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Na realidade
prefere ocupar-se de outros afazeres. Pela manhã, agrada-lhe percorrer
a casa, talvez sem um objetivo determinado. Mas o fato é que, da sala de
jantar, onde estabeleceu sua sede governamental, dirige-se primeiramente
à cozinha, onde parece – mas sem dúvida é pura imaginação minha –
interessar-se especialmente pelo brilho de uma panelinha de cabo preto e
alongado. Às vezes me pergunto por que lhe chamará tanta atenção um
objeto totalmente sem graça; depois raciocinei que ele, afinal, é apenas
um mosquito. A cozinha é onde permanece mais tempo. Em seguida percorre
o hall, o quarto e o outro comodozinho, sem se deter de maneira
especial em nenhum deles. Creio que seu propósito não é tanto controlar
o bom funcionamento da casa, mas ratificar sua autoridade sobre seus
domínios.
Ao meio-dia – para ser
mais exato, às doze e trinta – almoça. Sua dieta não é muito variada.
Todos os dias come uma rodela de chouriço basco que eu lhe sirvo num
pratinho de porcelana (ele não admitiria outro). Ainda lembro o dia em
que recusou com indignação uma fatia do chouriço nacional que eu, em
minha subserviência, lhe havia levado para agradá-lo. Tive que descer
até o açougue e comprar seu manjar preferido e exclusivo. Uma vez
deixado o pratinho na mesa, devo retirar-me em seguida, pois não
admite a presença de ninguém enquanto come. Não obstante, eu também
tenho alguma dose de astúcia e, em certas ocasiões – quando não tenho
outra coisa mais urgente para fazer – espio-o pelo buraco da fechadura.
É certo que esta é uma atitude bastante boba: confesso que não há nada
particularmente admirável no que vejo. Logo que o mosquito se assegura
de que saí da sala de jantar, desce, com a lentidão apropriada à sua
investidura, até o pratinho de porcelana. Depois crava seu ferrãozinho
no salame e suga pausada e avidamente o sangue (desprezando,
paradoxalmente, os pedacinhos de noz, justamente o que diferencia o
chouriço basco do nacional): nesta atitude não há nada que o distinga do
resto dos mosquitos do mundo. Geralmente seu almoço dura de dois a três
minutos. (Na verdade, menti quando disse que o espio quando não tenho
outra coisa mais urgente para fazer; o certo é que o espio diariamente.
É fascinante penetrar na intimidade dos poderosos.)
Uma vez
satisfeito o apetite, invade-o uma sensação de modorra e peso e,
aparentemente, já não pode regressar à sua residência, vizinha ao quadro
das ovelhas. Prefere, então, fazer uma espécie de sesta sobre o rodapé,
no lugar exato onde a pintura da
parede está meio descascada. Acorda por volta das cinco da tarde e já
não volta a percorrer a casa: instala-se novamente junto ao quadro e ali
permanece até a hora do jantar.
A propósito
desses detalhes, supus – erroneamente – que o conhecimento com tanta
exatidão de seus hábitos de vida me proporcionava alguma vantagem para
desfazer-me dele. Tentei uma só vez: saí-me tão mal, que não ousei uma
segunda. Os fatos – sinto vergonha de recordá-los – aconteceram da
seguinte maneira:
Naquele dia
pareceu-me que seu almoço havia durado mais que o habitual e que o
mosquito estava especialmente entumecido. Então me descalcei e, levando
uma alpargata como arma, aproximei-me com o coração na boca o mais
sigilosamente que pude, até achar-me junto ao rodapé onde ele dormia ou
fingia dormir. Por um instante a soberba me cegou e ingenuamente
acreditei que poderia esmagá-lo facilmente com a alpargata contra a
madeira do rodapé. Porém, no exato segundo em que já lhe dava o golpe
fatal, levantou vôo com uma rapidez não isenta de majestade e se lançou
contra meu rosto. Comecei, então, gritando de terror, enlouquecido, uma
fuga esbaforida por toda a casa Como voava rápido! Como mimetizava os
cantos escuros, que silenciosa era sua perseguição, quantos obstáculos
me impediam de locomover-me com a velocidade que o perigo do caso
requeria! Tentei virar a chave na fechadura para abrir a porta e fugir
para sempre de casa, mas tal operação era impossível. O mosquito não me
dava tempo, a chave se travava nas minhas mãos, meus dedos estavam
emperrados. Corri, corri por toda a casa, corri sem poder interpor uma
porta fechada entre mim e ele, corri esbarrando nos móveis, derrubando
cadeiras, quebrando jarros e cristais, rasgando a roupa, ferindo os
joelhos e os pés descalços. Corri, corri, corri, até que, extenuado de
cansaço e terror, caí de joelhos.
