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Comemos, bebemos, rimos
das histórias contadas ao fulgor do êxtase de cada um. Ríamos como
crianças, sem nenhuma responsabilidade. Mas algo havia no ar. O
prenúncio do futuro. O prenúncio dos sentidos. Algo inquietante fora da
normalidade de meus dias tão meditativos, tão atropelados pelo volume de
trabalho, rotinas e responsabilidades. É ridículo relembrar insucessos
do passado e é promissor fortalecer o sagrado “Eu” que habita em nós, na
sutileza da existência. É ridículo quando se tem o sol pela frente,
sofrer a dor do coração. Mas somos humanos. A ascensão à perfeição ainda
não aconteceu, portanto lágrimas são permitidas. E como dói o coração!
O ar angelical permaneceu
toda tarde em explosões de risos dos que estavam em volta da mesa. De
súbito, a estrada que conduzia ao desconhecido, começou a lançar seus
gritos internos para que eu a pegasse e me fosse dali, já escurecendo.
Ficamos um pouco mais neste lugar transcendental e as mentes
descontroladas saboreavam os pensamentos alegres daquele mágico dia 21
de abril, quase véspera da véspera do outro feriado: Dia de S. Jorge, o
padroeiro do povo brasileiro, o padroeiro dos jogadores de futebol, dos
comerciantes, dos marginais, dos negros, dos despossuídos, dos favelados,
dos injustiçados, enfim do povo brasileiro tão sofrido, mas feliz e
cantante. Minha avó Maria de Lourdes, a velha índia, todos os anos ia
nesse dia à Igreja de S. Jorge bem cedinho da manhã, pegar seu pãozinho
para colocá-lo dentro da farinheira. Ficava numa fila por mais de duas
horas. Era um ato místico e sagrado que significava a prosperidade, numa
tentativa de ascensão social. Ali nunca faltaria comida naquela casa,
dizia a minha avó, apesar de nossa pobreza imigrante das terras
indígenas Potiguara, nordeste do Brasil, motivada pela violência do
grande latifúndio de algodão dos neocolonizadores ingleses.
Eu sabia que a estrada
estava me esperando saltitando de felicidade a minha frente. Fomos
então. Chegamos a Vargem Grande, bairro do Rio de Janeiro, campestre,
rústico, meio country tupiniquim, lugar onde as montanhas conversam
conosco em baixinha voz, onde passamos feriados e finais de semana para
relaxar ou para escrever. Visitamos a feirinha popular onde se come
churrasquinho, churros, como num parque de diversão e onde os casais
prometem juras de amor e as crianças e cachorros correm de um lado para
outro, ao som do Axé Music, forrós, pagodes, sambas e músicas
sertanejas. Sentamos ali de novo.
Eu já havia deixado a
estrada para trás, mas ela me pedia que eu seguisse poucos passos à
frente apenas. Foi quando levantamos dali e fomos ao Bar do Marcelo, o
“Petisco da Vargem”. Eu sentia uma alegria contagiante ao encontrar
Eduardo, nosso amigão. Ele jantava sozinho. Pedimos umas bebidas e ali
ficamos mais um pouco saboreando a fantasia dos descompromissados e
rindo a alegria, a nobreza dos deuses.
Aquele ar misterioso de
Guaratiba, eu o trouxe comigo e se prolongou por toda a noite. A música
implorava para ser ouvida e foi quando Tajira sugeriu que fôssemos para
fora do bar, sentar ao ar livre na estreita calçada e ouvir melodias
românticas e alegres. Ao passar pela porta do bar, minha filha me
apresentara a dois senhores, um deles mais novo, bonito e forte, tinha
um olhar contagiante e perturbador. Apertei as mãos másculas e em
seguida fui sentar-me com a família, um "poquito" à frente. Foi quando
me encabulei com o olhar penetrante desse homem formoso, quase
implorando o meu. Desconcertei-me, porque há mais de um ano, não me
interessava por ninguém. Não mirava ninguém assim. Havia fechado meus
sentimentos, meu coração e tudo em mim. Tive dúvidas, mas obedecia a
ordem do ar que me seguiu o dia inteiro, desde cedo na Barra de
Guaratiba: o prenúncio do alvorecer!
Fez-se a luz, então. A
vida ressurgiu do breu, mas eu sentia enorme timidez, no entanto
querendo ardentemente penetrar no olhar tão desconhecido e que me atraía
como um ímã. Em pouco tempo ele e seu amigo se aproximaram de nossa
pequena mesa e eu tremi. Eu os convidei a sentar porque gentilmente nos
ofereceu uma bebida.
De imediato ele não
sentou e continuou a me fitar. Tirei os óculos, tirei a máscara, mas a
máscara não queria sair. A máscara dos séculos me sufocava! Ele veio
falar comigo rapidamente e saiu pelas mãos de Eduardo. O outro homem
mais velho permaneceu ali e me disse logo que seu amigo já ia partir dia
4 de maio. Eu gelei! Já dia 4! Não é possível!
Ele, o misterioso homem,
volta e se aproxima novamente de mim e se agacha a minha frente.
