REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 04

 

Este é um Outubro diferente de todos os outros da minha vida - e da minha morte. Hoje, dia dezanove passam precisamente cinquenta e quatro anos desde que abandonei a existência terrena, despedindo-me do sol da Argélia - um prolongamento intenso e purificado do que abraçava o meu Algarve.

Sou um espírito sem corpo, habitando sob as areias de uma praia deserta que o luar envolve de preciosos fios dourados. Mas sou feliz. Esta foi a minha opção, o destino que, inconscientemente, sempre almejei.

Não é isto um diário, nem um desabafo, mas uma mera forma de ultrapassar a incomunicabilidade a que estou votado. Mesmo que nunca a leias até ao fim, este poderá ser um pobre testemunho do esplendor de uma vida. Desconfio que se recebesses no teu e-mail, ou na antiquada caixa do correio uma página como esta, a rasgarias, ou apagarias sem ler, pensando tratar-se de mais uma brincadeira enviada sob a forma de forward. Perguntar-me-ás como é possível conhecer estas inovações relativamente recentes... Vou explicar-te.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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DORA GAGO

 

Teixeira Gomes

O esplendor da vida

                                                                  Dora Gago

 
 
 
 
 
 
 

Durante todo este tempo fiquei confinado a uma espécie de escritório idealizado, onde confortavelmente sentado na minha poltrona, vou seguindo o que se vai passando no mundo, sobretudo no meu país. De vez em quando, recebo a visita de Fernando Pessoa, que nunca pensei conhecer pessoalmente, ou melhor, espiritualmente, quero eu dizer. É uma alma inquieta, que embora passe a maior parte do tempo nas imediações de Lisboa, aparece por cá de vez em quando. Contou-me que visitou há pouco a África do Sul, mas ficou de tal modo transtornado com a violência que por lá se respira e com as feridas do apartheid, que prefere, ficar por aqui, no concerne ao continente africano. É uma boa companhia, e com ele sentimo-nos no meio de uma multidão. Vem quase sempre com o Álvaro de Campos, o Ricardo Reis e o outro... aquele, que fala muito no rio da aldeia dele e diz que tem «o olhar nítido como um girassol»... Ah, claro, o Alberto Caeiro. Além disso, quando se sente bem disposto, ainda se subdivide nas outras setenta e tal personalidades literárias, como é o caso do Alexander Search e de todos os outros... Aí, faz-se uma verdadeira festa e embriagamo-nos (metaforicamente, claro) de ambrósia. Sim, porque aqui não há sequer vestígios de qualquer gota de absinto. Outras vezes é o Ricardo Reis que cá vem com a sua Lídia. Aquilo nunca passará de um amor platónico, pois ele acha sempre que nem sequer vale a pena enlaçarem as mãos...

Nunca me senti entediado, pois é como se estivesse diante de um ecrã gigante, onde o mundo real e actual se projecta. Disponho ainda de um aparelho redondo com vários botões, correspondendo cada um deles a um país distinto. Neste caso, interessa-me, obviamente os designados pelas letras P (onde vou acompanhando todos os eventos ocorridos em Portugal e o A (através do qual matava saudades da cálida pátria do exílio, a Argélia). No entanto, de vez em quando fazia um zapping pelo resto do mundo. Assim, assisti, por exemplo à queda do muro de Berlim no dia 9 de Novembro de 1989. Que emocionante o desmoronar de todo aquele cimento de opressão! Foi um dos acontecimentos mais notáveis a que assisti. Dois povos finalmente irmanados, sem peias nem barreiras ideológicas que lhes travem o olhar, nem o agir.

O que ultimamente mais me chocou foram os trágicos acontecimentos do 11 de Setembro de 2001 em Nova York. Geralmente, quando há guerras ou acontecimentos muito violentos mudo de país. Já não tenho alento, nem paciência para observar a violência e a bestialidade humana. Aliás, sempre fui um hedonista, um amante da beleza e da tranquilidade. Por isso, vivi no tempo certo. Antes os turbilhões da recém-nascida república às ameaças terroristas que pairam sobre o mundo, às guerras mascaradas, onde os interesses económicos se disfarçam de causas humanitárias, para participar nesse baile gigantesco e dramático que é o mundo.

Do meu país, vibrei com a revolução dos cravos a 25 de Abril de 1974, até cantei a «Grândola Vila morena», mas ao som de uma harpa, pois é o único instrumento musical a que temos acesso por cá. Senti orgulho em ter vindo ao mundo no seio de um povo que até na revolução pratica a paz. No entanto, não me agradaram alguns acontecimentos posteriores. Os problemas sociais são preocupantes. As teias da droga cada vez vão capturando mais jovens, como se as produzissem insaciáveis aranhas gigantescas; a elas aliam-se o desemprego, os problemas ambientais, a corrupção. Além disso, a apatia social e o culto do pessimismo (des)compõem mais o cenário. Mas enfim, não são do meu tempo, não passo de um mero e passivo espectador.

O tempo já não passa por mim. Sou eu que vou passando tranquilamente por ele.

A adesão à Comunidade Económica Europeia gerou cascatas de oportunidades em termos de desenvolvimento, embora nem sempre tenham sido bem aproveitadas.

É incrível, como tudo mudou! Apetece-me às vezes recordar. Evocar a vida passada para lhe traçar as linhas de esplendor após a morte. Foram doces e suaves os últimos tempos em Bougie, no quarto número 13 do Hotel l´Étoile, que ocupei desde 1931, data da sua chegada. Até o nome parecia pressagístico. Fora guiado por essa boa estrela que extraíra o néctar da vida. Carpe diem.

