A resposta pode ser encontrada no próprio Jorge de Lima; em seus trechos
tidos como mais “obscuros”.
Em outra
ocasião, já citei um ensaio de César Leal, “Universalidade de Jorge de
Lima" (3), rebatendo as acusações de que o autor de Invenção de Orfeu
seria ininteligível, gongórico em demasia, abusivamente hermético. Por
algumas páginas, transcreve poemas de Invenção de Orfeu, como
este do Canto IV:
Amo-te,
Dante, e as rosas que tu viste
- naquela
que, formosa rosa branca,
a divina
milícia tinha à vista,
de corla
coral que entoa a glória
da face
das pessoas trinitárias;
a rosa
imensa que aos teus olhos era
um enxame
de abelhas luminosas,
que na
flora de Deus se dessedenta.
E os
compara com passagens de A Divina Comédia de Dante – mais
precisamente, com relação ao trecho citado, com o encontro com a “divina
milícia”, os “espíritos divinos”, nos cantos X a XII do “Paraíso”.
Através dessa comparação, o aparentemente esdrúxulo e arbitrário da
poesia de Jorge de Lima ganha sentido, pois seus símbolos remetem a
outros símbolos – desde que se conheça Dante, é claro.
A 31 de dezembro de 1961, talvez Piva caminhasse por “praças agitadas
pela melancolia”, como diz em “Jorge de Lima, panfletário do Caos”. E
concebia Paranóia: a data está dentro do período de criação desse
livro.
“Jorge de Lima, panfletário do Caos” termina assim:
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve estar
como um talismã nos lábios de todos os meninos
É possível reconhecer a origem de algumas dessas imagens. O “fermento e
agonia” estão na passagem mais terrível da “Ode a Walt Whitman” de
García Lorca:
É evidente: lembrar o trecho de Lorca amplia o sentido do que Piva
escreveu.
Em poesia, o acaso pode ser determinante – mas nada é gratuito,
desprovido de sentido. Em Paranóia, no poema imediatamente
anterior a “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, intitulado “O Volume do
Grito”, Piva diz que “encontro com Lorca num hospital da Lapa”; no poema
seguinte, logo após “Jorge de Lima, panfletário
do Caos”, intitulado “Stenamina boat”, a epígrafe é de O Poeta em
Nova York de Lorca: Prepara tu esqueleto para el aire. Em
“praça da República dos meus sonhos”, “García Lorca espera seu
dentista”. Jorge de Lima, por sua vez, também menciona Lorca (e Dante, e
Camões, e Lautréamont, e...) em Invenção de Orfeu.
Em “Stenamina boat”, há um encontro com outro poeta:
Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília
ele me espera no Largo do Arouche no ombro de um santuário.
Metáforas da leitura, esses encontros. Piva podia ser visto nesses
lugares, trazendo consigo um livro. Ou trazendo o poema na memória. Já
relatei (no posfácio de Um Estrangeiro na Legião)
a ocasião
em que o encontrei na rua Major Sertório – pegou-me pelo braço e se pôs
a recitar, também do Poeta em Nova York de García Lorca:
Debaixo
das multiplicações
Há uma
gota de sangue de pato
Debaixo
das divisões
Há uma
gota de sangue de marinheiro
Debaixo
das somas, um rio de sangue terno.
Antonio Fernando de Franceschi, por sua vez, comenta uma sessão mais
prolongada de leitura em voz alta de O Poeta em Nova York de
Lorca, em um bar na Alameda Glete (5).
Tais testemunhos poderiam se estender: quanta poesia não foi dita de
memória ou com o texto na mão, em encontros na rua, em nossas casas, em
bares. Ou através de telefonemas: por exemplo, Piva lendo-me algumas das
passagens mais empolgantes de La liberté ou l’amour! de Robert
Desnos – entre tantas valiosas indicações de leitura.
Em “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, Piva também o proclama “grande
alucinado querido e estranho professor do Caos”. É um tom assemelhado
àquele com que se dirige a Mário de Andrade em “No Parque Ibirapuera”,
outro poema de Paranóia:
Não pares nunca meu querido capitão- loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores suspensa em teu ritmo.
Já escrevi sobre intertextualidade em “No Parque Ibirapuera”. Outros
também o fizeram. Há citações, paráfrases e alusões evidentes:
Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto
Isso é Piva; e é Mário de Andrade; assim como
É noite. E tudo é noite. É noite
É noite nos pára-lamas dos carros
É noite nas pedras.
