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O homem – o comissário Sebastião Cordato –
quis mostrar o corpanzil, a farda e sobretudo o chanfalho, à horda
invasora, supostamente para lhe dar a perceber a importância de ter de
se comportar, durante a sua ausência, nos limites apertados do decoro.
Sim. Deixá-los-ia à rédea solta por umas horas. Mas regressaria
preparado para o pior, caso, por hipótese, se lhe apresentasse um
cenário de catástrofe no próprio lar. Quis que ficasse a pairar a ideia
de que não se acanharia a distribuir uns pares de sopapos pelos
eventuais subversores da ordem sacrossanta em espaço proibido a
malfeitorias (manchar os tapetes, partir bibelôs, danificar móveis,
etc.), além dos assédios vários que lhe povoavam os pensamentos, ou não
fosse ele polícia experimentado em lidar com o pior lixo social da
grande cidade capital do império. A malandragem empinocada levaria dele
recordação indelével se ousasse deixar mácula que expressasse barafunda
fora de escala ou distúrbio violento em lugar ainda habitado pelo
fantasma da querida esposa, que partira dois anos atrás.
Isaura fora informada pelo pai das
condições de cedência da casa. Tranquilizara-o quanto à qualidade dos
convidados: as meninas eram todas do seu conhecimento, companheiras de
trabalho e vizinhas, e os rapazes todos empregados de escritório,
controlados pelo “veterano” coordenador dos assaltos de Carnaval. O
Duarte. Não se lembrava do Duarte? O moço que em dada noite lhe pedira
para a deixar estar no baile dos Alunos do Apolo por mais meia hora? E
que ele, pai, achara um rapaz tão conveniente ao ponto de acordar numa
hora extra? Esse? – perguntara o comissário, aliviado. Esse, respondera
Isaura, segura de si como nunca. Esse mesmo.
– Que tudo corra como deve ser – alertou
Sebastião Cordato entre ameaçador e condescendente.
O comissário Sebastião Cordato chumbara
até à data a realização de bailes particulares intra-muros. Viúvo,
reverenciava a memória da defunta assumindo responsabilidades de
vigilância sobre a filha que o tornavam a um tempo pai e mãe, insólita
condição tratando-se de alguém cuja mentalidade paramilitar sustentava
como tarefa eminentemente maternal a preparação da filha para a vida. Ir
ao baile dos Alunos do Apolo aos sábados à noite era o máximo permitido
a Isaura, então na plenitude dos vinte anos, dentro de horários
exigentes de permanência, na colectividade de recreio, por ele
estabelecidos; qualquer prolongamento do período estipulado passava por
elaborada negociação. No mais, a rapariga, balconista numa retrosaria da
Baixa, largava sempre o serviço em cima da hora para apanhar o eléctrico
vinte e oito e vir fazer o almoço e o jantar, já que a paternal figura
nada percebia de cozinha e detestava o rancho (nestes precisos
termos diabolizava a comida servida na messe da Polícia), o que a ela
desarrumava tanto o período pós-laboral como o intervalo da tarde.
Isaura era estrábica. Compensava, porém, o
estrabismo com um corpo de sonho e um bom humor irresistível. Naquele
tempo era muito arriscada a correcção cirúrgica do defeito. Esperava-se
pela consolidação do crescimento e depois pela chegada da maioridade –
vinte e um anos –, sendo de levar em conta que a complexidade da
cirurgia situava o esforço financeiro fora do alcance das bolsas médias
baixas. Em todo o caso o pai propunha-se dar-lhe por dote o conserto do
olhar. Para isso juntava, juntava, juntava. Queria para ela umas pupilas
bem colocadas e confiantes, garantia de bom casamento. Entendia serem os
olhos em bico factor de retracção dos pretendentes de nível. Esbarrava,
estranhamente, no pouco empenho de Isaura em ser operada. Sentia-se às
mil maravilhas na sua pele, a pequena. Era hábil a fazer amigos, adorava
dançar e nunca lhe faltavam pares (pudera, só o chamariz daquele
corpinho cinco estrelas!). Conhecia-se-lhe um fraco pelo Duarte e era
recíproco o interesse dele. Em suma: negligenciava alegremente o
descuido da Natureza. Não fazia parte dos seus planos imediatos
esfaquear a imagem que lhe era tão cara, a troco de uma outra, de olhar
certeiro, bem entendido, mas que não deixaria de ser para si
estrangeira, quando diante do espelho interpelasse, pela manhã, o rosto
incrivelmente perfeito: Quem és tu?
