REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 02

 

         Dalva, que era Malva na certidão de nascimento por um erro do escrevente do cartório mas só atendia quem a chamasse Dalva, deixa a água morna escorrer pelo corpo ensaboado e canta Ave Maria, um dos grandes sucessos da sua cantora preferida, Dalva de Oliveira. Dalva mora neste apartamento há seis meses, mas só hoje conseguiu assinar a escritura definitiva. Pára de cantar e começa enxaguando o cabelo. Puta merda, até que enfim. Custou mas foi. Sorri. Agora...

Dalva é manicure e conheceu Seu Cícero, Cícero Giacomo Gualtieri de seu nome completo, um toscano de quarta geração, quando ainda trabalhava no Savassi’s Cabeleireiro’s, na rua António de Albuquerque, um pouco acima da Itabirana Modas e Confecções Masculinas e Femininas. Todas as manhãs, antes de entrar no salão, Dalva parava na porta da Itabirana, mais para se ver refletida no vidro da vitrine do que para olhar as novidades, embora às vezes comprasse até uma ou outra peça de lingerie. Mas quando percebeu que Seu Cícero só largava a porta quando ela entrava no salão, não teve dúvidas. Passou a parar na vitrine de manhã, na entrada, e de tarde, na saída do salão. E um dia resolveu arriscar uma fezinha na pagadoria zoológica. Quem sabe dava águia na cabeça?

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
REVISTA TRIPLOV  
Série anterior  
Nova Série | Página Principal  
Índice de Autores  
   
SÍTIOS ALIADOS  
TriploG  
Incomunidade  
Jornal de Poesia  
Agulha Hispânica  
TriploV  
O Contrário do Tempo  
   

Cunha de Leiradella

 

PRIMAVERA

DE CUCOS

                                                                Cunha de Leiradella

 
 
 
 
 
 
 

         - Tem meias? Masculinas?

Seu Cícero, do alto dos seus cinqüenta e cinco anos e absolutamente convicto do seu charme latin lover, sorriu, fez uma ligeira vênia e cravou os olhos em Dalva.

- Mas meias? Um par de meias não...

- Não tenho ninguém que mereça mais.

- Não?

Dalva olhou Seu Cícero durante alguns instantes e sorriu.

- Ainda não.

Seu Cícero fez questão de atender Dalva pessoalmente e caprichou no embrulho de presente.

- Por conta da casa.

- Presente? Muito obrigada. O senhor é muito gentil.

- Ora, ora, que gentileza...

- Gentileza é sempre gentileza.

Dalva coloca o embrulho dentro da bolsa, sorri e olha Seu Cícero bem nos olhos.

- E eu adoro gentilezas.

Á tarde, na saída do salão, não olhou a vitrine nem Seu Cícero, parado na porta, esperando. Dalva tinha vinte e sete anos e desde os treze sabia o que eram homens. Primeiro, o pai, ainda morando no bairro Gorduras e depois Seu Melgaço, Dalva cospe sempre no chão quando lembra, um desgraçado dum português, um filho da puta que era amante da mãe e a meteu num quarto de uma cabeça-de-porco na rua Paquequer, na Lagoinha. Depois, foi rolar de cama em cama até fazer a primeira unha no Savassi’s Cabeleireiro’s. Por isso, quando soube que o Edifício Le Trianon, duas quadras abaixo do salão, tinha sido entregue aos moradores é que Dalva aceitou o convite de Seu Cícero, apesar dos telefonemas e dos presentes diários, sempre devolvidos. Jantaram no Emporium, no alto da av. Afonso Pena, mas ainda não eram dez horas, Dalva estava em casa, Seu Cícero xingando Deus e o mundo e quase batendo o carro no cruzamento da av. do Contorno.

- Ela pensa que é o quê? Virgem de primeira comunhão, puta que pariu?

Na manhã seguinte, calça de jeans branco, justa, blusa de seda vermelha, bem produzida e maquiada, Dalva entrou na Itabirana Modas. Seu Cícero correu para atendê-la. Dalva nem sequer o olhou e chamou uma vendedora da seção de lingerie. Seu Cícero bateu a porta e estraçalhou dois cigarros no banheiro. Filha da puta. Ô grande filha de uma puta. Mas a pagadoria zoológica fincou e deu águia na cabeça. Duas semanas depois Dalva assinava o contrato de compra e venda, Seu Cícero como fiador e principal pagador, de um apartamento de sala, dois quartos, dependências completas e vaga na garagem, no sétimo andar do Edifício Le Trianon. Na semana seguinte, o apartamento limpo, mobiliado e decorado, Dalva fez a mudança, Seu Cícero desmilingüindo de madrugada de tanto que Dalva o fez gozar.

- Dalva. Ô, Dalva.

Dalva fecha o chuveiro e passa as mãos pelo corpo, escorrendo as gotas de água.

- Tou indo.