Mas a ambiência do poema é aquela de
“Um supermercado na Califórnia” de Allen Ginsberg. Refere-se a Mário de
Andrade do mesmo modo como Ginsberg a Walt Whitman. Há, no poema de Piva,
um encontro, não apenas de dois poetas, ele e Mário, mas de quatro, com
a companhia adicional de Ginsberg e de Whitman.
Em
“Um supermercado na Califórnia”, Ginsberg se
dirige a Whitman:
Eu o vi,
Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas
carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.
Ouvi-o fazer perguntas a cada
um deles: Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas?
Será você meu Anjo? (6)
E Piva se dirige a Mário:
Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos
Eu te imagino perguntando a eles:
onde fica o pavilhão da Bahia?
qual é o preço do amendoin?
é você meu girassol?
No poema de Ginsberg, retorna o autor de Poeta em Nova York: “e
você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?”. Há um
trecho da “Ode a Walt Whitman” que Ginsberg cita, a propósito de seu “Howl”,
“Uivo”, em uma edição comentada desse poema, e que também é intertexto
de Paranóia:
Nova York
de lama,
Nova York
de arame e de morte.
Que anjo
levas oculta na face?
Que voz
perfeita dirá as verdades do trigo?
Quem o
sonho terrível das tuas anedotas manchadas?
Ginsberg
se encontrava com Lorca em um supermercado, Piva em Santa Cecília, na
Praça da República, na Lapa...
Há um
“garoto” em Piva que pode ser um “anjo” em Ginsberg; “adolescentes” em
Ginsberg que podem ser um “girassol” em Piva. Aqui, entramos em um
cruzamento mais complexo de alusões. Girassol é um símbolo-chave em
Ginsberg: há o “Sutra do Girassol”, e o poema do girassol “Ah! Sunflower”
de Blake (Breton também escreveu um poema significativo com girassol, “Tournesol”).
Mário de
Andrade, por sua vez, escreveu “Girassol da Madrugada" (7). Como se
sabe, o líder do modernismo brasileiro e da Semana de 22 era reservado
com relação a sua vida sexual. Mas há dois textos que podem ser lidos
como alusões à sua homossexualidade: o conto “Frederico Paciência” e o
poema “Girassol da Madrugada”. Neste, dirige-se a um rapaz, em versos
inspiradíssimos:
Assim.
Que jamais um pudor te humanize. É feliz
Deixar
que o meu olhar te conceda o que é teu,
Carne que
é flor de girassol! sombra de anil!
Eu
encontro em mim mesmo uma espécie de abril
Em que se
espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.
[...]
Tive
quatro amores eternos...
O
primeiro era a moça donzela,
O
segundo, eclipse, boi que fala, cataclisma,
O
terceiro era a rica senhora,
O quarto
és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados.
(8)
Todo o Paranóia pode ser lido assim, não só localizando
intertextos, trechos de outros autores que são parafraseados, porém
alusões mais sutis e indiretas, que ampliam seu significado e ressaltam
sua riqueza simbólica.
Em “A Piedade”, poema de Paranóia que Piva sempre escolhe para
abrir suas recitações públicas de poesia, como apresentação de si mesmo,
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
Em “America” de Ginsberg, no lugar da piedade, a seriedade:
Estou
obcecado pelo Time Magazine.
Eu o
leio toda semana.
Sua capa
me encara toda vez que passo sorrateiramente pela confeitaria da
esquina.
Eu o
leio no porão da Biblioteca Pública de Berkeley.
Está
sempre me falando de responsabilidades. Os homens de negócios são
sérios. Os produtores de cinema são sérios. Todo mundo é sério menos eu.
Já em Gregory Corso,
Mas o que é a Amabilidade? Matei a Amabilidade,
mas o que ela é?
Uma pessoa é amável porque vive uma vida amável.
São Francisco era amável.
O senhorio é amável.
A vara é amável.
Posso
pensar que as pessoas sentadas nos parques são ainda mais amáveis? (9)
A “piedade” de Piva, a “seriedade” de Ginsberg, a “amabilidade” de Corso
– os três, entre outros poetas, Rimbaud inclusive, a partilharem a
recusa dos bons sentimentos.
Relatei, em outras ocasiões, a chegada de publicações beat que
Piva promoveu em meados de 1961 (10). Afirmei que, embora os beats
já fossem conhecidos como tema jornalístico, aquela foi a primeira vez
(e única, por algum tempo) na literatura brasileira em que se
estabeleceu um diálogo com autores daquele movimento. no plano da
criação poética. Penso que a leitura de Ginsberg e seus pares contribuiu
para que Piva se expressasse com maior liberdade vocabular, incluindo
obscenidades; que ampliasse a utilização de topônimos, menções a lugares
de São Paulo (que já ocorria em poemas anteriores, porém em um modo
descritivo e não onírico ou delirante); igualmente, que ampliasse as
menções a leituras, a outros autores.
