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Não lembramos quando começou;
parecia que tudo viera assim, de repente, com o choque do susto; mas ao
pensarmos, ao rememorarmos devagar, ativando num esforço as lembranças,
sabíamos que acontecera aos poucos, que tudo se sucedera numa seqüência
demorada de eventos, em que só a lentidão de nossa percepção ou da nossa
memória nos impedira de entender a gravidade dos acontecimentos, por menores
que fossem, por mais inexpressivos que parecessem.
Visto assim, na distância,
parece que não consigo transcrever o susto, ou melhor, o pânico que tomou
conta de nós e que tornou aquele dia um divisor de águas, ou melhor, num
divisor de eras; imagino que quando o Cristo nasceu ele não se concebia como
um divisor do tempo – antes e depois dele -, a mesma coisa com Mohamed
quando tomou Meca -; foi a posteriori que os homens imaginaram tempos
diferentes, eras diferentes . Para nós não, aquele dia por si era um divisor
de águas temporal, uma ocorrência cósmica que abria brechas no tempo, ainda
que tudo aquilo fosse somente a soma de outros eventos que se sucederam no
tempo e que só nossa ignorância nos impedira de perceber a gravidade. |
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Só sei que naquele dia, só
sei que aquele dia não amanhecera. Era sábado. Muitos de nós imaginaram
que o tempo estava nublado, porque o dia demorava a amanhecer, e
resolveram dormir até mais tarde. Os loucos das ruas já haviam anunciado
o que não percebêramos; Tião Grajaú saíra gritando pelas ruas “o sol
morreu, o sol morreu”, mas ninguém dera ouvidos; Quinha das Botas também
saíra com seu canto monocórdico a a repetir “o sol morreu morreu
morreu”. Ouvíamos aquelas vozes pelas ruas e imaginávamos que era
madrugada. Quando saímos às ruas pensamos que os relógios estavam
loucos: eram 10,11 horas e o céu mantinha-se com a penumbra da
madrugada, como se hesitasse entre o amanhecer e o anoitecer, como se
não houvesse chances para a plenitude do dia.
Quando por volta do meio-dia
tornou-se certeza que a manhã não viria e que não havia nenhum eclipse,
muitos quiseram desesperar-se, pedir clemência a deuses duvidosos,
realizar penitências hipócritas, desfazer, através do sofisma de uma fé
reencontrada, as trevas que tomavam conta de nós. Alguns até pensaram em
pegar os barcos e se lançar em alto mar; mas, não se sabe a razão, as
ondas se agitavam com violência e a ausência do sol dava ao mar uma face
sombria que afastava os viajantes.
Reunidos na praça
discutíamos o que fazer – saber se aquela escuridão era localizada ou se
o mundo todo estava assim; saber se algo poderia ser feito. Foi o padre
Joseph quem nos falou – e só aí percebemos – que a escuridão viera aos
poucos; nos fez lembrar passo a passo como a última primavera deixara de
ser equinócio e avançara como solstício, como no verão as muitas nuvens
de chuva esconderam o fato de que sob dias e dias não houvera sol; que
embalados pela fortuna e pelos ventos da muita prosperidade – nossa
colonia de pescadores era a mais rica da região, todos os barcos eram de
última geração – esquecêramos de qualquer outra coisa: esquecêramos de
olhar o tempo – guiados por GPS's – esquecêramos da dureza dos tempos de
fome, esquecêramos da luz do sol pela luz dos holofotes que tomavam
conta de tudo.
E agora não amanhecia. Não
podiam nos culpar pela falta do amanhecer – não controlávamos os astros
– mas fora culpa nossa não percebermos a escuridão que nos envolvera aos
poucos – poderíamos ter nos mudado, ir atrás de outro lugar onde a luz
do sol ainda fosse garantida.
O tempo passava e não havia
consenso: o prefeito dizia que o sol não poderia ter morrido de uma hora
para outra, ele teria de voltar, era só esperarmos; os opositores do
prefeito diziam que só vivíamos a esperar – como esperávamos pela
construção do hospital central ou pela reforma do mercado – e nada fora
feito. Padre Joseph insistia na sua tese da escuridão gradual. Eu ouvia
tudo aquilo e me abismava. A idéia de ficar sem sol me assustava tanto
ou mais quanto uma noite de tempestade; as tempestades sempre passavam,
mas a idéia de uma escuridão que poderia ser permanente era como a
imagem de um ar denso, grosso, irrespirável, que tomava conta de nós,
como se o céu tivesse descido e sufocasse nossa garganta com o gelo das
nuvens, como se do outro lado do espelho houvesse um mundo onde tubarões
gigantes copulavam com antenas e seus filhos eram tvs onipresentes que
transmitiam 24 horas por dia imagens da morte em suas mil modalidades.
Um terror viscoso que se impregnaria nos pulmões como uma lesma bêbada,
a escuridão deixando marcas de lama, a boca da lesma sufocando nossas
narinas num abraço mortal.
