|
|
|
REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 06
|
|
Perdoem-me os que, pelo título, antecipam longo estudo, com
aprofundamento teórico e antológica diversidade de exemplos.
Prefiro deixar isso para outro lugar, conversando
apenas convosco através da evocação de algumas velhas fotografias
daquilo que, parafraseando Óscar Lopes, mestre de gerações, poderei
designar pelo nosso “álbum de família”, dos nossos autores
oitocentistas, assinalando a luz e as sombras que os fazem contrastar no
seu retratismo.
Sendo a Arte o lugar que nos oferece cristalizações
do imaginário colectivo e singular, permitindo cartografá-lo, assinalar
linhagens e itinerários, assim como descontinuidades, o séc. XIX
oferece-nos uma constelação riquíssima expressiva de um processo de
autognose que implica o esteta comprometido na (re)construção da
identidade colectiva. Folheemos, pois, o álbum literário… |
|
|
DIREÇÃO |
|
Maria Estela Guedes |
|
Série Anterior |
|
Índice de Autores |
|
Nova
Série | Página Principal |
|
SÍTIOS ALIADOS |
|
TriploII - Blog do TriploV |
|
TriploV |
|
Agulha Hispânica |
|
Arditura |
|
Bule,
O |
|
Contrário do Tempo, O |
|
Domador de Sonhos |
|
Jornal de Poesia |
|
|
|
ANNABELA RITA
Portugal em retratos
de fim-de-século oitocentista
(entre Eça e Junqueiro) |
|
Annabela Rita (CLEPUL/FLUL) |
|
|
|
|
|
|
|
|
Como pano de fundo, a reflexão ensaística, de Garrett
a Antero e a Oliveira Martins e destes até ao fim-de-século, a imagem de
um Portugal que se “agigantou” nos seus feitos expansionistas e que
decaiu desde aí até legitimar a sua sobrevivência num desejo íntimo e
irredutível (1) vai-se redesenhando, sob diferentes perspectivas focais,
mas vamos à literatura, entre o drama, a poesia e a ficção, espelhos bem
mais complexos e medusantes…
Retratado de perfil, Portugal tende a ser
representado por pena nobilitante, com tinta mitificadora, através de
personalidades que a História preservou do esquecimento, sinalizando com
elas o percurso da sua evolução, denunciando uma perspectiva “heróica”,
lapidar, hierática (2). Memória configurada para a colectividade visando
um reconhecimento identitário, concretizada na medalhística, na pintura,
na escultura, etc.: os que as circunstâncias elegeram ao olhar colectivo
e que as instituições perpetuaram em pose.
A outra face, no entanto, também existe, oculta nas
sombras a dor e o sofrimento que a Trágico-Marítima sublinha, e
exprime-se em grito agónico repercutido em eco do génio épico-lírico,
esse Camões esfomeado de Gomes Leal (A Fome de Camões, 1880) que se
arrasta como fantasma pelas vielas escuras da cidade e da pátria que foi
madrasta e que com ele se esvai…
Gomes Leal descreve um país anoitecido pela dor e
pela decadência, simbolizado no seu épico (A Fome de Camões):
“Quando no mundo o Génio abandonado
expira à fome e ao frio, indignamente,
um lívido remorso ensanguentado
sacode o mundo tenebrosamente.
Como o arrepio dum terror sagrado,
alguma cousa grita intimamente:
como uma voz terrível que suspira
nas cordas vingativas duma Lira.” (Canto
Primeiro)
Mas, mais do que isso, declara que a Literatura é voz
questionante obrigando à reflexão, à autognose, à definição de uma
identidade gerada na História da colectividade teleologicamente
concebida:
“E essa Lira é só feita de ameaças.
Essa Lira é só feita de vinganças.
Essa Lira só fala de desgraças,
d'antigos crimes, e cruéis lembranças.
Essa Lira espedaça e quebra as taças,
cala os festins, e faz parar as danças,
e essa Lira ai! da trágica inocência
é a Lira terrível da Consciência.
E a Lira diz: ‘O que fizeste, ó mundo!
das grandes almas únicas, sagradas,
das grandes frontes dum sonhar profundo
que eram as frontes as mais bem amadas?
O que fizeste desse abismo fundo
de vontades mais rijas do que espadas,
desses simples e santos corações
que faziam chorar as multidões?
‘O que fizeste dessas línguas d'ouro
que sabiam pregar como os profetas?
Como enxugaste o seu comprido choro?