-
Perdão!
Perdão! – gritei com as mãos entrelaçadas e estendidas com expressão
suplicante -. Juro, juro pelo que há de mais sagrado! Juro não tentar
mais!
O mosquito se deteve e
começou a girar em pequenos círculos, enquanto eu, chorando
torrencialmente, repetia aquelas e outras expressões semelhantes. Não
sei se ele me ouvia. Parecia estar meditando sobre o que fazer comigo.
Tinha que tomar uma decisão importante para a qual, sem dúvida,
necessitava de reflexão que só a calma e o silêncio proporcionam; e eu,
em vez de permanecer calado, continuava gemendo, suplicante, gaguejando,
com as roupas empapadas de suor e chegando, apesar de tudo,
a observar que as veias das minhas mãos estavam inchadas e azuis,
quase roxas, quase negras. Ele pensava, matutava, refletia seriamente;
era evidente que não se precipitaria em tomar uma decisão da qual logo
se arrependesse. Esvoaçava e esvoaçava, cada vez mais lentamente, como
se fosse parar, mas o exasperante é que não parava. Mais de meia hora
durou essa situação e eu, enquanto isso (com o rosto desfigurado, os
olhos cheios de lágrimas e tremendo dos pés à cabeça, esperava seu
veredito e sua sentença – que seriam simultâneos - ), observava pela
janela as vagas formas dos operários que trabalhavam nas obras de
construção da calçada em frente e pensava que eles estavam num mundo de
sol, de ar, de baldes e tijolos limpos, um mundo onde não tinha lugar
para um mosquito sinistro e poderoso que agora decidiria minha vida ou
minha morte… E, finalmente, o mosquito foi misericordioso: com indizível
alívio, vi como se dirigia lentamente até seu rodapé, sem nenhuma
vaidade – é certo –, mas convencido de que eu nunca mais voltaria a
incomodá-lo.
Depois desse
episódio, compreendi que deveria resignar-me à minha sorte. Afinal, é
pouco o que ele exige de mim: suas duas fatias diárias de salame e o
pratinho de porcelana. Tenho, entretanto, um escrúpulo, um só: me
revolta, me fere, me humilha estar dominado por um ser tão pequeno, um
ser que pesa apenas uns poucos miligramas, quando meu peso é de quase
oitenta quilos. Ao mesmo tempo, não me sinto em absoluto diminuído por
estar sob as ordens de um ser irracional – um ser que tem, literalmente,
cérebro de mosquito. - Talvez essa resignação se deva a que muitas
vezes eu tenha sido subordinado a pessoas que não tinham
inteligência maior que a de um gato e, sem dúvida, muito menos beleza.
Mas assim como
tenho um escrúpulo, também tenho uma esperança. Sei que a vida de um
mosquito não dura mais que alguns meses: por isso, todas as manhãs olho
furtivamente o calendário, esperando o dia em que possa marcar, com um
lápis verde que levo escondido, a data em que o mosquito morrerá.
Entretanto, por outro lado, amanhã vai fazer vinte anos que ele fundou
seu império. Isto, além de contradizer as leis naturais, me lança num
tipo de alucinação: o pensamento de que o mosquito é imortal.
Se essa idéia não
for verdadeira, cabem, então, duas possibilidades:
A primeira é que
esse mosquito não tem sido sempre o mesmo e que
durante a noite, quando estou dormindo, ocorra o revezamento do
mosquito moribundo com outro mais jovem e forte. Fui levado a tal
suposição pelo fato de haver encontrado uma manhã, no pé da mesa da sala
de jantar, o cadáver de um mosquito. Claro que esta não é uma prova
decisiva: não tenho nenhuma certeza de que esse mosquito morto seja o
que tinha me dominado; talvez fosse um mosquito comum e silvestre,
desses que um tapa ou um inseticida abatem facilmente.
A segunda
possibilidade exclui a primeira. O poderoso poderia ser o mosquito
morto, e o que se encontra junto ao quadro das ovelhas é um mero
mosquito usurpador, sem nenhum poder, que fundamenta sua autoridade numa
simples questão de investidura ou semelhança. Mas como esse argumento
não explica os vinte anos de domínio, caberia supor que os mosquitos
usurpadores são muitos e efetuam disciplinadamente o revezamento. De
qualquer maneira, seja como for, não ousarei certificar-me disso:
poderia ser-me fatal.
Enquanto isso,
como nada posso fazer, passam-se os dias, os meses, os anos. Envelheço e
definho, consumido em minha própria angústia e, sempre dominado por um
mosquito, continuo à espera de uma definição. |