seus olhos, emanavam em suas
orelhas, vomitavam em seus sentidos.
Todas as luzes e sombras do
serumano e de suas esferas em rabiscos sobre o papel.
Fulano desenharia os coelhinhos do
outro.
Intermezzo púrpura
A vida em sociedade consome com
todas as identidades. Fulano de Tal queria reencontrar essas identidades
perdidas, recriar o sugado em momentos, captando não o que via, pois o
que via já estava perdido em névoas, mas o que percebia como visto,
sonhado, mentido, sofrido, desejado pelo outro. Foi o que fez. Captou o
real sem mentiras, sem ser o observador nem o objeto. Acalentou a
compaixão no peito, mas sem choro. Conheceu a secura nos olhos. Desse
exercício de sucção, bebeu do fel dos dias cinzentos, mas também da
glória do ser comum, igual, sempre o mesmo na massa que borbulha fétida.
Coletou belezas e tristezas, foi o abraço sem calor, mas abraço. Foi o
cansaço quando cansaço. Foi a luxúria quando luxúria. Foi a porrada
quando porrada. Foi o carinho quando carinho. Foi o desespero quando
desespero. Foi a luta quando luta. Foi a ira quando ira. Foi a espera
quando espera. Foi o sono. Foi a candura. Foi o sangue. Foi a torpeza.
Foi o luto. Foi a magia. Foi o murmúrio. Foi a derrota. Foi o estupro.
Foi a miséria. Foi o chicote. Foi a pena. Foi o martelo. Foi a antena.
Foi o caminho de histórias de duas cidades. Foi uma viagem apenas de ida
a dois titãs minúsculos. Foi a formiga e a aranha. Foi Curitiba. Foi São
Paulo.
Província — Em Curitiba
aprendeu a se alimentar de restos. De mortos e de podridão.
Eram três. Uma tinha o sobrenome
impronunciável. Das outras, Fulano lembrava apenas da de coxa tatuada e
da de mamilos contraídos.
A de mamilos contraídos fumava
pedra como se mamasse. As outras duas queriam se beijar enquanto Fulano
as apalpava.
A de coxa tatuada estava bem
quente e úmida; deixou Fulano pronto.
A de nome impronunciável abandonou
o beijo canhoto para receber o sêmen que Fulano oferecia quente.
Ela vomitou uma espuma branca, que
ficou girando na água enquanto secava os lábios com a saia curta da de
coxa tatuada.
Esse movimento deixou Fulano
pronto novamente, mas ele não quis permanecer ali, pois as pedras iam e
vinham. Então, arrastou a de coxa tatuada para outro lugar.
Por causa do ar da noite, o ânus
dela estava frouxo e receptivo. Fulano não quis saber de risos nem de
motivos e gozou surdamente no intestino dela enquanto perguntava seu
nome: Olga.
Fulano de Tal saiu caminhando pelo
centro da cidade prestes a amanhecer.
A província amanheceu. Fulano
amanheceu. A BR-116 sob os pés.
Viagem — Era uma cadelinha
branca. Pelagem rala. Dava para ver pequenos pontos negros se mexendo
sobre o couro rosa. Eram pulgas.
A agonia do vento nos olhos. O
ardido na ponta dos dedos. A viagem se iniciava com um tom branco de
vapor. Daquele que sai da boca quando o frio é infernal. O gelo queima.
A perninha da cadela treme. Da
garganta sai um ganido chato, fino, que invade os ouvidos feito o frio.
O andar foi lento. Compassado.
Quieto. Fulano venceu a fome do dia e à noite encontrou um grande cacho
de bananas pendurado do lado de fora de uma cerca. Deitou ali e ficou.
Comeu até dormir.
Acordou amarrado à bananeira. A
cadela estava estripada a seu lado. Não haviam mais bananas. Nem cascas.
Sobre uma das coxas havia um bilhete: Ladrão, safado! Vai morrer
amarrado!
Não morreu. Mas ficou ali por três
dias frios. Três noites terrivelmente solitárias. Foi uma menina vestida
de amarelo que o acordou no fim da desistência. As mãos roxas.
Ela chegou mansa. Silenciosa. Com
os dedos finos, desatou os rústicos nós da corda que sufocava as mãos de
Fulano. Saíram de mãos dadas pela estrada.
Era uma menina loira. Pele
sardenta. Dava para ver pequenos pontos no corpo da menina que se mexia,
roxos, rosas, arroxeados, rosinhas. Pretos. Não tinha pulgas.
Fulano tentava puxar assunto.
Queria agradecer. Mas a menina não dava pelota. Continuava andando.
De dia andavam sobre o cascalho do
acostamento estreito da BR-116.
Cruzavam os estados por esta veia
aberta: Rodovia da Morte.