Como arrancaste as pontiagudas setas?
O que fizeste, ó mundo! do tesouro
que vós homens mortais chamais poetas:
mas cujo nome d'harmonias belas
só o sabem as Cousas e as Estrelas?” (Canto
Primeiro)
E também a institui como Sibila que responde,
legitimando-lhe o discurso:
“‘Deitaste ao lodo, à rua, e aviltamento
esses que adora a Natureza inteira,
esmagaste entre as pedras o talento,
os seus crânios quebraste, na cegueira!
As suas cinzas espalhaste ao vento!
Profanaste os seus louros na poeira!
E repousam sem lástimas nem lousas
os que viam as lágrimas das Cousas!...
‘Por isso me ouvirás, em toda a parte
como um soluço e um grito vingador,
numa alta torre, atrás dum baluarte,
entre os festins, nas convulsões do amor.
Na paz, ou levantando o estandarte
da guerra, escutarás a minha Dor.
Porque eu, ó mundo! guarda-o na lembrança,
– Eu sou a Lira, e a minha voz Vingança!’
E o mundo escuta, indefinidamente,
a voz da Lira a protestar terrível.
Ouve-a na sombra, ou pelo sol poente,
se o vento dobra o canavial flexível
ouve-a nos sonhos, ouve-a intimamente,
numa contínua música inflexível,
até que enfim vencido nesta liça
o mundo clama – Faça-se a Justiça! –” (Canto
Primeiro)
Verbo clivado entre pergunta e resposta, exprimindo
uma consciência em busca de si…
De um Camões garrettiano que, nascido sob o signo da
palavra “Saudade!”, "[e]xpirou co'a pátria", plasmado nos moldes
textuais da sua epopeia e por ela, imaginariamente emoldurado, em jeito
de contra-canto dentro do canto, lírica emergindo da épica, até ao
fim-de-século expresso numa Finis Patriae (1890), onde “é negra a terra,
é negra a noite, é negro o luar”, pátria que mergulhará no húmus
brandoniano (1917), o sentimento da decadência nacional cresce parecendo
alimentar-se desse movimento reflexivo de arqueologia da identidade
colectiva.
Esse movimento de autognose conduz a figurações
expressivas do imaginário oitocentista, na confluência do pensamento
religioso e do profano, figurações emergindo das suas matrizes mais
profundas, fundadas na memória do passado, na ânsia do futuro, na
depressão ou na esperança do presente, entre sonho, utopia e realidade…
Por isso, as linhagens dividem-se entre a versão
nocturna e a diurna: muitas tendem a ser figurações emanando das sombras
da realidade anoitecida e tenebrosa, quadros exprimindo telúrica e
teatralmente o sentimento do inconsciente colectivo; outras tipificam
uma personalidade e um presente nos seus traços mais marcantes.
1.
Uma das figurações dessa linhagem sombria é a da
Pátria (1896) de Junqueiro, cuja epígrafe (“Esta é a ditosa pátria minha
amada.”, Camões) a impõe em contra-luz e contraponto relativamente à sua
elaboração épica camoniana e instituindo ambas as obras como ‘padrões’
do ciclo nacional de esplendor e decadência, refractada em Finis Patriae
(1890), polifonia dramática de um povo fragmentado, desorientado,
agónico, impotente e ressentido.
Guerra Junqueiro (3) reconfigura a Pátria portuguesa
numa personagem marcante: o Doido. Primeiro, em Finis Patriae (1890),
fixa-lhe a genealogia, apresentando-a “À Mocidade das Escolas” em
epígrafe (a primeira) que a legitima institucionalmente no discurso da
História de Portugal (1879) de Oliveira Martins:
“Por isso a descendência de Nun'Álvares, um herói e
um santo, foi uma sucessão de intrigantes mesquinhos, de maus doidos, ou
de egoístas vulgares. A grande herança do herói esmagou os seus
descendentes.” (itálico meu)
Em Pátria (1896),
Junqueiro faz surgir teatralmente essa personagem enquadrada por
nocturno tormentoso, trovejante (“Noite do tormenta. Céu caliginoso, mar
em fúria, ventanias trágicas, relâmpagos distantes.”), precedida pela
sua designação minusculada (“o doido”) e pela sua “voz trágica”: Doido
sem nome nem vestígios de consciência da sua identidade, que anda
perdido de si, alienado, com um livro na mão, “um velho livro em
pedaços”, volume semi-despedaçado sem “princípio, nem fim; trapos todas
as folhas” (cena VI), em jeito de vida suspensa na desorientação por
falta de coordenadas (temporais, espaciais), onde se lê a epígrafe da
obra e outros versos reconhecíveis d’ Os Lusíadas. Palavra sobre a
palavra em si mesma reflectida. Memória épica e colectiva dissolvendo-se
nas folhas perdidas, no título elidido, no volume desmanchado, no nome e
identidade esquecidos…
E, se o Doido surge,
entre relâmpagos e trovoada,
“enorme, cadavérico, envolto em farrapos. As longos barbas brancas
flutuando. Numa das mãos o bordão. Na outra um velho livro em pedaços.