Ela até gozava, imagine-se, com a
situação:
– Quem quer dançar com a vesga?
Duarte perfilava-se logo na primeira linha
dos candidatos a enlaçá-la. Respeitaria uma vez mais a regra. Escolhera,
aliás, essa tarde para se declarar a Isaura, segundo se descaíra no
escritório. Assim o chefe policial lhe desse tempo e depois o ámen,
tomando por seguro que ela estava mais que madura para a resposta
ambicionada.
Meio desconfiado, o comissário lá deixou a
casa ao cuidado da filha e da “horda”, imprecando entredentes contra a
viuvez precoce que o obrigava a trabalhos dobrados com a rapariga, em
idade tão ingrata, e arrancou para o estádio, então dito stadium (depois
substituído pelo novo estádio de Alvalade, hoje cadáver sepultado ao rés
do Alvalade XXI). Ia supervisionar a manutenção da ordem pública
(naquele tempo não se dizia segurança, jogo de alto risco, essas tretas
de agora) no Sporting-Benfica, no Lumiar, o que o obrigava a entrar em
alerta máximo; entre as falanges de apoio (também ninguém falava em
claques organizadas nem em adeptos) daqueles dois havia sempre
zaragateio fortíssimo. Já deixara, pela manhã, os seus homens e o
dispositivo prontos, viera a casa só para petiscar qualquer coisa e
receber (melhor: mostrar-se) os dançarinos, voltando de imediato para a
zona circundante do recinto desportivo onde era suposto armarem-se
sarilhos grandes quando o match terminasse. Desejava, muito no
íntimo, que o fim de festa não descambasse em porrada de criar bicho.
Tinha de estar atento ao que poderia encontrar de irregular no
domicílio, pois caso a este retornasse fora de horas já não encontraria
“culpados” a quem assacar responsabilidades. Isso incomodava-o-o tanto
como as prováveis escaramuças entre os fanáticos dos dois clubes, pelo
que, face à situação, implorava ao santo patrono das polícias o
exercício da sua influência no sentido de não acontecerem desacatos,
para que chegasse a casa a horas de fechar o baile. Nessas ocasiões
havia sempre a ajuda de elementos da GNR a cavalo, força realmente
dissuasora. A pilantragem da bola, todavia, arranjava sítios
inacessíveis aos cavalos para se bater entre si e era aí que entrava a
polícia, a pé.
Isaura organizara o espaço para dançar,
deslocando os móveis e encostando-os às paredes. Sobre uma mesinha de
sala colocara o gira-discos e, em cima da cadeira junta, os discos com
as músicas e vozes da moda. Na divisão contígua, antes da cozinha, a
ampla mesa de jantar recebera as contribuições dos participantes em
comes e bebes, a consumir à hora do lanche – no intervalo. Os rapazes
encarregaram-se dos refrigerantes: laranjinas cê e pirolitos de gargalos
engasgados com carolos (nem o comissário consentiria pingo de álcool
ali). As meninas foram portadoras, umas, de bolinhos caseiros, sortidos,
e outras, do famoso bolo de buraco, uma espécie de pão de ló mas mais
espesso e açucarado, evidenciando arte de doceiras cultivada desde a
pré-adolescência a par dos lavores, cânones da educação feminina da
época.
Eles, de cabelo abrilhantinado, em poupa,
fato completo (ombros dos casacos enchumaçados) e gravata, e elas,
envergando blusas de seda, saias franzidas sobre saiotes interiores, que
lhes ficcionavam as ancas e as coxas, com cintos elásticos, largos, a
adelgaçar-lhes as cinturas, e sapatos rasos, deram então início ao
baile. A composição dos pares, previamente combinada, funcionou de
imediato ao som do desenxovalhado cha-cha-cha com que a moça de vela ao
pick-up encetou as hostilidades. Ao de dezasseis, Norberto, coube
a gazelinha de catorze, pescoço alto, à Modigliani, flexível e
longilínea, de feições muito belas, Sílvia, de seu nome, como ele
intérprete de grau zero da arte de dançar e que as raparigas haviam
trazido também para iniciação.
O de dezasseis, tímido como
as pedras, procurava imitar os mais velhos, cingindo a de catorze pela
cintura. Esta, porém, mantinha a distância mercê da firme pressão da sua
mão direita no ombro esquerdo dele. Norberto olhava amiúde para Duarte.