De noite dormiam sobre o mato
abaixado pelas mãos cansadas de balançar.
De dia comiam o que surgia de
frutas, sementes, folhas.
De noite gestavam a energia para
continuar.
Por três meses caminharam,
cultivando o silêncio e a ausência. Precisavam-se. Uniram suas solidões
para semear o caminho.
Entristeceram quando os ruídos,
intensificados nos olhos, surgiram à beira de tudo. Chegavam ao
amontoado de coisa nenhuma.
À beira do Rio Pinheiros caíram na
teia dessa aranha sádica.
Na despedida, a suave voz da
menina sussurrou um adeus: Irina.
Metrópole — Em São Paulo
aprendeu a se alimentar do interior. De sangue e de vísceras.
Amontoado. Amontoado de coisa
nenhuma. É a própria vertigem em concreto. E Fulano imergiu naquilo como
se fosse água morna.
Feito retirante caminhou.
Procurou. Andou à beira do Rio Pinheiros. Cheirava o asco que entranhava
nos cabelos.
Procurava a casa da tia. E foi
pelo cheiro que encontrou. Tia velha fedia.
Estava liberado o quartinho dos
fundos, das ferramentas, das tranqueiras, dos lixos cotidianos. Entrou,
deitou no chão e dormiu sonhando com sons metálicos, com sufocamentos,
com pregos cravando a carne.
Era noite alta, com lua cheia,
quando acordou. Não pôde sair. Estava preso. Do lado de fora, um grande
cadeado prata selava a porta de madeira esburacada.
Fora do quartinho, risadas roucas
e tabaco. Um grupo de curiosos se reunia para olhar o estranho parente.
Falavam alto. Falavam uns dos
outros. Falavam mal. Falavam de histórias sofridas. Falavam de
acontecimentos distantes. Falavam. Falavam demais.
Desse falatório, Fulano de Tal
coletava, dentre as frestas, vidas, desejos, mentiras e ausências.
Coletava o suco, a polpa de sua própria crônica.
Todos os dias vinham pessoas olhar
o estranho parente da tia velha. Mas só tagarelavam quando ela se
retirava para limpar sua pele de uma espessa camada de fungos.
Limpeza demorada. Sem cremes. Sem
água. Apenas lama e cinzas. Lama e cinzas do quintal.
Tudo o que ouvia, Fulano coletava
na memória do papel e da carne. Marcava com sua fome as misérias do
outro.
Mas as próprias misérias, Fulano
esquecia enquanto era preenchido por vozes. Deixava a balança pender
para o lado obscuro do desconhecido. Para o outro.
Por isso, todos achavam estranho o
parente da velha Maria.
Réquiem anil
Agora, Fulano sabia que podia
cessar. Findar seu corpo. Aniquilar a voz do outro que se manifestava
nele.
Era noite quando desprendeu sem
dificuldade as tábuas do quartinho. Por elas saiu e com elas construiu
uma pequena balsa, usando uma fina corda de sisal.
Guardou o bloco negro na cintura,
junto a uma tesoura que pegou do quartinho.
Andou pelas ruas cimentadas pela
última vez e coletou delas o vaso que protegeria sua essência, seu sinal
e marca em um mundo cindido.
A balsa ficou firme sobre o Rio
Pinheiros. Nela, Fulano subiu mantendo o equilíbrio sobre os joelhos
flexionados.
Deitou a tesoura sobre as tábuas.
Deitou o vaso de barro entre as pernas.
Fulano deixou o rio levar
lentamente a balsa enquanto via o movimento das margaridas, das estações
de trem, das bolhas que subiam, das marginais e seus automóveis.
Teve tempo para pensar em tudo que
fizera até ali e em tudo o que faria.
Lentamente e com cuidado, Fulano
de Tal cortou o cabelo que deixara crescer durante os anos e colocou os
fios no vaso, cumprindo a promessa.
Com a tesoura, cortou a veia do
antebraço, gotejando os fios de cabelo com seu próprio sangue. Fixando,
no vaso, sua essência, seu sinal, sua marca.
Posicionou o peito para frente,
com os olhos mirando o traçado sinuoso do rio, e cravou a tesoura com
força.
A dor foi terrível. Quebrou duas
costelas, mas atravessou o peito, atingindo o coração.
Ainda teve forças para terminar o
que tinha planejado.
Ficou em pé sobre as fracas tábuas
da balsa, olhou pela última vez, ou pela primeira, a estrela da tarde,
chamada Vênus, e caiu de costas nas águas fétidas e sem vida do Rio
Pinheiros.
A quinze metros dali, um trem
passa gemendo nos trilhos, com voz rouca e estridente. Feito um dragão.
Fogos estouram no Real Parque.
Há de tudo, menos silêncio nessas
águas impuras. |