Lembra um doido e um profeta, D. Quixote e o rei Lear. O olhar, cavo e
misterioso, é de sonâmbulo e de vidente.” (cena VI),
o seu bordão evoca também o do viajante e o do
peregrino que se conciliam no bordão garrettiano das Viagens,
convocando, quer o bíblico Moisés, quer a longuíssima tradição da
literatura de viagens, quer todo o imaginário nacional expansionista,
combinando a cruz e a espada, e o seu discurso da perda e da queda na
miséria, o seu pranto, assemelha-se ao da vicentina Maria Parda, ao do
Lusíada nobriano, ao de toda uma linhagem de perspectivações da
decadência que desembocará no encontro pessoano com a espectralidade dos
seus fantasmas, diversidade susceptível de se sintetizar num só,
“aparição estranha e luminosa”: Nun’Álvares, “guerreiro” e “monge”, “S.
Portugal em Ser”.
Do confronto do Doido com o seu fantasma e ancestral
(Nun’Álvares) (4), emerge, progressivamente, a consciência identitária,
onde indivíduo e colectividade confluem e se fundem simbolicamente:
“Oh, que figura estranha e luminosa!
Que aparição aquela!...
E eu já a vi... eu já a vi... lembro-me dela...
Mas onde foi?... Cabeça tonta! ... Onde seria?!...
Ah, ah, já me recordo!... quando eu vivia,
Tive assim um parente... um irmão... Um irmão?
Eu nunca tive irmão!...
Oh, que loucura! oh, que loucura!
Mas eu conheço este fantasma... esta figura...
Aquele ar singular de guerreiro e de monge...
Eu conheço-o... Mas onde foi? quando é que foi? lá muito ao longe...
Muito ao longe... Ora espera!... Já sei! Não era irmão, não era!...
Fui eu próprio!... Fui eu assim!... Fui eu! fui eu! fui eu!
É tal e qual... é exacto,
O meu retrato!...
Fui eu!...
................................................................................
Ah, fui eu... um outro eu... que andou no mundo e
já morreu!” (cena XXII)
Este processo de auto-reconhecimento do Doido de
Junqueiro decalca-se no itinerário parenético, nesse encontro de si
consigo mesmo e com a transcendência que lhe devolve a alma (“A alma
embebe-se-lhe no corpo.”, cena XXIII), encontro concluído no beijo à
“fúlgida epopeia” da sua história e da sua memória, mas também o
reconstrói para a crucificação final sob a legenda “Portugal, rei do
Oriente!”, representando a crucificação arquetípica, de Cristo.
Por fim, representando as duas idades do presente
crucificado, sacrificialmente, passado e potencialidade de futuro,
atravessam a névoa um velho camponês e uma criança
“Clareia, roxa, a manhã de Novembro, triste lençol de misericórdia, a
que limpassem forcas ou calvários. Um aldeão senil e vagabundo, caminha
ao longe, tropegamente, como um fantasma, em direcção à cruz. Roto,
cheio de lama e de sangue, no bordão aos ombros uma taleiga, e,
escondida no peito, aninhada nos braços, uma criancinha forte e
luminosa.”
No campo devastado e desértico faz-se reconhecer
esse Alcácer Quibir da tragédia colectiva, mas na claridade “roxa”
desenha-se a esperança de renascimento do imaginário sebástico,
messiânico, cristalizado na luminosidade espiritualizadora da
criança. Diante da cruz, o aldeão, figura telúrica e da consciência
comunitária (mesmo senil), faz a identificação entre o Doido (maiusculado
e minusculado) e Deus, identificação necessária até para o ritual
fúnebre.
E a criança encontra a espada nacional (o
montante de Nun’Álvares) (5) caída e a ergue, retomando a cena
fundadora do ciclo arturiano e a da renovação nacional
(Aljubarrota), mas também reescrevendo, no gesto do braço, a
transfiguração descrita por Mateus no Novo Testamento e representada
por Rafael (1518-1520), onde uma criança hesita entre o assombro e a
alienação.