Rastrear o intertexto beat de Piva é algo que pode ir longe.
Daquela pilha de obras beat também faziam parte Gasoline e
Lady Vestal de Gregory Corso. Compare-se, de Paranóia,
Eu queria ver a cara dos estranhos embaixadores da Bondade quando me
vissem passar entre as rosas de lama fermentando nas ruelas onde a Morte
é tal qual uma porrada
com,
Eu conheci as estranhas enfermeiras da Amabilidade,
eu as vi beijar aos doentes, atender aos velhos,
dar doces
aos loucos!
Arriscaria ir mais longe. Vejo afinidade da torrente de imagens de
Bomb! de Corso com aquelas de Paranóia; do formato desse
poema, impresso em uma longa tira de papel, com aquele da Ode a
Fernando Pessoa de Piva (criado logo após a chegada da remessa
beat). Lembraria que um título de poema de Corso é “Amnésia em
Memphis”; daí a “Paranóia em Astrakan” de Piva é um passo; e daí ao
título Paranóia, partilhando com um dos títulos de Corso,
Gasoline, os títulos com termos tidos como não “poéticos” em obras
poéticas – em um procedimento que teve Baudelaire como seu grande
iniciador, suscitando estranheza, e que foi exacerbado por Corso,
Ginsberg e outros beats.
Mas Piva criou todas essas paráfrases, alusões e apropriações (e tantas
outras) de modo proposital? Não creio. Sua escrita é espontânea, movida
pelo entusiasmo, ao sabor da inspiração e do fluxo da consciência.
Escreve direto. Seus manuscritos originais correspondem ao que foi
publicado, quase sem rasuras. O inconsciente é intertextual, como o
demonstrou Riffaterre, ao escrever sobre a escrita automático em
Peixe Solúvel de Breton,
em um ensaio que vem muito a propósito, examinando “a relação essencial
entre desejo e linguagem” e “entre o desejo e a representação da
realidade na literatura” (11).
Em Semiotics of Poetry, (12) Riffaterre ilumina uma quantidade de
supostas obscuridades literárias (inclusive de Lautréamont, Rimbaud,
Breton e Éluard) ao confrontá-las com seu intertexto, mostrando que são
transformações de algo já escrito antes. Há, contudo, uma zona
misteriosa, aquela das sincronias, da citação de textos não lidos –
confirmando que o inconsciente, feito de símbolos, é um manancial da
poesia. Coloque-se, por exemplo, lado a lado o poema “Praça da
República” de outro modernista brasileiro, Menotti del Picchia e “Praça
da República dos meus sonhos”, de Paranóia. Cotejando-os, seria
possível argumentar que Piva fez paródia e atualização do poema de
Menotti; contudo, isso jamais lhe passou pela cabeça; provavelmente, nem
reparou nesse poema do autor de Juca Mulato.
Comparações entre Piva e modernistas brasileiros levariam à constatação
de que o mais próximo a Paranóia, com maior afinidade, é o Luis
Aranha de Cocktails, inclusive pelo modo como confunde o “eu” e a
cidade, sua própria subjetividade e aquilo que o rodeia:
Sou um trem
Um navio
Um aeroplano
Sou a força centrífuga e centrípeta
Todas as forças da terra
Todas as dimensões e todas as liberdades
Sinto a vida cantar em mim uma alvorada de metal
O meu corpo
é um clarim [...] (13)
No entanto, Luis
Aranha, um renegado do modernismo (autor de um único livro – aliás,
considerado um “desastre” por Mário de Andrade; dedicou-se à carreira
diplomática e não publicou mais nada), e a meu ver poeta especialmente
interessante, não circulava no período de criação de Paranóia. Caberia
projetar nessa sincronia o que Borges disse, em “Kafka e seus
precursores”, sobre os autores que criam seus precursores, enriquecendo
a leitura dos que os precederam: Entre outros desses ‘precursores’ de
Kafka – Zeno, Han You, Leon Bloy, Dunsanny, Browning – está Kierkegaard,
por histórias como aquela das expedições ao Pólo Norte recomendada por
párocos dinamarqueses (“Finalmente, anunciariam que qualquer viagem – da
Dinamarca a Londres, digamos, em um vapor de carreira –, ou um passeio
dominical de carro de praça são, pensando bem, verdadeiras expedições ao
Pólo Norte”). Interessam as conclusões extraídas por Borges dessas
leituras retrospectivas, de um “precursor” como Kierkegaard a partir do
seu “sucessor” Kafka, independentemente de Kafka haver lido ou não esses
comentários de Kierkegaard: “O fato é que cada escritor cria seus
precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há
de modificar o futuro.” (14)
A partir de Piva, lê-se mais em Cocktails de Luís Aranha:
Paranóia “cria”, produz este e outros “precursores”.
Mais recentemente, uns poucos anos atrás, comentei com Piva a afinidade
de Paranóia com o melhor Neruda, aquele de Residência na Terra,
com suas imagens duras, brutais, como estas:
Cadáveres adormecidos que tantas vezes
dançam agarrados ao peso do meu coração,
que cidades
opacas percorreremos! (15)
Após examinar o livro de Neruda, Piva telefonou-me, concordando. Algo
semelhante ocorreu quando, no posfácio de Um Estrangeiro na Legião,
conectei sapatos, abóbora e nuvens de seu 20 poemas com Brócoli a
sapatos, abóbora e nuvens em O Amor Louco de Breton.
A propósito, outra sincronia ou intertextualidade misteriosa. No Breton
de O Amor Louco:
A morte,
cujo relógio feito de flores campestres, relógio belo como a minha pedra
sepulcral erguida ao alto, voltará a andar, na ponta dos pés, para
cantar as horas que não passam. (16)
No Piva de
Ciclones:
Que você conheça este relógio
sem nuvens
chamado morte
dependurado no planeta (17)
O inconsciente é um manancial de poesia; já o sabiam os surrealistas, e
antes deles, os sonhadores da primeira geração romântica.
Entre outras qualidades e justificativas de interesse por Paranóia
está o modo como Piva fez a releitura beat do modernismo
brasileiro; e a leitura surrealista de ambos, nosso modernismo e a
beat. “Beat-surreal”, é assim que Piva já caracterizou, com
propriedade, seu livro de estréia (em entrevistas e no documentário
Uma outra cidade de Ugo Giorgetti). Sempre insistirei no segundo
desses termos: surreal.
É evidente
a amplidão das leituras, fontes e intertexto de Piva, dos clássicos aos
contemporâneos, passando por românticos, simbolistas e vanguardistas;
mas, como sua relação com o surrealismo já foi objeto de dúvidas – mesmo
sendo expressamente reafirmada, por exemplo ao intitular um dos poemas
de seu último livro, Estranhos sinais de Saturno, de “Os Grandes
Transparentes”, em alusão ao “novo mito” proposto por Breton em seu
derradeiro manifesto surrealista –, volto a observar que a demora, que
pode ser medida em décadas, na compreensão e recepção da sua obra, e de
Paranóia em especial, resultou da surdez para o não-discursivo na
crítica brasileira. O recalque brasileiro do surrealismo pode ser
associada às alternativas aceitas por nossos letrados: a criação mais
cerebral, seja buscando a clareza do sentido, seja pelo caminho da
experimentação formalista.
Evidentemente, uma coisa é a riqueza do intertexto, proposital ou não,
através de leituras ou de sincronias, de Piva; outra é seu valor
literário, que não se reduz às alusões e citações de outros autores.
Comparar trechos de Paranóia com aqueles de outros poetas ajuda a
destacar o que Piva tem de pessoal. Por exemplo, a extrema inventividade
na criação de imagens como estas:
estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas
Sua característica ironia:
O Espírito Puro
vomita um aplauso antiaéreo
[...]borboletas
de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas
E a
capacidade de síntese nas descrições condensadas:
a lua tem violentas hemoptises no céu de nitrato
há jovens
pederastas embebidos em lilás
e putas
com a noite passeando em torno de suas unhas
Há muito
mais, já examinado por mim, e por outros estudiosos, em Paranóia,
inclusive as blasfêmias e sarcasmos. Porém o que prevalece são imagens
poéticas de alta voltagem.
Essa
abertura do leque de intertextos, possíveis ou reais, vem a propósito da
recepção da obra de Piva; mais especialmente, da nova edição de
Paranóia (pelo Instituto Moreira Salles, em 2009). Por exemplo,
quando é dito, a propósito deste livro,
da sua “velocidade artificial das drogas”,
com “Chá
de anfetaminas na cabeça”, “filtrado pelas lentes róseas e sombrias dos
alucinógenos” (18) – o que imediatamente motivou um artigo de
Luis Costa
Lima (19), citando trechos de Piva, dando-os como exemplo de delírio sem
valor poético:
As mentes
ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo
invocando
as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva
E outros,
para ele com maior valor poético:
Eu
preciso dissipar o encanto do meu velho esqueleto
eu preciso esquecer que
existo [...]
