Mal
chegaram, amarraram os cavalos na primeira árvore e entraram de rompante
no pequeno compartimento onde apenas se ouviam os gemidos da rapariga.
Gertrudes era jovem, deveria ter uns dezanove anos. O seu rosto alvo e
belo, estava inteiramente transfigurado pelo sofrimento.
O
médico tirou os instrumentos da maleta, pediu água quente, panos,
toalhas e começou a agir com precisão cirúrgica.
Todavia, o choro tão desejado teimava em não se fazer ouvir. O bebé não
estava na posição adequada e parecia já nem sequer evidenciar sinais
vitais. Provavelmente havia morrido asfixiado pelo demorado trabalho de
parto. Se tivesse chegado mais cedo, talvez a situação fosse outra.
Agora importava retirá-lo e salvar a mãe, que parecia percorrer o
limiar entre a vida e a morte.
Lá
fora, apenas o silêncio ecoava contra as paredes brancas da casa. Uma
chuva miudinha principiava a acariciar tristemente a terra. De súbito,
uma prece lânguida e sofrida erguia-se. Era a avó da parturiente que
rezava e fazia promessas à Virgem Maria.
O
médico prosseguiu o árduo combate contra a morte. Conhecia as suas
limitações, sabia que muitos destinos se encontravam mais nas mãos de
Deus do que nas suas. Também ele se sentiu impotente e em pensamento
ergueu uma oração simples e curta.
Finalmente a hemorragia abrandou, o corpo roxo de uma menina foi
arrancado daquele ventre rasgado, onde a semente germinou e morreu antes
de florescer.
-
Doutor, é menino ou menina? – murmurou a pobre rapariga, com o fio de
voz que lhe restava – Porque não chora? Não oiço nada...
-
Filha, agora vais descansar... vou dar-te um remédio para as dores. –
respondeu a meia-voz, ignorando a questão colocada.
Acabou por adormecer, num sono pesado, do qual não chegou a acordar.
Sentiu a revolta a minar-lhe as entranhas. De que servia afinal toda a
ciência, todos os anos de estudo e de trabalho? Naqueles momentos tudo
parecia absurdo. A morte seria sempre mais tarde ou mais cedo a suprema
vencedora. Afinal qualquer combate visaria apenas o seu adiamento até ao
dia marcado pelo destino. Ou seria afinal contra esse destino que ele
combatia? Já passara por muitas situações de derrota, mas sempre que se
repetiam era com a intensidade da primeira vez. Além disso, tratava-se
de uma vida por cumprir e de outra ainda a despontar na fogosidade da
juventude.
O
médico saiu apressadamente, recusando qualquer pagamento. Pensou
confortar o pai aflito e a avó adiada e desesperada, mas as palavras
morreram-lhe na garganta.
-
Mas espere, doutor – pediu Custódio, retendo-o no limiar do portão
enferrujado – Então, a minha Gertrudes? O pior já passou, não foi, ao
menos ela... vai ficar bem?
-
Meu filho, o que a medicina pôde fazer já foi feito... Neste momento,
ela tomou todos os medicamentos possíveis, a hemorragia parou, mas
perdeu muito sangue. Agora ela está nas mãos de Deus. Resta rezar. Se
virem que piora chamem-me imediatamente.
Atravessou a aldeia branca, enquanto o sino da igreja derramava doze
lânguidas badaladas. Na aflição nem dera pela passagem do tempo. Nem
sequer lhe apetecia almoçar. Deteve-se por instantes a contemplar a
paleta de cores primaveris que vestia os campos.
Assim que colocou a chave na fechadura, ouviu uma voz aflita, quase
asfixiada que o chamava:
-Senhor doutor, senhor doutor, acuda ao meu rapaz que caiu de cima da
alfarrobeira... ia cortar uns ramos e desequilibrou-se.
Era
a dona Lucília, que viera a correr desalmadamente desde um terreno
situado a poucos quilómetros de Estoi, onde ela e o filho trabalhavam.
-Tenha calma, mulher, é só ir buscar aqui mais uns remédios e uma
ligadura. Aparelho a égua num instante e vamos já para lá.
Os
momentos que se seguiram foram marcados por acções tão rápidas e
mecânicas, que Emiliano só recordava intensamente o instante em que
chegara perto do pobre rapaz inconsciente, jazendo sobre um tufo de
ervas, avermelhadas pelo sangue que brotava de uma ferida na cabeça. Com
alguma dificuldade, conseguiu reanimá-lo e sentiu-se mais tranquilo
quando os grandes olhos azuis de Joaquim o fitaram, com o pasmo inicial
dos recém-nascidos. Não se recordava do que lhe tinha sucedido e não
percebia porque sangrava e se encontrava a mãe tão aflita.
Bastou ligar a ferida e estancar a hemorragia, não parecia ter havido
nenhum traumatismo grave, apesar da altura de onde caíra.
-
Eh rapaz, tens de acender uma velinha à Nossa Senhora, olha que isto foi
quase milagre, cair de uma árvore tão alta e ficar só com uma ferida.
Agora vais para casa e descansas. Amanhã vou lá fazer-te o curativo.
Regressara passadas horas Emiliano a casa, exausto. Pouco depois soubera
que Gertrudes havia falecido. Adormecera e não voltara a acordar, como
se tivesse tido pressa de se juntar à filha que não nascera. Era assim a
vida, sulcada pela dor da perda, pela luta impotente contra a morte e o
sofrimento, mas também ornamentada por algumas pequenas vitórias, como a
recuperação do Joaquim.
Contudo aquele era o momento mágico do crepúsculo, quando sentado no seu
cadeirão, com uma folha de papel poisada no colo, toda a dor, o
sofrimento, mas também as cores pujantes da natureza se convertiam em
poesia. Além de todas as incertezas, os sentidos, as sensações, os
sonhos ainda por ter, entardeciam em cada verso. |