Entre a cruz e a espada, a vida e a morte, a
guerra e a paz, num campo de batalha e redenção, desolação e
assombro, define-se a identidade nacional.
Nessa cena, portanto, o futuro configura-se na
retomada, na espiral de um devir nacional onde o imaginário cristão
mescla a ortodoxia e a heterodoxia, o discurso bíblico e o literário
(ciclo arturiano e afins), a voz erudita e a popular. É a redenção
de um povo, de uma nação, de uma Pátria, de alma com fundas e
sombreadas raízes, banhada, por fim, de luz vital e de canto
telúrico, em comentário de voz off que vectoria a leitura:
“Luz enigmática, vem de longe, do fundo do passado, morrendo ao
longe, em sonho, nas obscuridades do porvir... Esse velho fantasma,
com esse menino ao colo, lembra a derradeira árvore dum bosque,
árvore nua e carcomida, com uma florinha última no tronco. Flor de
morte!... flor d'esp'rança!... Nasceu dum cadáver, e dela se hão-de
gerar, talvez, os rumorosos bosques d'amanhã!... /…/ Os braços da
criancinha estendem-se com avidez, numa alegria doida... Nobre
montante, qual o teu destino? Sulcarás, relha de arado, a gleba
deserta desse camponês? Nas mãos dessa criança, um dia homem,
brilharás acaso, espada de fogo e de justiça? Mistério... mistério.
- Invisivelmente, saudando a luz, as cotovias gorjeiam...”
Na figuração metamórfica de densidade
cristológica de que a Pátria é exemplo marcante e que atravessa o
século na representação e na gnoseologia da identidade nacional, há,
naturalmente, descontinuidades: mudam as penas, alteram-se os
retratos… |
|
|
|
2. |
|
Contrastando com essa linhagem nocturna e
trágica, embora também no quadro do reconhecimento de uma decadência
nacional, ocorrem-me dois retratos queirosianos da identidade
nacional, onde a encenação diurna emoldura o traço vigoroso (A
Ilustre Casa de Ramires, 1890) ou a ironia desiludida (O Crime do
Padre Amaro, 3ª ed., 1899), emergindo do diálogo entre
representantes dos dois poderes, temporal e religioso, as duas
forças tradicionais da sociedade portuguesa.
No primeiro caso, a imagem de uma personagem
conclui A Ilustre Casa de Ramires (1900), impondo, na concisão
contundente de uma só palavra, afirmativa e constativa, um
reconhecimento e uma identificação incontornáveis entre o indivíduo
e a colectividade, legenda sem margem a objecção ou a discordância:
“Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso
na estrada, com o coco à banda, reabotoando a sobrecasaca, como
sempre que estabelecia um resumo:
- Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E
sabem vocês, sabe o Sr. padre Soeiro quem ele me lembra?
- Quem?
- Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquele todo de
Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a imensa bondade, que
notou o Sr. padre Soeiro... Os fogachos e entusiasmos, que
acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito
aferro quando se fila à sua ideia... A generosidade, o desleixo,
a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita
honra, uns escrúpulos, quase pueris, não é verdade?... A
imaginação que o leva sempre a exagerar até à mentira, e ao
mesmo tempo um espírito prático, sempre atento à realidade útil.
A viveza, a facilidade em compreender, em apanhar... A esperança
constante nalgum milagre, no velho milagre de Ourique, que
sanará todas as dificuldades... A vaidade, o gosto de se
arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na
rua o braço a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de
tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrível de si mesmo,
que o acovarda, o encolhe, até que um dia se decide, e aparece
um herói, que tudo arrasa... Até aquela antiguidade de raça,
aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos... Até agora aquele
arranque para a África... Assim todo completo, com o bem, com o
mal, sabem vocês quem ele me lembra?
- Quem?...
- Portugal." (6)
A ficção plasma a saga familiar iconicamente
representada na velha Torre e na novela em progresso (A Torre de D.