Seu Cícero fecha a porta, senta-se no sofá e olha a sala. Puta merda, custou-me os olhos da cara, mas vale a pena. Sorri. Ah, vale. Levanta-se, pega uma garrafa de uísque e serve uma dose caubói. Olha o rótulo, Glenlivet Puro Malte 12 Anos, Dalva é gente fina, tem sempre o que é do bom e do melhor, senta-se no sofá, coloca a garrafa no chão, bebe um gole, bota os pés em cima da mesa de centro e acende um cigarro. Puxa uma tragada, sopra o fumo com força, satisfeito, e olha os sapatos em cima do tampo de vidro. Por quê que eu não posso fazer isto na porra da minha casa, puta que pariu? Magnólia é uma merda. Estes móveis são de pau-marfim, são móveis caros, Cícero. Seu Cícero recosta-se no sofá, bebe outro gole e puxa outra tragada. Puta que pariu o pau, o marfim, a careza e o diabo que a carregue. Bebe o resto do uísque, serve outra dose, afunda o corpo no sofá e volta a colocar os pés em cima da mesa. Mulher da gente é uma merda. Cícero, tira os pés de cima da mesa, olha que estragas o verniz. Cícero, não sujes o tapete. Cícero... Cícero, a porra, Magnólia é uma merda, puta que pariu. limpeza, arrumação e ai, ai, tudo menos o que deve ser. Dalva entra na sala, sorrindo, envolta num lençol de banho e pára na frente de Seu Cícero.

- Pronto. Cansado?

Seu Cícero não tem nem tempo de responder. O lençol de banho escorrega e Dalva fica nua na frente dele. Seu Cícero respira fundo, com força, puxa Dalva e afunda a cara entre as coxas dela, sentindo a mornez da pele e o perfume que sai dos pentelhos perfumados e ainda umedecidos. Dalva passa as mãos na cabeça de Seu Cícero, os dedos amaciando os cabelos ralos.

- Tá cansado?

Dalva baixa-se e beija a testa de Seu Cícero.

-Hem?

Seu Cícero recosta-se no sofá, Dalva tira-lhe o copo de uísque da mão e senta-se no colo dele.

- Hoje tenho que dormir em casa. A mais velha faz anos e...

Seu Cícero cala-se, a língua de Dalva deslizando e arrepiando a pele do pescoço. Dalva mete uma mão entre as coxas, aperta o pau duro e sorri. Amanhã boto um carro na garagem. Ah, boto. Puxa a cabeça de Seu Cícero contra os seios, mete-lhe a ponta da língua na orelha e começa abrindo o zíper das calças

O relógio de pêndulo da sala acaba de bater dez badaladas. Televisão desligada, luzes apagadas, tudo é silêncio e penumbra e no apartamento de Dalva. Apenas, vinda do quarto, se escuta a respiração ofegante de Seu Cícero, deitado de pernas e braços abertos, a língua de Dalva escorrendo pelo corpo. Porque é que Magnólia nunca fez isto, hã? Mulher da gente é uma merda mesmo. Dalva chupa e mordisca um mamilo, Seu Cícero estremece e quase grita, ai. Dalva levanta a cabeça.

- Doeu?

Seu Cícero não responde. Dalva sorri e continua lambendo e mordiscando. Seu Cícero contorce o corpo. Puta merda, ah, puta que pariu. Dalva arranha de leve a pele umedecida, a língua fuçando no umbigo. E vai ser uma Parati com ar-condicionado, verde-água, ah, vai. Seu Cícero geme e retesa todos os músculos quando a língua de Dalva desce pela barriga e o pau entra na boca. Puta que pariu. Magnólia é uma merda mesmo.

- Cícero, isso eu não faço.

- Ah, Magnólia, um pouquinho. Uma lambidinha , vai.

- disse que não, Cícero.

- Depois eu faço em você, vai.

- Não quero. É porcaria.

- Então deixa que eu faço primeiro em você.

- Não quero, disse.

- Então vira. Vira.

- Que é isso, Cícero?

- um pouquinho, Magnólia. Vira, vai.

- Você ficou louco, Cícero? Eu sou a sua esposa.

- a pontinha. Se doer eu tiro. Juro.

- Cícero, você devia ter vergonha. Isso são porcarias que nenhum marido faz com a esposa.

Seu Cícero agarra a cabeça de Dalva e aperta-a contra as coxas. Mulher da gente é uma merda mesmo, puta que pariu. Isso. Faz. Faz. Vai. Vai. Dalva levanta a cabeça.

- Amor.

Seu Cícero segura a cabeça de Dalva e tenta forçá-la a continuar. Porra, logo agora, puta merda? Dalva acaricia-lhe o pau duro, devagar, como se os dedos fossem a língua.

- Você quer mesmo que eu faça, amor?

Seu Cícero tenta forçar a cabeça de Dalva. Puta que o pariu.

- Hem, amor?

- Faz. Faz. Faz, porra.

A voz de Seu Cícero parece um urro contido, de tão rouca e profunda. Dalva baixa a cabeça e engole o pau e começa a chupar e a lamber. Seu Cícero retesa todos os músculos e geme. Isso. Assim. Faz. Mais. Mais. Mais, porra. Dalva pára de chupar e tira o pau da boca.

- Amor, amanhã posso ver uma Parati na Savassicar?

Seu Cícero está quase gozando. Não pára, porra, faz.

- Hem, amor?

Seu Cícero crispa as mãos na cabeça de Dalva, pronto para gozar.

- Pode, caralho. Pode.

Dalva engole o pau, aperta o saco devagar, Seu Cícero retesa todos os músculos e a primeira golfada de porra sai junto com o grito, ah!

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL