REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 02

 

Não lembramos quando começou; parecia que tudo viera assim, de repente, com o choque do susto; mas ao pensarmos, ao rememorarmos devagar, ativando num esforço as lembranças, sabíamos que acontecera aos poucos, que tudo se sucedera numa seqüência demorada de eventos, em que só a lentidão de nossa percepção ou da nossa memória nos impedira de entender a gravidade dos acontecimentos, por menores que fossem, por mais inexpressivos que parecessem.

Visto assim, na distância, parece que não consigo transcrever o susto, ou melhor, o pânico que tomou conta de nós e que tornou aquele dia um divisor de águas, ou melhor, num divisor de eras; imagino que quando o Cristo nasceu ele não se concebia como um divisor do tempo – antes e depois dele -, a mesma coisa com Mohamed quando tomou Meca -; foi a posteriori que os homens imaginaram tempos diferentes, eras diferentes . Para nós não, aquele dia por si era um divisor de águas temporal, uma ocorrência cósmica que abria brechas no tempo, ainda que tudo aquilo fosse somente a soma de outros eventos que se sucederam no tempo e que só nossa ignorância nos impedira de perceber a gravidade.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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GLEDSON SOUSA

Sol

                                                               Gledson Sousa

 
 
 
 
 
 
 

Só sei que naquele dia, só sei que aquele dia não amanhecera. Era sábado. Muitos de nós imaginaram que o tempo estava nublado, porque o dia demorava a amanhecer, e resolveram dormir até mais tarde. Os loucos das ruas já haviam anunciado o que não percebêramos; Tião Grajaú saíra gritando pelas ruas “o sol morreu, o sol morreu”, mas ninguém dera ouvidos; Quinha das Botas também saíra com seu canto monocórdico a a repetir “o sol morreu morreu morreu”. Ouvíamos aquelas vozes pelas ruas e imaginávamos que era madrugada. Quando saímos às ruas pensamos que os relógios estavam loucos: eram 10,11 horas e o céu mantinha-se com a penumbra da madrugada, como se hesitasse entre o amanhecer e o anoitecer, como se não houvesse chances para a plenitude do dia.

Quando por volta do meio-dia tornou-se certeza que a manhã não viria e que não havia nenhum eclipse, muitos quiseram desesperar-se, pedir clemência a deuses duvidosos, realizar penitências hipócritas, desfazer, através do sofisma de uma fé reencontrada, as trevas que tomavam conta de nós. Alguns até pensaram em pegar os barcos e se lançar em alto mar; mas, não se sabe a razão, as ondas se agitavam com violência e a ausência do sol dava ao mar uma face sombria que afastava os viajantes.

Reunidos na praça discutíamos o que fazer – saber se aquela escuridão era localizada ou se o mundo todo estava assim; saber se algo poderia ser feito. Foi o padre Joseph quem nos falou – e só aí percebemos – que a escuridão viera aos poucos; nos fez lembrar passo a passo como a última primavera deixara de ser equinócio e avançara como solstício, como no verão as muitas nuvens de chuva esconderam o fato de que sob dias e dias não houvera sol; que embalados pela fortuna e pelos ventos da muita prosperidade – nossa colonia de pescadores era a mais rica da região, todos os barcos eram de última geração – esquecêramos de qualquer outra coisa: esquecêramos de olhar o tempo – guiados por GPS's – esquecêramos da dureza dos tempos de fome, esquecêramos da luz do sol pela luz dos holofotes que tomavam conta de tudo.

E agora não amanhecia. Não podiam nos culpar pela falta do amanhecer – não controlávamos os astros – mas fora culpa nossa não percebermos a escuridão que nos envolvera aos poucos – poderíamos ter nos mudado, ir atrás de outro lugar onde a luz do sol ainda fosse garantida.

O tempo passava e não havia consenso: o prefeito dizia que o sol não poderia ter morrido de uma hora para outra, ele teria de voltar, era só esperarmos; os opositores do prefeito diziam que só vivíamos a esperar – como esperávamos pela construção do hospital central ou pela reforma do mercado – e nada fora feito. Padre Joseph insistia na sua tese da escuridão gradual. Eu ouvia tudo aquilo e me abismava. A idéia de ficar sem sol me assustava tanto ou mais quanto uma noite de tempestade; as tempestades sempre passavam, mas a idéia de uma escuridão que poderia ser permanente era como a imagem de um ar denso, grosso, irrespirável, que tomava conta de nós, como se o céu tivesse descido e sufocasse nossa garganta com o gelo das nuvens, como se do outro lado do espelho houvesse um mundo onde tubarões gigantes copulavam com antenas e seus filhos eram tvs onipresentes que transmitiam 24 horas por dia imagens da morte em suas mil modalidades. Um terror viscoso que se impregnaria nos pulmões como uma lesma bêbada, a escuridão deixando marcas de lama, a boca da lesma sufocando nossas narinas num abraço mortal.

Nem pensei duas vezes. As pessoas tomaram a escuridão como fato consumado. Alguns já imaginavam slogans turísticos: “Marombas – a cidade do mar noturno”; os comerciantes de lâmpadas se alegravam, o prefeito pensava em novas datas comemorativas – eu só queria ir embora. Como o mar se comportava qual água onde agitam víboras, resolvi pegar a estrada.

Era estranho deixar tudo para trás, mas era como abrir os olhos; porque só agora percebia que não podia viver sem o sol. Tudo ficava para trás – casa, objetos, coisas, seres. Só levava uma mochila e alguns livros, além de alimentos. Assim que coloquei o pé na estrada, a certeza de que não regressaria tomou conta de mim e me senti como criança que perde os pais, ou como alguém que se olha no espelho e não se reconhece mais.

Era lua nova. A luz não passava de uma penumbra tênue, como se o corpo do sol tivesse sido seqüestrado ainda durante os primeiros vagidos da aurora. Talvez o sol estivesse retido na linha do horizonte e eu não saberia como libertá-lo. Mal caminhara e encontrei Tião Grajaú que repetia “o sol morreu, o sol morreu!” e falei calma Tião, talvez o sol só esteja dormindo; ele parou por alguns instantes e ficou a repetir “dormindo, dormindo, o sol dormindo” e enquanto caminhava ele veio me seguir – pensei é melhor do que seguir sozinho. Perseguia o horizonte, Tião dizia “acordar, acordar o sol” e os ventos do que não amanhecera esfriavam a manhã, porque era comum levantar-se e caminhar em plena madrugada, mas quando o sol se aproximava os ventos mudavam de cor e tom, e emprestei um agasalho para Tião Grajaú e ele sorriu com seus dentes sujos de fumo barato de mascar, com seus dedos grossos e seu cavanhaque antigo. Parada no meio da estrava estava Quinha das Botas repetindo em compasso binário “o sol morreu morreu o sol morreu morreu” e Tião correu com um sorriso largo e disse “não, dotô disse que o sol dorme e nós vai acordar o sol”, enquanto eu pensava que essa metáfora era um último fio de esperança e Quinha das Botas dizia então “não posso acordar o sol de barriga vazia” e distribuí entre nós sanduíches que trouxera, Tião Grajaú sorria como se a cidade fosse um pedaço de pão e Quinha das Botas tinha a certeza, a profunda convicção de que era desonroso acordar o sol de barriga vazia.

Não sei ao certo quanto tempo caminhamos, porque nas sombras o espaço se afasta e a dor do tempo se comprime enquanto ele se dilata. Só sei que uma hora reparamos pequenas luzes na linha distante do horizonte. Quinha das Botas correu em disparada querendo pegar as luzes; fiquei atrás caminhando devagar enquanto Tião Dizia “não precisa correr, o sol não vai cair”; caminhamos muito até encontrar Quinha das Botas dançando no meio da estrada dizendo “pirilampos” e os vagalumes envolviam seus cabelos, pousavam em seu corpo, iluminavam sua pele escura clareando a estrada da verde; Tião Grajaú dizia “você precisa libertar o sol” e Quinha sorria e dizia “não, Tião, pirilampos, pirilampos” e segurou Tião pelas mãos e os dois começaram a dançar valsa no meio da estrada, no silêncio dos vagalumes, na música dos grilos; e era bonito de se ver aquela valsa iluminada, eles girodopiando pela estrada, Quinha das Botas chamando os pirilampos, Tião dizendo com certeza vamos acordar o sol, vamos acordar o sol, até que lhe dei as mãos girocirandiando juntos uma valsa antiga tam tam tam, tamrantarantamram, tam tam tam e quais dervixes vimos o cosmos descer ao nosso lado e Quinha das Botas dizer “né pirilampo não, é estrela” e Tião dizia “tá abrindo os olhos, tá abrindo os olhos” e no mais distante horizonte ouvimos o pio dos pássaros do amanhecer e a música crescia dentro de nós enquanto girávamos o mundo e distante o sol se abria num sorriso.

 

 

Gledson Sousa (Brasil)
N
asceu em Juazeiro do Norte, Ce, Brasil, em 1972. Desde 1991 vive em São Paulo. Publicou O ANTIMIDAS – Poemas - São Paulo, Ed. Jano, 1998, Martina - Monólogo de Um homem para sua Alma- SP, Ed. Íbis Vermelho,2001 e O Roubo da Alma - Conferência no livro Números e Outras Coisas da Vida, pela editora Apenas Livros Lda, de Lisboa, e em 2009 o ensaio PRESENÇA DO FEMININO NO RELATO DE VIAJANTES – CAMINHA, VESPÚCIO E CARVAJAL, no livro DESIGUALDADE NO FEMININO, pela editora Apenas Livros Lda., de Lisboa. Tem vários textos em linha no site TRIPLOV. Formado em História, com curso de Paleografia pelo Arquivo do Estado de São Paulo, atualmente faz pós graduação em História da Arte. Assina dois blogs, o http://aesferadamanha.blogspot.com e o http://adeusutopia.blogspot.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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