Despertava ainda noite cerrada, muito antes do sol pensar em acordar para iluminar a terra. Gostava de percorrer as ruas àquela hora dos solitários e dos boémios. Adquirira hábitos insólitos: deitava-me cedo e depois levanta-me de madrugada para  assistir à chegada do dia, empurrando a noite com dedos de veludo.

Preparava sempre a minha toilette minuciosamente, a lembrar os tempos de dandy. E pensar que até havia sido Presidente da República!

Recordo com um sorriso irónico aquele seis de Agosto de 1923. A República era então uma criança de colo, os Presidentes e Ministros sucediam-se numa dança frenética, devido à instabilidade que reinava no país a todos os níveis. Uma luta renhida aquela! Só ao fim do terceiro escrutínio se soube o resultado. Foi grande a sua surpresa ao constatar que havia vencido os outros candidatos com cento e vinte e um votos.

Não, o poder nunca me subiu à cabeça, nunca se apoderou de mim, não senti saudades desses remotos tempos.

Efémero foi o meu mandato, pois vivia-se um clima de pura efervescência política, social e militar...Por isso, perante a desunião e a corrupção das forças republicanas, consciente da minha impotência, resignei do mandato em 11 de Dezembro de 1925. Mas digo-te, por vezes, vejo situações tão caóticas que me recordam os tempos conturbados da Presidência da República. Enfim, nessa altura, o preço dos combustíveis não subia diariamente, os tesouros das nossas serras não eram destruídos através de incêndios criminosos, o desemprego não alastrava como uma praga. Outra epidemia grassava e se mantém ainda: a mediocridade, cultivada com afinco, os compadrios e a corrupção.

O dia glorioso foi o de 17 de Dezembro, quando embarquei no paquete grego Zeus e disse para sempre adeus à pátria natal que lá ficou perdida além-mar, dilacerada pelas quezílias, pela ambição desmedida e a inveja infinita...

Não havia sido aquele o meu lugar. A vida esperava-me. Precisava só de encontrar uma nesga de terra, uns raios de sol, talvez um pedaço de mar onde acabar em paz os meus dias, serenamente, em paz comigo e com o mundo.

Já viajara e vivera demasiado para me confinar à mediocridade e ao mofo de um país cinzento e adiado. Havia presenciado em França a Revolução de 1878. A partir de 1891, talvez inconscientemente para compensar o meu pai da desilusão provocada por não ter concluído o curso de Medicina, percorri novamente a França, a Bélgica e a Holanda, transportando comigo a doçura dos figos Algarve, colhidos pelos empregados do meu pai.

Em Itália permaneci durante algum tempo, seduzido pelo charme e encanto desse país. Não me limitei à Europa, deambulei pela África do Norte e Ásia Menor.

São agora negras as nuvens que pairam nos céus. A verdade é que também há instantes em que me fatiga acompanhar o futuro do momento – que para ti, leitor, será o presente, visto vivermos em diferentes dimensões temporais.

Desarrumo então o velho baú da memória. Vou revolvendo sem pressa cada recordação como se de um tesouro se tratasse. Porém, noutras vezes o passado parece jorrar indisciplinado, sem que possa escolher os acontecimentos que quero reviver. Surge-me com frequência a imagem de Belmira da Neves, que me deu a graça da paternidade. Estranhamente, apenas através da lembrança a posso contactar, tal como sucede com os meus pais e outros familiares. Parece que fiquei num local destinado a escritores ou artistas, uma espécie de panteão espiritual. Não é uma divisão elitista, tendo apenas a finalidade de manter unidos certos espíritos que já em vida tiveram algumas afinidades. Deste modo, podemos partilhar as riquezas da alma. Por isso, tenho longas conversas com os amigos de tertúlias e aventuras literárias, como é o caso de João de Deus, Fialho de Almeida, Gomes Leal e António Nobre. Não esqueço que foi precisamente o autor do «livro mais triste de Portugal» o impulsionador da publicação do meu primeiro rebento literário: Inventário de Junho, no último ano do século XIX. Com o século XX gerei Cartas sem Moral Nenhuma e Agosto Azul (1904) e depois Sabina Freire (1905) e Gente Singular (1909). Conheci também a Florbela Espanca (continua um pouco melancólica), o António Aleixo, o Emiliano da Costa... Além disso, há um local destinado aos mais antigos: o Bernardim Ribeiro conversa muito com Garcia de Resende. Há também dois poetas árabes, cujo nome nunca recordo que parecem que foram inimigos e só se reconciliaram aqui...

Às vezes entristece-me que as minhas personagens não se tenham afirmado, nem convivam actualmente com as novas gerações. Mas enfim, algumas das minhas obras ainda povoam certas prateleiras modestas das livrarias...

Sou agora um mero manjerico à janela do mundo, mas agrada-me acima de tudo essa atitude contemplativa.

Neste Outono de esperança e de sonho, a sul da escrita e da morte, canto o esplendor da vida em cada letra que não escrevo. 

 

  Dora Nunes Gago, A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca), Porto, Ed. Campo das Letras, 2007
 

 

Dora Nunes Gago (Portugal)
Nascida  a 20/6/1972 em S. Brás de Alportel, é Professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008.
Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações sobre as “imagens do estrangeiro na Literatura Portuguesa” em Congressos Internacionais.
Contacto:
doragago@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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