Travamos um diálogo sincero, ele falou dele, uma boa conversa, uma boa
pessoa. Sua mãezinha havia falecido e ele estava no Brasil por isso e já
ia partir para Portugal, onde vive e trabalha, apesar de brasileiro Para
mim foi um baque muito grande, em tão pouco tempo, tão poucos minutos
ter meu sentimento parado no ar, como um grito que não foi dado.
Decepcionada, fui para casa, na realidade, no interior de meu ser,
lamentando não ficar. Passado algum tempo, já em minha quente cama, meu
celular toca. Minha filha facilitou aquela voz marcante e sensual a
chegar aos meus ouvidos e eu não segui a minha intuição. Não voltei para
reencontrá-lo. Fiquei pensando no dia seguinte sobre tudo. Ele não me
procurou, apesar da promessa. Fomos nos reencontrar justamente no dia
23, feriado de São Jorge que por um acaso me colocou de novo a sua
frente e eu o deixei fugir novamente, apesar de sentir uma tremenda
atração quando o corpo e alma gritaram para ficar. A sensação foi mútua,
ele estava bastante motivado pela minha presença. Sua pele irradiava
atração, numa química mágica. No entanto, deixei-o escapar mais uma vez.
Passaram-se uns poucos dias e parti de Vargem Grande para um compromisso
de trabalho em São Paulo e em São José do Rio Preto. Meu coração e minha
mente sangravam na minha própria partida porque sabia que ele partiria
dia 4 e não o veria nunca mais. Eu me perguntava por que, em pouco
tempo, eu me seduzira por aquele homem que nem um beijo eu dera! Algo à
primeira vista? Mistérios dos deuses? Curiosidade? Destino ou apenas uma
emoção passageira? Um grito e um beijo ficaram parados no ar! As mãos se
foram e os olhares despedaçados.
Peguei meu avião e em
Sampa, tomei a atitude de telefonar para ele e contar, sinceramente,
toda minha inquietude interior. Ele, surpreso, calmo, solidário e
carinhoso, delicadamente ouviu e partiu em seu vôo mágico, elegante e
internacional. O pássaro que aqui ficou teve as asas quebradas, o
coração partido e as lembranças atormentando o pseudo desinteresse,
massacrado pelos calos da vida. A pele ressecada da foca jogada ao fundo
do mar deve restabelecer-se periodicamente ao fortalecimento da alma Os
ossos jogados ao fundo do mar pela cultura imposta devem reconstituir-se
por si mesmo ao som e aos olhos da conscientização de quem somos como
mulheres. É o ciclo da vida. É ridículo pensar insucessos do passado!
Agora, o Bem-Te-Vi canta,
majestosamente, todos os dias, acorda feliz e relembra esse momento
iluminado e principalmente espiritual. Foram poucos minutos que não
fazem parte do tempo comum da humanidade, mas fazem parte de um “Tempo
Interior”, o verdadeiro Tempo. O Bem-Te-Vi canta e conta que te viu
_amor _ e te vê sempre em belos sonhos, como num grande sonho a mirar a
bela Restinga de Marambaia de longe e do alto do morro. Os olhos olham
magnanimamente e se perdem no infinito azul do mar. E uma Paz se forma
ao constatar tanta Luz. Esse é o misterioso significado daquilo que
precisava ser desvelado e que corria de um lado para outro nas águas,
nos ares, nos mangues e terras guaratibanas _ o Sagrado Manguezal_ justo
no dia da inconfidência mineira, dia 21 de abril quando Tiradentes foi
traído pela colonização lusa brasileira em 1792, colonização essa que se
opôs às reivindicações legítimas dos proprietários rurais, intelectuais,
clérigos, poetas, escritores e militares descontentes com os impostos
que a Coroa portuguesa impunha a eles e em luta pela libertação das
grandes Minas Gerais. Ali a conspiração foi desmantelada. O tempo passou
e Tiradentes tornou-se um líder e referência brasileira. Minas Gerais,
especificamente a Lagoa Santa, é a primeira terra firme que emergiu no
Brasil há milhões de anos das águas tão puras e cristalinas do planeta
Terra. Tiradentes é sagrado como a Terra. Aquele dia foi sagrado para
mim.
Tiradentes foi traído e
eu traí a mim mesma, mas fico na história também pela força do esqueleto
constituído e das carnes e peles restabelecidas pela única lágrima de
amor de homens que derramam suas lágrimas pelas mulheres do mundo: a
sensibilidade masculina e ele... O homem misterioso de Vargem Grande,
brasileiro com forte sotaque português de Portugal, demonstrou isso!
Esse deve ser o ciclo da vida. Essa avalanche de sentidos e iluminação
foi perpetuada pelo dia 23 de abril, dia de S. Jorge Guerreiro, o
buscador da paz. O beijo estancado no ar e o sonho sufocado não foram
concretizados, mas jamais serão esquecidos, como a força do homem e da
mulher que se unem pelas mãos do Divino, seja lá por quais razões, sejam
pela irmandade, pela sexualidade e sensualidade, pela solidariedade,
pelo amor ou pelo próprio acaso e a própria efemeridade do tempo. |