Nem pensei duas vezes. As
pessoas tomaram a escuridão como fato consumado. Alguns já imaginavam
slogans turísticos: “Marombas – a cidade do mar noturno”; os
comerciantes de lâmpadas se alegravam, o prefeito pensava em novas datas
comemorativas – eu só queria ir embora. Como o mar se comportava qual
água onde agitam víboras, resolvi pegar a estrada.
Era estranho deixar tudo
para trás, mas era como abrir os olhos; porque só agora percebia que não
podia viver sem o sol. Tudo ficava para trás – casa, objetos, coisas,
seres. Só levava uma mochila e alguns livros, além de alimentos. Assim
que coloquei o pé na estrada, a certeza de que não regressaria tomou
conta de mim e me senti como criança que perde os pais, ou como alguém
que se olha no espelho e não se reconhece mais.
Era lua nova. A luz não
passava de uma penumbra tênue, como se o corpo do sol tivesse sido
seqüestrado ainda durante os primeiros vagidos da aurora. Talvez o sol
estivesse retido na linha do horizonte e eu não saberia como libertá-lo.
Mal caminhara e encontrei Tião Grajaú que repetia “o sol morreu, o sol
morreu!” e falei calma Tião, talvez o sol só esteja dormindo; ele parou
por alguns instantes e ficou a repetir “dormindo, dormindo, o sol
dormindo” e enquanto caminhava ele veio me seguir – pensei é melhor do
que seguir sozinho. Perseguia o horizonte, Tião dizia “acordar, acordar
o sol” e os ventos do que não amanhecera esfriavam a manhã, porque era
comum levantar-se e caminhar em plena madrugada, mas quando o sol se
aproximava os ventos mudavam de cor e tom, e emprestei um agasalho para
Tião Grajaú e ele sorriu com seus dentes sujos de fumo barato de mascar,
com seus dedos grossos e seu cavanhaque antigo. Parada no meio da
estrava estava Quinha das Botas repetindo em compasso binário “o sol
morreu morreu o sol morreu morreu” e Tião correu com um sorriso largo e
disse “não, dotô disse que o sol dorme e nós vai acordar o sol”,
enquanto eu pensava que essa metáfora era um último fio de esperança e
Quinha das Botas dizia então “não posso acordar o sol de barriga vazia”
e distribuí entre nós sanduíches que trouxera, Tião Grajaú sorria como
se a cidade fosse um pedaço de pão e Quinha das Botas tinha a certeza, a
profunda convicção de que era desonroso acordar o sol de barriga vazia.
Não sei ao certo quanto
tempo caminhamos, porque nas sombras o espaço se afasta e a dor do tempo
se comprime enquanto ele se dilata. Só sei que uma hora reparamos
pequenas luzes na linha distante do horizonte. Quinha das Botas correu
em disparada querendo pegar as luzes; fiquei atrás caminhando devagar
enquanto Tião Dizia “não precisa correr, o sol não vai cair”; caminhamos
muito até encontrar Quinha das Botas dançando no meio da estrada dizendo
“pirilampos” e os vagalumes envolviam seus cabelos, pousavam em seu
corpo, iluminavam sua pele escura clareando a estrada da verde; Tião
Grajaú dizia “você precisa libertar o sol” e Quinha sorria e dizia “não,
Tião, pirilampos, pirilampos” e segurou Tião pelas mãos e os dois
começaram a dançar valsa no meio da estrada, no silêncio dos vagalumes,
na música dos grilos; e era bonito de se ver aquela valsa iluminada,
eles girodopiando pela estrada, Quinha das Botas chamando os pirilampos,
Tião dizendo com certeza vamos acordar o sol, vamos acordar o sol, até
que lhe dei as mãos girocirandiando juntos uma valsa antiga tam tam tam,
tamrantarantamram, tam tam tam e quais dervixes vimos o cosmos descer ao
nosso lado e Quinha das Botas dizer “né pirilampo não, é estrela” e Tião
dizia “tá abrindo os olhos, tá abrindo os olhos” e no mais distante
horizonte ouvimos o pio dos pássaros do amanhecer e a música crescia
dentro de nós enquanto girávamos o mundo e distante o sol se abria num
sorriso. |
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Gledson Sousa (Brasil)
Nasceu
em Juazeiro do Norte, Ce, Brasil, em 1972. Desde 1991 vive em São Paulo.
Publicou
O ANTIMIDAS – Poemas
- São Paulo, Ed. Jano, 1998,
Martina - Monólogo de Um homem para sua Alma-
SP, Ed. Íbis Vermelho,2001 e
O Roubo da Alma
- Conferência
no livro
Números e Outras Coisas da Vida,
pela
editora Apenas Livros Lda, de Lisboa, e em 2009 o ensaio PRESENÇA DO
FEMININO NO RELATO DE VIAJANTES – CAMINHA, VESPÚCIO E CARVAJAL, no livro
DESIGUALDADE NO FEMININO, pela editora Apenas Livros Lda., de Lisboa.
Tem vários textos em linha no site TRIPLOV. Formado em História, com
curso de Paleografia pelo Arquivo do Estado de São Paulo, atualmente faz
pós graduação em História da Arte. Assina dois blogs, o
http://aesferadamanha.blogspot.com
e o
http://adeusutopia.blogspot.com |