Ramires) na história colectiva, de que se pretende, até certo ponto,
representação fragmentária (e plagiada), impondo um seu membro como
símbolo de um Portugal entre a Europa e a África, entre os
objectivos e as personagens de outrora e os do presente
oitocentista, país desequilibrado no mapa-mundo do nosso autor. O
território de outrora insinua-se fuga do futuro europeu cujos
atributos Eça consagrará, com ambígua ironia, no conto
“Civilização” e n’A Cidade e as Serras (p. p.,1901) …
No segundo caso, recordo a cena com que conclui O
Crime do Padre Amaro (3ª ed., 1899) de Eça de Queirós: o conde de
Ribamar aponta com gesto abrangente um quadro da vida citadina onde
se evidenciavam sinais da “degenerescência de raça” e da decadência
social, declarando-os, enfaticamente, a “animação” e a
“prosperidade” de um povo que fazia a “inveja da Europa!”.
Sob o olhar frio da estátua de Camões “cercado
dos cronistas e dos poetas heróicos da antiga pátria – pátria para
sempre passada, memória quase perdida!”, as palavras finais do
narrador são legenda ao livro, à ficção e à nação, legenda
nostálgica, declaração amorosa, lastimosa…
Poderia convocar aqui e agora outros retratos da
decadência nacional simbolizada em paisagem com figuras ou em
personagens, muitos e diversos na suas modulações, muitos deles com
a Europa em contra-luz, na linhagem do imaginário dos
estrangeirados, referência ou imagem prestigiada com a qual Portugal
se vai confrontando, oscilando entre o desejo de aproximação e o
desânimo pela distância, embora, às vezes, com a insinuação de algum
orgulho ainda de uma especificidade sobrevivente em que beberá,
depois e por outros motivos, a sua revalorização como país
tradicional, familiar e provinciano, mesmo nas suas urbes.
Em “O Sentimento dum Ocidental” (1880), Cesário
assinala o ciclo da heroicidade à decadência, quer na própria figura
de Camões, de guerreiro e náufrago e à escultura em recinto vulgar,
quer na progressão da noite e dos fantasmas da memória colectiva que
o verbo poético evoca e exprime, transmitindo o legado patrimonial
identitário:
“E eu sigo, como
as linhas de uma pauta
A dupla
correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no
silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.”
(“Horas Mortas”)
Prefiro deixar a observação suspensa na
incompletude retratista, em jeito de esboço com notas para um
trabalho a fazer… |
|
|
|
Notas |
|
(1) Portugal na Balança da Europa
(1830) é um dos textos que nos oferecem a imagem de um “gigante” ou
“colosso” a declinar e a questionar as razões e as possibilidades da
sua sobrevivência como país soberano...
(2) Apesar de evolução do discurso
histórico, da transformação do seu modo de olhar a História,
multiplicam-se os exemplos da persistência desse tipo de
perspectivação, em especial nas publicações que visam o grande
público. É o caso, p. ex., de volumes como Portugal 860 anos
(Lisboa, Edimpresa Editora, col. Super-Interessante-“Os Livros”,
Lda., 2003), que acompanha a revista Super-Interessante (66), de
Outubro de 2003, pois especifica e concretiza esse período no
subtítulo Figuras 1580-1926. Os portugueses mais destacados nos
campos da política, das armas, da religião, da cultura e das artes:
título e subtítulo fazem coincidir Portugal com esses portugueses.
(3) Sobre a reavaliação da
obra de Guerra Junqueiro, cf. o projecto “Revisitar/Descobrir
Guerra Junqueiro”, dirigido por Henrique Manuel Pereira (http://guerrajunqueiro.wordpress.com/tag/henrique-manuel-s-pereira/).
(4) De acordo com alguns
autores, a estirpe do Condestável também estava marcada por
personalidades excessivas, violentas e, até, pela loucura (Cf.,
p. ex., José Júlio Dantas. Outros Tempos,
Companhia Editora Portugal-Brasil, Lisboa, 1909).
(5) Trata-se de um dos
símbolos icónicos de uma identidade indomável e independente,
central em quadros (como o de Luciano Freire, de 1904). D. Nuno
Álvares Pereira, chamado por sua mãe “meu Galaaz”, quis torná-la
numa versão nacional da Excalibur arturiana e é conhecida a
história do trabalho da sua transformação encomendado ao
alfageme de Santarém, que lhe profetizou o sucesso. Nela, mandou
inscrever “Excelsus super omnes gentes Dominicus” numa face e,
na outra, “Maria”, e dentro de um círculo as palavras Dom Nuno
Álvaro, vendo-se ainda uma contra-marca, com a cruz entrelaçada
por flores.
(6) Eça de Queirós. A Ilustre
casa de Ramires (edição crítica de Elena Losada Soler), Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999, pp. 455-456. |
|
|
|
Annabela Rita (Portugal)
Professora na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, é Doutorada em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea
pela Universidade de Lisboa e tem a Agregação em Literatura pela
Universidade de Aveiro.
Integrou a MRPB - Missão para o Relatório sobre o Processo de Bolonha
(2003-04) e, actualmente, é Conselheira para a Igualdade de
Oportunidades do MCTES.
Presidente das Direcções do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas
Lusófonas e Europeias), da APT - Associação Portuguesa de Tradutores e
do Conselho Consultivo da CompaRes-International Society for
Iberian-Slavonic Studies, Administradora do OLP (Observatório da Língua
Portuguesa), integra os Conselhos Consultivos da FMP (Fundação Marquês
de Pombal), do ICEA (Instituto de Cultura Europeia e Atlântica), a Mesa
da Assembleia Geral da APE (Associação Portuguesa de Escritores).
É, ainda, membro dos seguintes centros de investigação: CECLU (Centro de
Estudos de Culturas Lusófonas da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da UNL), CEHME (Centro de Estudios Históricos de la Masonería Española)
da Universidade de Saragoça, o CECULBE-UNIFAI (Centro de Estudos
Culturais Brasil-Europa) do Centro Universitário Assunção - UNIFAI, em
São Paulo, GIA do IECC-PMA (Instituto Europeu de Ciências da Cultura -
“Padre Manuel Antunes”).
Criou e coordena a Tertúlia Letras Com(n)Vida, além de outras
iniciativas.
Foi agraciada com o Diploma de Mérito Cultural pela Academia Brasileira
de Filologia e pela Faculdade CCAA (Rio de Janeiro, 17 de Setembro de
2007) e com a Medalha Municipal de Mérito – Grau Ouro pela Câmara
Municipal de Oeiras (Junho de 2010).
Além de dezenas de participações em júris de prémios literários
nacionais e internacionais (de: PEN Clube Português, APT, APE, IPLB,
LER/BCP, Aristeion, etc.), fez a edição prefaciada de autores nacionais
consagrados e tem vasta colaboração ensaística dispersa em Portugal e no
estrangeiro, destacando-se os seguintes livros:
· Cartografias Literárias, Lisboa, Esfera do Caos, 2010 [pp. 198];
Itinerário, Lisboa, Roma Editora, 2009 [pp. 232]; Rui Nunes. Antologia
Crítica e Pessoal [Coordenação e um estudo, com Antologia Pessoal de Rui
Nunes], 2009 [151 pp.];De tempos a tempos. Júlio Conrado [Coordenação e
um estudo, com Antologia Pessoal de Júlio Conrado], Lisboa, Roma
Editora, 2008 [271 pp.];Homem de Palavra. Padre Sena Freitas [Co-coordenação,
prefácio e um estudo], Lisboa, Roma Editora, 2008 [846 pp.]; No Fundo
dos Espelhos - II. Em visita, Porto, Edições Caixotim, 2007 [310 pp];
Teolinda Gersão: Retratos Provisórios (Co-autoria com Teolinda Gersão e
Maria de Fátima Marinho), Lisboa, Roma Editora, 2006 [301 pp.];
Emergências Estéticas, Lisboa, Roma Editora, 2006 [239 pp]; Breves &
Longas no País das Maravilhas, Lisboa, Roma Editora, 2004 [237 pp.]; O
Mito do Marquês de Pombal (Co-autoria com José Eduardo Franco),
Lisboa,Prefácio, 2004 [117 pp.]; No Fundo dos Espelhos - I. Incursões na
cena literária, Porto, Edições Caixotim, 2003 [230 pp.]; Labirinto
Sensível (com Breve Antologia Pessoal de Casimiro de Brito), Lisboa,
Roma Editora, 2003 [244 pp.]. 2ª edição (encadernada), 2004 [244 pp.];
Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito de Évora” (1867) às “Farpas”
(1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998.
Direcção de Colecções Literárias:
· “Obras de Almeida Garrett” (série da colecção “Clássicos da Literatura
Portuguesa”), Porto, Edições Caixotim; “Faces de Vénus”, Lisboa, Roma
Editora; “Faces de Penélope”, Lisboa, Roma Editora; “Casa de Cultura”,
Lisboa, Roma Editora; “Ciências da Cultura”, Braga/Coimbra/Évora/Florianópolis/Lisboa,
Esfera do Caos Editores; “Letras Com(n)Vida”, Lisboa, Hespéria Editora. |
|
|
|
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
|
|
|
|
|
|
|
|
|