REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 02

 

(O presente texto foi lido em uma manifestação em apoio ao poeta Roberto Piva – em nota abaixo, o “release” do evento, para que todos saibam da circunstância)(1)  

 

Há incontáveis menções a outros poetas ao longo de toda a obra de Piva. Esta, em Paranóia, abre o poema intitulado “Jorge de Lima, panfletário do Caos”:

Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima

enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente

na minha memória devorada pelo azul (1)

Mas o que “compreendeu” Piva em Jorge de Lima a 31 de dezembro de 1961? (2)Coisa de dois anos antes, quando o conheci, já dizia passagens de Invenção de Orfeu, e o considerava um autor fundamental.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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CLAUDIO WILLER

 

ROBERTO PIVA

E A POESIA

 

                                                              Claudio Willer

   
 
 
 
 
 
 

A resposta pode ser encontrada no próprio Jorge de Lima; em seus trechos tidos como mais “obscuros”. Em outra ocasião, já citei um ensaio de César Leal, “Universalidade de Jorge de Lima" (3), rebatendo as acusações de que o autor de Invenção de Orfeu seria ininteligível, gongórico em demasia, abusivamente hermético. Por algumas páginas, transcreve poemas de Invenção de Orfeu, como este do Canto IV:

Amo-te, Dante, e as rosas que tu viste

- naquela que, formosa rosa branca,

a divina milícia tinha à vista,

de corla coral que entoa a glória

da face das pessoas trinitárias;

a rosa imensa que aos teus olhos era

um enxame de abelhas luminosas,

que na flora de Deus se dessedenta.

E os compara com passagens de A Divina Comédia de Dante – mais precisamente, com relação ao trecho citado, com o encontro com a “divina milícia”, os “espíritos divinos”, nos cantos X a XII do “Paraíso”. Através dessa comparação, o aparentemente esdrúxulo e arbitrário da poesia de Jorge de Lima ganha sentido, pois seus símbolos remetem a outros símbolos – desde que se conheça Dante, é claro.

A 31 de dezembro de 1961, talvez Piva caminhasse por “praças agitadas pela melancolia”, como diz em “Jorge de Lima, panfletário do Caos”. E concebia Paranóia: a data está dentro do período de criação desse livro.

“Jorge de Lima, panfletário do Caos” termina assim:

é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve estar como um talismã nos lábios de todos os meninos

É possível reconhecer a origem de algumas dessas imagens. O “fermento e agonia” estão na passagem mais terrível da “Ode a Walt Whitman” de García Lorca:

Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho.

Este é o mundo, amigo, agonia, agonia.

Os mortos se decompõem sob o relógio das cidades,

a guerra passa chorando com um milhão de ratazanas cinzentas,

os ricos dão a suas queridas

pequenos moribundos iluminados,

e a vida não é nobre, nem boa, nem sagrada. (4)

É evidente: lembrar o trecho de Lorca amplia o sentido do que Piva escreveu.

Em poesia, o acaso pode ser determinante – mas nada é gratuito, desprovido de sentido. Em Paranóia, no poema imediatamente anterior a “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, intitulado “O Volume do Grito”, Piva diz que “encontro com Lorca num hospital da Lapa”; no poema seguinte, logo após “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, intitulado “Stenamina boat”, a epígrafe é de O Poeta em Nova York de Lorca: Prepara tu esqueleto para el aire. Em “praça da República dos meus sonhos”, “García Lorca espera seu dentista”. Jorge de Lima, por sua vez, também menciona Lorca (e Dante, e Camões, e Lautréamont, e...) em Invenção de Orfeu.

Em “Stenamina boat”, há um encontro com outro poeta:

Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília

ele me espera no Largo do Arouche no ombro de um santuário.

Metáforas da leitura, esses encontros. Piva podia ser visto nesses lugares, trazendo consigo um livro. Ou trazendo o poema na memória. Já relatei (no posfácio de Um Estrangeiro na Legião) a ocasião em que o encontrei na rua Major Sertório – pegou-me pelo braço e se pôs a recitar, também do Poeta em Nova York de García Lorca:

Debaixo das multiplicações

Há uma gota de sangue de pato

Debaixo das divisões

Há uma gota de sangue de marinheiro

Debaixo das somas, um rio de sangue terno.

Antonio Fernando de Franceschi, por sua vez, comenta uma sessão mais prolongada de leitura em voz alta de O Poeta em Nova York de Lorca, em um bar na Alameda Glete (5).

Tais testemunhos poderiam se estender: quanta poesia não foi dita de memória ou com o texto na mão, em encontros na rua, em nossas casas, em bares. Ou através de telefonemas: por exemplo, Piva lendo-me algumas das passagens mais empolgantes de La liberté ou l’amour! de Robert Desnos – entre tantas valiosas indicações de leitura.

Em “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, Piva também o proclama “grande alucinado querido e estranho professor do Caos”. É um tom assemelhado àquele com que se dirige a Mário de Andrade em “No Parque Ibirapuera”, outro poema de Paranóia:

Não pares nunca meu querido capitão- loucura

Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores suspensa em teu ritmo.

Já escrevi sobre intertextualidade em “No Parque Ibirapuera”. Outros também o fizeram. Há citações, paráfrases e alusões evidentes:

Por detrás de cada pedra

Por detrás de cada homem

Por detrás de cada sombra

O vento traz-me o teu rosto

Isso é Piva; e é Mário de Andrade; assim como

É noite. E tudo é noite. É noite

É noite nos pára-lamas dos carros

É noite nas pedras.

Mas a ambiência do poema é aquela de “Um supermercado na Califórnia” de Allen Ginsberg. Refere-se a Mário de Andrade do mesmo modo como Ginsberg a Walt Whitman. Há, no poema de Piva, um encontro, não apenas de dois poetas, ele e Mário, mas de quatro, com a companhia adicional de Ginsberg e de Whitman.

Em “Um supermercado na Califórnia”, Ginsberg se dirige a Whitman:

Eu o vi, Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.

Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo? (6)

E Piva se dirige a Mário:

Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos

Eu te imagino perguntando a eles:

onde fica o pavilhão da Bahia?

qual é o preço do amendoin?

é você meu girassol?

No poema de Ginsberg, retorna o autor de Poeta em Nova York: “e você, Garcia Lorca, o que fazia lá, no meio das melancias?”. Há um trecho da “Ode a Walt Whitman” que Ginsberg cita, a propósito de seu “Howl”, “Uivo”, em uma edição comentada desse poema, e que também é intertexto de Paranóia:

Nova York de lama,

Nova York de arame e de morte.

Que anjo levas oculta na face?

Que voz perfeita dirá as verdades do trigo?

Quem o sonho terrível das tuas anedotas manchadas?

Ginsberg se encontrava com Lorca em um supermercado, Piva em Santa Cecília, na Praça da República, na Lapa...

Há um “garoto” em Piva que pode ser um “anjo” em Ginsberg; “adolescentes” em Ginsberg que podem ser um “girassol” em Piva. Aqui, entramos em um cruzamento mais complexo de alusões. Girassol é um símbolo-chave em Ginsberg: há o “Sutra do Girassol”, e o poema do girassol “Ah! Sunflower” de Blake (Breton também escreveu um poema significativo com girassol, “Tournesol”).

Mário de Andrade, por sua vez, escreveu “Girassol da Madrugada" (7). Como se sabe, o líder do modernismo brasileiro e da Semana de 22 era reservado com relação a sua vida sexual. Mas há dois textos que podem ser lidos como alusões à sua homossexualidade: o conto “Frederico Paciência” e o poema “Girassol da Madrugada”. Neste, dirige-se a um rapaz, em versos inspiradíssimos:

Assim. Que jamais um pudor te humanize. É feliz

Deixar que o meu olhar te conceda o que é teu,

Carne que é flor de girassol! sombra de anil!

Eu encontro em mim mesmo uma espécie de abril

Em que se espalha o teu sinal, suave, perpetuamente.

[...]

Tive quatro amores eternos...

O primeiro era a moça donzela,

O segundo, eclipse, boi que fala, cataclisma,

O terceiro era a rica senhora,

O quarto és tu... E eu afinal me repousei dos meus cuidados. (8)

Todo o Paranóia pode ser lido assim, não só localizando intertextos, trechos de outros autores que são parafraseados, porém alusões mais sutis e indiretas, que ampliam seu significado e ressaltam sua riqueza simbólica.

Em “A Piedade”, poema de Paranóia que Piva sempre escolhe para abrir suas recitações públicas de poesia, como apresentação de si mesmo,

as senhoras católicas são piedosas

os comunistas são piedosos

os comerciantes são piedosos

só eu não sou piedoso

Em “America” de Ginsberg, no lugar da piedade, a seriedade:

Estou obcecado pelo Time Magazine.

Eu o leio toda semana.

Sua capa me encara toda vez que passo sorrateiramente pela confeitaria da esquina.

Eu o leio no porão da Biblioteca Pública de Berkeley.

Está sempre me falando de responsabilidades. Os homens de negócios são sérios. Os produtores de cinema são sérios. Todo mundo é sério menos eu.

Já em Gregory Corso,

Mas o que é a Amabilidade? Matei a Amabilidade,

mas o que ela é?

Uma pessoa é amável porque vive uma vida amável.

São Francisco era amável.

O senhorio é amável.

A vara é amável.

Posso pensar que as pessoas sentadas nos parques são ainda mais amáveis? (9)

A “piedade” de Piva, a “seriedade” de Ginsberg, a “amabilidade” de Corso – os três, entre outros poetas, Rimbaud inclusive, a partilharem a recusa dos bons sentimentos.

Relatei, em outras ocasiões, a chegada de publicações beat que Piva promoveu em meados de 1961 (10). Afirmei que, embora os beats já fossem conhecidos como tema jornalístico, aquela foi a primeira vez (e única, por algum tempo) na literatura brasileira em que se estabeleceu um diálogo com autores daquele movimento. no plano da criação poética. Penso que a leitura de Ginsberg e seus pares contribuiu para que Piva se expressasse com maior liberdade vocabular, incluindo obscenidades; que ampliasse a utilização de topônimos, menções a lugares de São Paulo (que já ocorria em poemas anteriores, porém em um modo descritivo e não onírico ou delirante); igualmente, que ampliasse as menções a leituras, a outros autores.

Rastrear o intertexto beat de Piva é algo que pode ir longe. Daquela pilha de obras beat também faziam parte Gasoline e Lady Vestal de Gregory Corso. Compare-se, de Paranóia,

Eu queria ver a cara dos estranhos embaixadores da Bondade quando me vissem passar entre as rosas de lama fermentando nas ruelas onde a Morte é tal qual uma porrada

com,

Eu conheci as estranhas enfermeiras da Amabilidade,

eu as vi beijar aos doentes, atender aos velhos,

dar doces aos loucos!

Arriscaria ir mais longe. Vejo afinidade da torrente de imagens de Bomb! de Corso com aquelas de Paranóia; do formato desse poema, impresso em uma longa tira de papel, com aquele da Ode a Fernando Pessoa de Piva (criado logo após a chegada da remessa beat). Lembraria que um título de poema de Corso é “Amnésia em Memphis”; daí a “Paranóia em Astrakan” de Piva é um passo; e daí ao título Paranóia, partilhando com um dos títulos de Corso, Gasoline, os títulos com termos tidos como não “poéticos” em obras poéticas – em um procedimento que teve Baudelaire como seu grande iniciador, suscitando estranheza, e que foi exacerbado por Corso, Ginsberg e outros beats.

Mas Piva criou todas essas paráfrases, alusões e apropriações (e tantas outras) de modo proposital? Não creio. Sua escrita é espontânea, movida pelo entusiasmo, ao sabor da inspiração e do fluxo da consciência. Escreve direto. Seus manuscritos originais correspondem ao que foi publicado, quase sem rasuras. O inconsciente é intertextual, como o demonstrou Riffaterre, ao escrever sobre a escrita automático em Peixe Solúvel de Breton, em um ensaio que vem muito a propósito, examinando “a relação essencial entre desejo e linguagem” e “entre o desejo e a representação da realidade na literatura” (11).

Em Semiotics of Poetry, (12) Riffaterre ilumina uma quantidade de supostas obscuridades literárias (inclusive de Lautréamont, Rimbaud, Breton e Éluard) ao confrontá-las com seu intertexto, mostrando que são transformações de algo já escrito antes. Há, contudo, uma zona misteriosa, aquela das sincronias, da citação de textos não lidos – confirmando que o inconsciente, feito de símbolos, é um manancial da poesia. Coloque-se, por exemplo, lado a lado o poema “Praça da República” de outro modernista brasileiro, Menotti del Picchia e “Praça da República dos meus sonhos”, de Paranóia. Cotejando-os, seria possível argumentar que Piva fez paródia e atualização do poema de Menotti; contudo, isso jamais lhe passou pela cabeça; provavelmente, nem reparou nesse poema do autor de Juca Mulato.

Comparações entre Piva e modernistas brasileiros levariam à constatação de que o mais próximo a Paranóia, com maior afinidade, é o Luis Aranha de Cocktails, inclusive pelo modo como confunde o “eu” e a cidade, sua própria subjetividade e aquilo que o rodeia:

Sou um trem

Um navio

Um aeroplano

Sou a força centrífuga e centrípeta

Todas as forças da terra

Todas as dimensões e todas as liberdades

Sinto a vida cantar em mim uma alvorada de metal

O meu corpo é um clarim [...] (13)

No entanto, Luis Aranha, um renegado do modernismo (autor de um único livro – aliás, considerado um “desastre” por Mário de Andrade; dedicou-se à carreira diplomática e não publicou mais nada), e a meu ver poeta especialmente interessante, não circulava no período de criação de Paranóia. Caberia projetar nessa sincronia o que Borges disse, em “Kafka e seus precursores”, sobre os autores que criam seus precursores, enriquecendo a leitura dos que os precederam: Entre outros desses ‘precursores’ de Kafka – Zeno, Han You, Leon Bloy, Dunsanny, Browning – está Kierkegaard, por histórias como aquela das expedições ao Pólo Norte recomendada por párocos dinamarqueses (“Finalmente, anunciariam que qualquer viagem – da Dinamarca a Londres, digamos, em um vapor de carreira –, ou um passeio dominical de carro de praça são, pensando bem, verdadeiras expedições ao Pólo Norte”). Interessam as conclusões extraídas por Borges dessas leituras retrospectivas, de um “precursor” como Kierkegaard a partir do seu “sucessor” Kafka, independentemente de Kafka haver lido ou não esses comentários de Kierkegaard: “O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro.” (14)

A partir de Piva, lê-se mais em Cocktails de Luís Aranha: Paranóia “cria”, produz este e outros “precursores”.

Mais recentemente, uns poucos anos atrás, comentei com Piva a afinidade de Paranóia com o melhor Neruda, aquele de Residência na Terra, com suas imagens duras, brutais, como estas:

Cadáveres adormecidos que tantas vezes

dançam agarrados ao peso do meu coração,

que cidades opacas percorreremos! (15)

Após examinar o livro de Neruda, Piva telefonou-me, concordando. Algo semelhante ocorreu quando, no posfácio de Um Estrangeiro na Legião, conectei sapatos, abóbora e nuvens de seu 20 poemas com Brócoli a sapatos, abóbora e nuvens em O Amor Louco de Breton.

A propósito, outra sincronia ou intertextualidade misteriosa. No Breton de O Amor Louco:

A morte, cujo relógio feito de flores campestres, relógio belo como a minha pedra sepulcral erguida ao alto, voltará a andar, na ponta dos pés, para cantar as horas que não passam. (16)

No Piva de Ciclones:

Que você conheça este relógio sem nuvens

chamado morte

dependurado no planeta (17)

O inconsciente é um manancial de poesia; já o sabiam os surrealistas, e antes deles, os sonhadores da primeira geração romântica.

Entre outras qualidades e justificativas de interesse por Paranóia está o modo como Piva fez a releitura beat do modernismo brasileiro; e a leitura surrealista de ambos, nosso modernismo e a beat. “Beat-surreal”, é assim que Piva já caracterizou, com propriedade, seu livro de estréia (em entrevistas e no documentário Uma outra cidade de Ugo Giorgetti). Sempre insistirei no segundo desses termos: surreal. É evidente a amplidão das leituras, fontes e intertexto de Piva, dos clássicos aos contemporâneos, passando por românticos, simbolistas e vanguardistas; mas, como sua relação com o surrealismo já foi objeto de dúvidas – mesmo sendo expressamente reafirmada, por exemplo ao intitular um dos poemas de seu último livro, Estranhos sinais de Saturno, de “Os Grandes Transparentes”, em alusão ao “novo mito” proposto por Breton em seu derradeiro manifesto surrealista –, volto a observar que a demora, que pode ser medida em décadas, na compreensão e recepção da sua obra, e de Paranóia em especial, resultou da surdez para o não-discursivo na crítica brasileira. O recalque brasileiro do surrealismo pode ser associada às alternativas aceitas por nossos letrados: a criação mais cerebral, seja buscando a clareza do sentido, seja pelo caminho da experimentação formalista.

Evidentemente, uma coisa é a riqueza do intertexto, proposital ou não, através de leituras ou de sincronias, de Piva; outra é seu valor literário, que não se reduz às alusões e citações de outros autores. Comparar trechos de Paranóia com aqueles de outros poetas ajuda a destacar o que Piva tem de pessoal. Por exemplo, a extrema inventividade na criação de imagens como estas:

estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente

defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas

Sua característica ironia:

O Espírito Puro vomita um aplauso antiaéreo

[...]borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das beatas

E a capacidade de síntese nas descrições condensadas:

a lua tem violentas hemoptises no céu de nitrato

há jovens pederastas embebidos em lilás

e putas com a noite passeando em torno de suas unhas

Há muito mais, já examinado por mim, e por outros estudiosos, em Paranóia, inclusive as blasfêmias e sarcasmos. Porém o que prevalece são imagens poéticas de alta voltagem.

Essa abertura do leque de intertextos, possíveis ou reais, vem a propósito da recepção da obra de Piva; mais especialmente, da nova edição de Paranóia (pelo Instituto Moreira Salles, em 2009). Por exemplo, quando é dito, a propósito deste livro, da sua “velocidade artificial das drogas”, com “Chá de anfetaminas na cabeça”, “filtrado pelas lentes róseas e sombrias dos alucinógenos” (18) – o que imediatamente motivou um artigo de Luis Costa Lima (19), citando trechos de Piva, dando-os como exemplo de delírio sem valor poético:

As mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo

invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva

E outros, para ele com maior valor poético:

Eu preciso dissipar o encanto do meu velho esqueleto

eu preciso esquecer que existo [...]

Meus pés sonham suspensos no Abismo

eu sou uma solidão nua amarrada a um poste

Mas, tanto em uns como em outros, não se ouve o eco das leituras de Piva na época, do Poeta em Nova York de García Lorca? E do Ginsberg sob alucinógenos de Kaddish? (mas um formalista empedernido reconhecer Ginsberg já seria querer demais)

Que Piva propõe uma poética do delírio está fora de dúvida. É proclamada com vigor já em seus manifestos de 1962, bem como em Piazzas: “Eu aprendi com Rimbaud e Nietzsche os meus toques de INFERNO”, com sua “idéia da Poesia como instrumento da Libertação Psicológica & Total, como a mais fascinante Orgia ao alcance do Homem” (20). E talvez seja mero detalhe observar que a escrita de Paranóia aconteceu durante alguns anos nos quais Piva não tomava bebidas alcoólicas; e, menos ainda, alucinógenos então ainda inexistentes. E que, em contrapartida, seu nível de excessos e desregramento pessoal foi o mesmo durante a escrita, na década de 1980, dos límpidos e concisos 20 poemas com Brócoli e, logo a seguir, de Quizumba, texto-limite e seu livro mais delirante (21). Não se trata de negar a existência de relações entre biografia e obra, entre literatura e vida; mais ainda, em um autor que propõe a fusão ou síntese dos dois planos; porém de mostrar que tais relações são complexas, que leituras demasiado literais podem ser enganadoras. Principalmente, de observar uma constante, ao longo de todos esses anos: sua paixão pela leitura; a varredura obsessiva de livrarias; as constantes recomendações de leituras e indicações de obras – algumas, valiosíssimas para mim.

Destacar o Piva leitor e sua contribuição, digamos assim, pedagógica, é importante em face desse aspecto preocupante da realidade brasileira: sermos um país com 70% de analfabetos funcionais, com índices tão baixos de leitura de livros. Na mesma medida, é manifestação de inconformismo e recusa do ‘status quo’ a resistência de Piva a ser fácil e discursivo. Navega contra a correnteza ao apresentar-se como erudito – de uma erudição não-curricular, nada acadêmica – e pontuar seus poemas com epígrafes, citações, menções e alusões a outros autores, tornando esse procedimento frenético em suas obras mais recentes. 20 poemas com Brócoli é, sim, relação com saunas de subúrbio; é, igualmente, relação com a Divina Comédia de Dante; é um e outro – e muito mais: anamnese, recuperação e recriação de passados, aqueles históricos e o pessoal; biografia imediata e registro do dia-a-dia; remissão a todos os autores citados nesses poemas, e a tantos outros, de modo oblíquo, indireto.

Felizmente, muitos puderam se beneficiar não só da leitura da poesia de Piva, mas da transmissão direta, comentando suas leituras e sua poética – por exemplo, nas séries de “encontros órficos” (título, obviamente, proposto por ele) pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo nos anos de 1990 (22) e na Casa da Palavra de Santo André em 2007 e 2008 (24), entre outras ocasiões.

Coisa de dois anos atrás, em uma mesa composta por Piva, Afonso Henriques Neto e por mim em uma casa de cultura em Diadema, reclamei ser um absurdo a mesma sessão não acontecer também na USP (quase citando o comentário de Ginsberg, de que William Carlos Williams morava a vinte quilômetros de Columbia, e nunca havia sido chamado para dar uma conferência lá). As possibilidades de apresentar-se do Piva-conferencista, indissociável do Piva-poeta, foram aquém do que poderiam ser. Felizmente, isso não obstou o crescimento recente da sua circulação; a recuperação das quatro décadas de atraso na recepção de Paranóia (25) e outras de suas obras; o aumento do número de seus leitores; e, principalmente, a partir da década de 1990, dos novos poetas que por sua vez o escrevem, dos quais ele é um intertexto. Já seria possível montar uma boa antologia de poemas de novos autores nas quais Piva está presente como epígrafe, em títulos, citações, alusões e homenagens. Igualmente importante, penso, é uma ensaística recente, incluindo teses e dissertações de qualidade, lançando novas luzes e propondo novas interpretações de sua contribuição literária.

O presente encontro é de apoio a Roberto Piva, pelas notórias dificuldades que enfrenta. Mas nele cabe, também, a manifestação de satisfação por esse crescimento do interesse por sua poesia, aqui mais uma vez atestado.

 

 

(1) Sempre um Papo em homenagem a Roberto Piva: Data e horário: 27 de abril de 2010, terça-feira, às 20h. Local: SESC Vila Mariana (Rua Pelotas 141 - Vila Mariana, São Paulo)

O poeta Roberto Piva tem sido noticiado, ultimamente, por dois motivos. Um deles, a repercussão da terceira edição de Paranóia, seu livro de estréia, pelo Instituto Moreira Salles. Outro, os problemas que enfrenta: depois de ser internado com um quadro clínico grave, passa por dificuldades. Por isso, leitores e amigos de Piva têm promovido coletas de recursos em seu favor. O Sempre Um Papo associa-se a essa mobilização com uma sessão dedicada ao exame de sua obra. Para tanto, recebe o poeta Claudio Willer (autor do posfácio do primeiro volume da Obra Reunida), que doará seu cachê. O evento contará com depoimentos de Antonio Fernando de Franceschi (poeta, responsável pela reedição de Paranóia em 2000); Celso de Alencar (poeta e amigo de Piva); Roberto Bicelli (poeta e amigo de Piva); Toninho Mendes (artista gráfico e poeta, publicou Piva na revista Chiclete com Banana); Ugo Giorgetti (cineasta, autor do média-metragem Uma outra cidade de 2000, com Piva e outros poetas da mesma geração); Valesca Dios (cineasta, diretora de Assombração Urbana, média-metragem com Roberto Piva, de 2005). No encontro, Claudio Willer falará sobre “Roberto Piva e a Poesia”. Argumentará que a poesia de Piva é sobre a própria poesia; é um poeta culto, um leitor que, por vezes de modo sutil, comenta suas leituras e sua paixão pela vida e pela poesia (que, em sua poética, se confundem)

(2) Esta e as demais citações de Paranóia em O Estrangeiro na Legião, obra reunida de Roberto Piva, volume 1, editora Globo, São Paulo, 2005, ou em Paranóia, Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2009.

(3) Quem me apresentou essa pergunta foi o poeta Paulo Sposati, freqüentador de minhas oficinas e cursos.

(4) Publicado em Leal, César, Dimensões Temporais na Poesia & outros ensaios, Imago, Rio de Janeiro, 2005.

(5) Federico García Lorca, Obra Poética Completa, tradução de William Agel de Melo, Martins Fontes – UEB, Brasília, 1989.

(6) Em seu depoimento na coletânea Azougue 10 anos, editorial Azougue, Rio de Janeiro, 2005.

(7) Esta e as demais citações de Allen Ginsberg em Uivo, Kaddish e outros poemas, tradução, seleção, prefácio e notas de Claudio Willer, L&PM Pocket, Porto Alegre, 2010 (nova edição)

(8) Quem me lembrou desse título de Mário foi o poeta Claudio Daniel.

(9) O poema está nas edições da Obra Completa de Mário de Andrade, bem como nas antologias de sua poesia; consultei a antologia 100 Poemas Essenciais da Língua Portuguesa, organizada por Carlos Figueiredo, editora Leitura, Belo Horizonte, 2005.

(10) Esta e as demais citações a seguir de Gregoy Corso, de uma tradução ainda inédita por Marcio Simões, Gregory Corso – Antologia Poética, a sair pelas edições Nephelibata, de Florianópolis.

(11) No já mencionado posfácio para Um estrangeiro na legião e em meu Geração Beat, L&PM Pocket, 2009.

(12) The Surrealist Libido: André Breton’s “Poisson soluble, Nº 8, publicado em André Breton today, coletânea organizada por Anna Balakian e Rudolf E. Kuenzli, Willis Locker & Owens, Nova Iorque, 1989.

(13) Riffaterre, Michael, Semiotics of Poetry, Metuhen, Londres, 1980.

(14) Aranha, Luís, Cocktails, organziação de Nelson Ascher e Rui Moreira Leite, Brasiliense, São Paulo, 1984.

(15) “Kafka y sus precursores”  está, entre outros lugares, em Borges, Jorge Luis, Ficcionario, Una antologia de sus textos, edição e notas de Emir Rodríguez Monegal, Fondo de Cultura Econômica, México D. F, 1985.

(16) Neruda, Pablo, Residência na Terra I, tradução de Paulo Mendes Campos, L&PM Pocvket, Porto Alegre, 2007.

(17) Na tradução de Luisa Neto Jorge, na edição de O Amor Louco da editorial Estampa, 1975 (quem me alertou dessa edição também foi Piva).

(18) Ciclones está no volume 3 da obra reunida de Piva, intitulado Estranhos sinais de Saturno, editora Globo, 2008.

(19) Jornal Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, 02/01/2010.

(20) Na mesma Folha de S. Paulo, caderno Mais, a 17/01/2010. Observações justas sobre os equívocos desse ensaio de Costa Lima por Reuben da Cunha Rocha em Cronópios, em http://www.cronopios.com.br/site/critica.asp?id=4402

(21) Também em Um Estrangeiro na Legião, vol. 1 da Obra Reunida de Piva.

(22) Ambos no vol. 2 da Obra Reunida de Piva, intitulado Mala na mão & asas pretas, ed. Globo, 2006.

(23) Não por acaso, no período em que eu trabalhava lá. Celso de Alencar também convocou Piva para programações naquele período; e Roberto Bicelli, para a série “Meditações  de Emergência”, da Funarte.

(24) Por iniciativa de Beth Brait Alvin, que na época dirigia esse equipamento cultural.

(25) Tendo sido decisiva, pela repercussão, a reedição de Paranóia pelo Instituto Moreira Salles em 2000, por iniciativa de Antonio Fernando de Franceschi; e, logo ma seguir, o documentário Uma outra cidade, de Ugo Giorgetti.

 

 

Claudio Willer (Brasil, 1940).
 Poeta, ensaísta, tradutor.
Contato: cjwiller@uol.com.br

 

 

© Maria Estela Guedes
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