REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 06

 

Era dia 21 de abril de 2010, marco da Inconfidência mineira, dia de Tiradentes, no Brasil.

Tínhamos passado o dia na Barra de Guaratiba, lugar mágico que freqüento há mais de vinte anos. Ali a gente come caranguejo com as mãos, se debruça sobre o guaiamu para quebrar aquelas patas duras e saborosas e me lembro de minha avó indígena Maria de Lourdes comendo seu pirãozinho fazendo bolinhas com as mãos, e mamãe enchendo de farinha e pimenta as casquinhas das costas daqueles crustáceos.

O quanto de maravilhoso elas me ensinaram na relação Natureza-Terra-Humanidade! Estávamos ali naquele santuário guaratibano, em mar aberto, uma verdadeira biodiversidade. O ar puro, o cheiro do peixe assado, do camarão, dos frutos do mar, um ar quase sagrado. Era um feriado de sol fresco, tão fresco que o vento batia à minha pele e eu sentia a leveza do ser e o prazer de estar ali, próximo ao balneário. Ao lado só via as copas das árvores, à frente a estrada que conduzia ao desconhecido; ao lado, o manguezal ainda intacto cheinho de caranguejinhos caminhando; acima, o sol paradisíaco e um céu azul formoso anunciando um “mistério”. Aquele dia tinha um ar de algo a ser desvelado, ou algo a ser anunciado.

 

 
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Maria Estela Guedes  
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ELIANE POTIGUARA

 

O beijo estancado no ar

 
 
 
 
 
 
 
 

Comemos, bebemos, rimos das histórias contadas ao fulgor do êxtase de cada um. Ríamos como crianças, sem nenhuma responsabilidade. Mas algo havia no ar. O prenúncio do futuro. O prenúncio dos sentidos. Algo inquietante fora da normalidade de meus dias tão meditativos, tão atropelados pelo volume de trabalho, rotinas e responsabilidades. É ridículo relembrar insucessos do passado e é promissor fortalecer o sagrado “Eu” que habita em nós, na sutileza da existência. É ridículo quando se tem o sol pela frente, sofrer a dor do coração. Mas somos humanos. A ascensão à perfeição ainda não aconteceu, portanto lágrimas são permitidas. E como dói o coração!

O ar angelical permaneceu toda tarde em explosões de risos dos que estavam em volta da mesa. De súbito, a estrada que conduzia ao desconhecido, começou a lançar seus gritos internos para que eu a pegasse e me fosse dali, já escurecendo. Ficamos um pouco mais neste lugar transcendental e as mentes descontroladas saboreavam os pensamentos alegres daquele mágico dia 21 de abril, quase véspera da véspera do outro feriado: Dia de S. Jorge, o padroeiro do povo brasileiro, o padroeiro dos jogadores de futebol, dos comerciantes, dos marginais, dos negros, dos despossuídos, dos favelados, dos injustiçados, enfim do povo brasileiro tão sofrido, mas feliz e cantante. Minha avó Maria de Lourdes, a velha índia, todos os anos ia nesse dia à Igreja de S. Jorge bem cedinho da manhã, pegar seu pãozinho para colocá-lo dentro da farinheira. Ficava numa fila por mais de duas horas. Era um ato místico e sagrado que significava a prosperidade, numa tentativa de ascensão social. Ali nunca faltaria comida naquela casa, dizia a minha avó, apesar de nossa pobreza imigrante das terras indígenas Potiguara, nordeste do Brasil, motivada pela violência do grande latifúndio de algodão dos neocolonizadores ingleses.

Eu sabia que a estrada estava me esperando saltitando de felicidade a minha frente. Fomos então. Chegamos a Vargem Grande, bairro do Rio de Janeiro, campestre, rústico, meio country tupiniquim, lugar onde as montanhas conversam conosco em baixinha voz, onde passamos feriados e finais de semana para relaxar ou para escrever. Visitamos a feirinha popular onde se come churrasquinho, churros, como num parque de diversão e onde os casais prometem juras de amor e as crianças e cachorros correm de um lado para outro, ao som do Axé Music, forrós, pagodes, sambas e músicas sertanejas. Sentamos ali de novo.

Eu já havia deixado a estrada para trás, mas ela me pedia que eu seguisse poucos passos à frente apenas. Foi quando levantamos dali e fomos ao Bar do Marcelo, o “Petisco da Vargem”. Eu sentia uma alegria contagiante ao encontrar Eduardo, nosso amigão. Ele jantava sozinho. Pedimos umas bebidas e ali ficamos mais um pouco saboreando a fantasia dos descompromissados e rindo a alegria, a nobreza dos deuses.

Aquele ar misterioso de Guaratiba, eu o trouxe comigo e se prolongou por toda a noite. A música implorava para ser ouvida e foi quando Tajira sugeriu que fôssemos para fora do bar, sentar ao ar livre na estreita calçada e ouvir melodias românticas e alegres. Ao passar pela porta do bar, minha filha me apresentara a dois senhores, um deles mais novo, bonito e forte, tinha um olhar contagiante e perturbador. Apertei as mãos másculas e em seguida fui sentar-me com a família, um "poquito" à frente. Foi quando me encabulei com o olhar penetrante desse homem formoso, quase implorando o meu. Desconcertei-me, porque há mais de um ano, não me interessava por ninguém. Não mirava ninguém assim. Havia fechado meus sentimentos, meu coração e tudo em mim. Tive dúvidas, mas obedecia a ordem do ar que me seguiu o dia inteiro, desde cedo na Barra de Guaratiba: o prenúncio do alvorecer!

Fez-se a luz, então. A vida ressurgiu do breu, mas eu sentia enorme timidez, no entanto querendo ardentemente penetrar no olhar tão desconhecido e que me atraía como um ímã. Em pouco tempo ele e seu amigo se aproximaram de nossa pequena mesa e eu tremi. Eu os convidei a sentar porque gentilmente nos ofereceu uma bebida.

De imediato ele não sentou e continuou a me fitar. Tirei os óculos, tirei a máscara, mas a máscara não queria sair. A máscara dos séculos me sufocava! Ele veio falar comigo rapidamente e saiu pelas mãos de Eduardo. O outro homem mais velho permaneceu ali e me disse logo que seu amigo já ia partir dia 4 de maio. Eu gelei! Já dia 4! Não é possível!

Ele, o misterioso homem, volta e se aproxima novamente de mim e se agacha a minha frente. Travamos um diálogo sincero, ele falou dele, uma boa conversa, uma boa pessoa. Sua mãezinha havia falecido e ele estava no Brasil por isso e já ia partir para Portugal, onde vive e trabalha, apesar de brasileiro Para mim foi um baque muito grande, em tão pouco tempo, tão poucos minutos ter meu sentimento parado no ar, como um grito que não foi dado. Decepcionada, fui para casa, na realidade, no interior de meu ser, lamentando não ficar. Passado algum tempo, já em minha quente cama, meu celular toca. Minha filha facilitou aquela voz marcante e sensual a chegar aos meus ouvidos e eu não segui a minha intuição. Não voltei para reencontrá-lo. Fiquei pensando no dia seguinte sobre tudo. Ele não me procurou, apesar da promessa. Fomos nos reencontrar justamente no dia 23, feriado de São Jorge que por um acaso me colocou de novo a sua frente e eu o deixei fugir novamente, apesar de sentir uma tremenda atração quando o corpo e alma gritaram para ficar. A sensação foi mútua, ele estava bastante motivado pela minha presença. Sua pele irradiava atração, numa química mágica. No entanto, deixei-o escapar mais uma vez. Passaram-se uns poucos dias e parti de Vargem Grande para um compromisso de trabalho em São Paulo e em São José do Rio Preto. Meu coração e minha mente sangravam na minha própria partida porque sabia que ele partiria dia 4 e não o veria nunca mais. Eu me perguntava por que, em pouco tempo, eu me seduzira por aquele homem que nem um beijo eu dera! Algo à primeira vista? Mistérios dos deuses? Curiosidade? Destino ou apenas uma emoção passageira? Um grito e um beijo ficaram parados no ar! As mãos se foram e os olhares despedaçados.

Peguei meu avião e em Sampa, tomei a atitude de telefonar para ele e contar, sinceramente, toda minha inquietude interior. Ele, surpreso, calmo, solidário e carinhoso, delicadamente ouviu e partiu em seu vôo mágico, elegante e internacional. O pássaro que aqui ficou teve as asas quebradas, o coração partido e as lembranças atormentando o pseudo desinteresse, massacrado pelos calos da vida. A pele ressecada da foca jogada ao fundo do mar deve restabelecer-se periodicamente ao fortalecimento da alma Os ossos jogados ao fundo do mar pela cultura imposta devem reconstituir-se por si mesmo ao som e aos olhos da conscientização de quem somos como mulheres. É o ciclo da vida.  É ridículo pensar insucessos do passado!

Agora, o Bem-Te-Vi canta, majestosamente, todos os dias, acorda feliz e relembra esse momento iluminado e principalmente espiritual. Foram poucos minutos que não fazem parte do tempo comum da humanidade, mas fazem parte de um “Tempo Interior”, o verdadeiro Tempo. O Bem-Te-Vi canta e conta que te viu _amor _ e te vê sempre em belos sonhos, como num grande sonho a mirar a bela Restinga de Marambaia de longe e do alto do morro. Os olhos olham magnanimamente e se perdem no infinito azul do mar. E uma Paz se forma ao constatar tanta Luz. Esse é o misterioso significado daquilo que precisava ser desvelado e que corria de um lado para outro nas águas, nos ares, nos mangues e terras guaratibanas _ o Sagrado Manguezal_ justo no dia da inconfidência mineira, dia 21 de abril quando Tiradentes foi traído pela colonização lusa brasileira em 1792, colonização essa que se opôs às reivindicações legítimas dos proprietários rurais, intelectuais, clérigos, poetas, escritores e militares descontentes com os impostos que a Coroa portuguesa impunha a eles e em luta pela libertação das grandes Minas Gerais. Ali a conspiração foi desmantelada. O tempo passou e Tiradentes tornou-se um líder e referência brasileira. Minas Gerais, especificamente a Lagoa Santa, é a primeira terra firme que emergiu no Brasil há milhões de anos das águas tão puras e cristalinas do planeta Terra. Tiradentes é sagrado como a Terra. Aquele dia foi sagrado para mim.

Tiradentes foi traído e eu traí a mim mesma, mas fico na história também pela força do esqueleto constituído e das carnes e peles restabelecidas pela única lágrima de amor de homens que derramam suas lágrimas pelas mulheres do mundo: a sensibilidade masculina e ele...  O homem misterioso de Vargem Grande, brasileiro com forte sotaque português de Portugal, demonstrou isso! Esse deve ser o ciclo da vida. Essa avalanche de sentidos e iluminação foi perpetuada pelo dia 23 de abril, dia de S. Jorge Guerreiro, o buscador da paz. O beijo estancado no ar e o sonho sufocado não foram concretizados, mas jamais serão esquecidos, como a força do homem e da mulher que se unem pelas mãos do Divino, seja lá por quais razões, sejam pela irmandade, pela sexualidade e sensualidade, pela solidariedade, pelo amor ou pelo próprio acaso e a própria efemeridade do tempo.

 

   
 

Eliane Potiguara (Brasil)
Foi indicada em 2005  ao Projeto Internacional "Mil mulheres ao Prêmio Nobel da Paz", é escritora, poeta, professora, formada em Letras (Português-Literatura) e Educação, ascendência indígena Potiguara, brasileira, fundadora do GRUMIN / Grupo Mulher-Educação Indígena. Membro do Inbrapi, Nearin, Comitê Intertribal, Ashoka (empreendedores sociais), Associação pela Paz, Cônsul de Poetas Del Mundo. Trabalhou pela Declaração Universal dos Direitos Indígenas na ONU em Genebra. Seu último livro é “METADE CARA, METADE MÁSCARA”, pela Global Editora. Ganhou o Prêmio do PEN CLUB da Inglaterra e do Fundo Livre de Expressão, USA.
Site pessoal: www.elianepotiguara.org.br    
Institucional:   www.grumin.org.br
E-mail:
elianepotiguara@grumin.org.br

 

 

© Maria Estela Guedes
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