Implorava conselhos a quem obviamente não lhos podia dar, absorvido,
como estava, o colega, no desenvolvimento do seu próprio discurso
amoroso. Entretanto, a curta série de cha-cha-chas dançada em cadência
movimentada seguiram-se melosas baladas (Besame mucho,
Acercate mas, Teus olhos castanhos) dos cantores
românticos Lucho Gatica, Nat King Cole e Francisco José, e logo os
pares mudaram de atitude, unindo os corpos e antecipando a anunciada
sagração da Primavera. A de catorze condescendeu em afrouxar a pressão
sem contudo baixar a guarda por completo, zelando ferozmente pela
manutenção dos escassos centímetros que lhes separavam os ventres,
vigilância só alterada quando as pernas se tocavam ao fintarem
desajeitadamente os ritmos melódicos para quase desafiarem a lei da
gravidade. Num desses enganos a mão feminina aliviou o esforço. O rapaz
apertou então aquela que se furtava e pôde tocar, num ímpeto de prazer,
os seios, as coxas, o ventre, que se lhe entregavam em desequilíbrio
enquanto a líbido atacava nas suas formas expressivas e naturais o lugar
onde espontaneamente se manifesta. A vermelhidão invadiu a cara dela.
Ele também corou. Convencido de que o pior havia passado e que de aí em
diante era só fruir a doce leveza da tarde, aconchegado às pernas
daquela miúda tão bonita, cantou, muito no íntimo, vitória.
Tremendo erro de cálculo.
Inesperadamente, Sílvia
soltou-se. Iniciando um choro convulsivo deu uma corridinha até à sacada
para aí carpir a sua decepção, com grande espanto de todos mas,
naturalmente, mais de Norberto. Incapaz de fazer refluir para outras
categorias de visibilidade o legado erótico da peripécia; exibia, meio
espantado, no meio da sala, a protuberância vital no seu superlativo
índice volumétrico. Parado, varado, vidrado, vira os pares ignorarem
Nat King Cole e o seu Acercate Mas e precipitarem-se para a
estreitíssima varanda (onde, agachada, a virgem de catorze se afogava em
lágrimas), tentando perceber o que se estava a passar.
Isaura compreendera logo
tudo. Talvez receosa de um incidente que pudesse desencadear a ira
paterna (imaginou o pai a irromper subitamente pela casa e a dar de
caras com a garota em pranto), tratou de chamar a si a resolução do
problema, afastando, inclusive, o futuro namorado. Mandou que se
continuasse a dançar e enfiou-se com Sílvia no quarto dos pais, cuja
porta fechou.
Cerca de dez minutos depois,
Isaura saiu com a de catorze pelo braço, já de olhos enxutos e cabeça
levantada, dirigindo-se ao acabrunhado Norberto:
– Pronto, agora vão dançar
os dois e nada de fitas. Tu, minha menina, não te esqueças: Deus fez-nos
assim, é da ordem natural das coisas.
Sílvia e Norberto dançaram
ao longo da restante tarde muito agarrados um ao outro, hirtos e tensos,
sem trocarem palavra. Por tempo superior ao previsto. O santo patrono
das polícias não escutara os rogos de Sebastião Cordato. Houve mesmo
alteração da ordem à saída do campo de futebol. Quando o comissário
chegou a casa, já não encontrou, como temera, “culpados”.
Um ano depois, alguém notou
que Sílvia passava com frequência, na rua, a certa hora, mesmo por
debaixo de uma das janelas do escritório.
Esse alguém chamou a atenção
de Norberto.
– Anda aí às voltas por tua
causa. Lembra-se de ti. Atira-te a ela.
– Não estou interessado –
respondeu secamente o então de dezassete.
– Até a puseste a chorar…
– Chorou. Mas não por mim.
O caso ficou por aí. Nunca
chegou a saber o que dissera Isaura à mais jovem nos dez minutos
cruciais em que falaram a sós, para lá do que a frase enigmática Deus
fez-nos assim, é da ordem natural das coisas deixara supor. Tão
pouco Duarte tinha ficado ao corrente.
Deixou de pensar na rapariga
naquele mesmo instante.
Para sempre.
Para sempre?
Para sempre é muito tempo.
Até hoje.
Resolveu-se a narrar a
história por lhe terem encomendado um conto. Viu passarem desinspirados
dias sem achar assunto capaz. Preparava-se para desistir.
Em cima do prazo, a recordação vadia
acudiu a salvá-lo.
Cascais, 2010 |