Meus pés
sonham suspensos no Abismo
eu sou
uma solidão nua amarrada a um poste
Mas, tanto
em uns como em outros, não se ouve o eco das leituras de Piva na época,
do Poeta em Nova York de García Lorca? E do Ginsberg sob
alucinógenos de Kaddish? (mas um formalista empedernido
reconhecer Ginsberg já seria querer demais)
Que Piva
propõe uma poética do delírio está fora de dúvida. É proclamada com
vigor já em seus manifestos de 1962, bem como em Piazzas: “Eu
aprendi com Rimbaud e Nietzsche os meus toques de INFERNO”, com sua
“idéia da Poesia como instrumento da Libertação Psicológica & Total,
como a mais fascinante Orgia ao alcance do Homem” (20). E talvez seja
mero detalhe observar que a escrita de Paranóia aconteceu durante
alguns anos nos quais Piva não tomava bebidas alcoólicas; e, menos
ainda, alucinógenos então ainda inexistentes. E que, em contrapartida,
seu nível de excessos e desregramento pessoal foi o mesmo durante a
escrita, na década de 1980, dos límpidos e concisos 20 poemas com
Brócoli e, logo a seguir, de Quizumba, texto-limite e seu
livro mais delirante (21). Não se trata de negar a existência de
relações entre biografia e obra, entre literatura e vida; mais ainda, em
um autor que propõe a fusão ou síntese dos dois planos; porém de mostrar
que tais relações são complexas, que leituras demasiado literais podem
ser enganadoras. Principalmente, de observar uma constante, ao longo de
todos esses anos: sua paixão pela leitura; a varredura obsessiva de
livrarias; as constantes recomendações de leituras e indicações de obras
– algumas, valiosíssimas para mim.
Destacar o
Piva leitor e sua contribuição, digamos assim, pedagógica, é importante
em face desse aspecto preocupante da realidade brasileira: sermos um
país com 70% de analfabetos funcionais, com índices tão baixos de
leitura de livros. Na mesma medida, é manifestação de inconformismo e
recusa do ‘status quo’ a resistência de Piva a ser fácil e discursivo.
Navega contra a correnteza ao apresentar-se como erudito – de uma
erudição não-curricular, nada acadêmica – e pontuar seus poemas com
epígrafes, citações, menções e alusões a outros autores, tornando esse
procedimento frenético em suas obras mais recentes. 20 poemas com
Brócoli é, sim, relação com saunas de subúrbio; é, igualmente,
relação com a Divina Comédia de Dante; é um e outro – e
muito mais: anamnese, recuperação e recriação de passados, aqueles
históricos e o pessoal; biografia imediata e registro do dia-a-dia;
remissão a todos os autores citados nesses poemas, e a tantos outros, de
modo oblíquo, indireto.
Felizmente, muitos puderam se beneficiar não só da leitura da poesia de
Piva, mas da transmissão direta, comentando suas leituras e sua poética
– por exemplo, nas séries de “encontros órficos” (título, obviamente,
proposto por ele) pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo nos
anos de 1990 (22) e na Casa da Palavra de Santo André em 2007 e 2008
(24), entre outras ocasiões.
Coisa de
dois anos atrás, em uma mesa composta por Piva, Afonso Henriques Neto e
por mim em uma casa de cultura em Diadema, reclamei ser um absurdo a
mesma sessão não acontecer também na USP (quase citando o comentário de
Ginsberg, de que William Carlos Williams morava a vinte quilômetros de
Columbia, e nunca havia sido chamado para dar uma conferência lá). As
possibilidades de apresentar-se do Piva-conferencista, indissociável do
Piva-poeta, foram aquém do que poderiam ser. Felizmente, isso não obstou
o crescimento recente da sua circulação; a recuperação das quatro
décadas de atraso na recepção de Paranóia (25) e outras de suas
obras; o aumento do número de seus leitores; e, principalmente, a partir
da década de 1990, dos novos poetas que por sua vez o escrevem, dos
quais ele é um intertexto. Já seria possível montar uma boa antologia de
poemas de novos autores nas quais Piva está presente como epígrafe, em
títulos, citações, alusões e homenagens. Igualmente importante, penso, é
uma ensaística recente, incluindo teses e dissertações de qualidade,
lançando novas luzes e propondo novas interpretações de sua contribuição
literária.
O presente
encontro é de apoio a Roberto Piva, pelas notórias dificuldades que
enfrenta. Mas nele cabe, também, a manifestação de satisfação por esse
crescimento do interesse por sua poesia, aqui mais uma vez atestado. |