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CAPÍTULO I
A terra é feminina
A terra é feminina, a terra é caótica e pertence,
naturalmente, ao reino das mulheres. Floresce nelas o enigma do mar. A
morte ao vivo. O mundo pertence à morte. Quando nasci já estava feito.
Perfeito. Preparado para a morte — para regressar ao caos. A este caos
vivo em que vivo e nem sempre se vê. Havia que regressar atrás e o
caminho era e continua a ser o corpo ardente e húmido das mulheres. São
elas quem, mais do que inspiram, escrevem o que vai ser, eu não sei,
este livro.
Regresso, anos depois, ao meu diário. Quantas vezes
me caiu o coração? Deixei-o em deriva e assim o quero. Vivi tormentosas
separações, atravessei rios de sofrimento, mantive nervosa a oficina da
escrita, a laranja do mundo apodreceu um pouco mais e o amor acenou-me
de novo. Segui-o. Elevamos as nossas taças num andar alto da velha
cidade marítima, sobre a igreja da Encarnação, ortodoxa e grega. Ela,
num vestido longo, negro, de seda e crepe, moldando-se ao seu corpo
felino, caindo negligente sobre uns sapatos de salto alto, com um motivo
silvestre bordado a ouro. O contacto do tecido com os seios endurece-lhe
os mamilos e o seu relevo discreto fez-me fechar os olhos durante um
momento. Um único enfeite: um colar que lhe trouxe do museu de Quioto.
Os cabelos sobre os ombros, as pálpebras levemente sombreadas.
— Como estás bela no teu vestido branco.
— Branco? Ah, sim, branco.
Bela, como se estivesse sentada diante de um rio.
Apeteceu-me beijar-lhe o pescoço mas havia outras pessoas à volta,
amigos de família, uma mãe, um marido, e senti-me dentro de um filme, do
India Song, da Duras; como se estivesse na primeira fila de um cinema
mas caminhando em volta, vendo-os deslizar, uns após os outros, uma
frase sobre o tempo, outra sobre se gosto do país, deslizando como se
fossem peixes cansados e eu, com os olhos (os outros, os que não se
vêem) postos em Myah, de mim separada por um aquário de homens e
mulheres e mais uma taça de Moêt et Chandon. Sorrisos. Competia-me ser
amável e discreto. Fui. Bom ano, bom ano, decerto vai ser, o corpo será
feliz, as horas breves, a paixão ardente. Duas horas em aquário são uma
eternidade. Mandei-lhe, um pouco antes da meia-noite, estávamos a dois
passos, uma mensagem telefónica: “Estou feliz e vou amar-te a vida
inteira”. Outra, dela, chegou quase ao mesmo tempo: “O meu desejo é
saltar-te para cima.”
Que mais desejar se, de nada precisando, tenho quase
tudo? Tudo o que sempre desejei: o amor louco, escrever sem peias,
vagabundear como se fosse nómada. Uns dias ganhando a eternidade, outros
perdendo aviões. Uns dias batendo com a cabeça na parede, outros
amaciado pelo dom da aceitação, que tantos nomes tem?
Dormi no seu atelier, dormi é como quem diz, fui um
ouvido sintonizado ao menor ruído dela. Deles. Visitou-me às duas da
manhã para saber se eu estava bem. O marido dormia. Disse-lhe que sim,
que lia Tanizaki, onde as paixões e as mortes acontecem lentamente.
Sorriu e deixou-me entre os seus desarrumados livros e manuscritos. No
quarto do lado nenhum ruído, em mim uma tensão crescente. Mas parecia-me
ouvi-la respirar. Ao meio da manhã viemos para aqui, para a casa da
praia. Ampla, belíssima mas nem sequer abrimos as janelas sobre o mar. O
sopro interior, aparentemente calmo, tomou-nos de assalto e começámos a
respirar sem medida. Como quem respira quando se inspira a rodos. Uma
praia amena, o chão da casa, os tapetes. Poucas palavras. Rápidos os
corpos em seu voo. Nus, sob o frio da casa abandonada, mas logo vestidos
um pelo outro. Toco-lhe mas maçãs do rosto agarro os seus cabelos sorri
pouso a outra mão no pescoço e nos ombros e nos braços abre um pouco a
boca ajusto as minhas pernas às suas acaricia-me o joelho entro pelos
seus olhos adentro planta-me os seios no peito pressiono com os dedos os
bicos dos seus seios afloram-me o umbigo puxo-a com os lábios
lentamente para mim a sua boca tacteia-me o sexo o meu joelho entre as
suas coxas e já me sorve pacientemente e já capto o olhar que me
trespassa e morde-me e puxa-o e lambe afasto recusa aproximo a palma das
suas mãos no meu rosto as minhas nas suas nádegas e agarro-a e ajusta-se
ao meu sexo cego ajusta-o húmidos ardendo incansáveis fatigados
explodimos — tudo, tudo… o amor que seja tudo, a vida toda… e
descansamos… e recomeçamos mais lentos… vezes e vezes… voltas e voltas…
tudo, pelo dia adiante. A noite aproxima-se, que venha, que seja louco o
amor e todo e agora e para sempre. A vida inteira. O que é isso de vida?
Carpe diem. É isto, e basta.
O mar do sexo onde nado e me tudo. Um mar de seda. Ah
mas só mergulho quando as ondas me parecem enigmáticas. E não tenho
medo, nem das marés mais bravas e loucas.
O sol esta manhã entra por todos os poros da casa
como se fosse um amigo antigo que me veio visitar. Estou só e sento-me à
escrita diante de um desses ícones que ela colecciona, uma Virgem da
Paixão, suponho que pintada em Creta por autor anónimo. Assisti à manha
com que ela comprou a última peça da sua colecção num antiquário de
Damasco… Há flores por todo o lado e sinto nas costas a seda de uma
abaya que ela me ofereceu na última vez. Ouço
Thelonious Monk numa das suas gravações ao vivo: Nice work if you can
get it. Saiu cedo, no cumprimento da sua vida sedentária: a sua
avó, a sua fada como ela diz, a sua Teta (avó em fenício antigo)
adoeceu, foi vê-la ao hospital da família, a velha pintora que me lembra
a Justine do Durrell como devia ser no fim da sua vida — foi ela, a
velha senhora, quem me ofereceu as “três graças” de marfim antigo que os
meus dedos acariciam entre duas frases.
Na primeira vez, em Paris, olhava para os teus lábios
— pequenos mas carnudos — e via, previa os lábios do teu sexo.
Regresso ao meu canto e penso no dia em que a
conheci, no aeroporto de Montpelier. Visualizo a cena que já me encantou
mil vezes. Estava sentada, lia qualquer coisa mas, sobretudo, olhava.
Penetrava. Indiscreta. Olhou-me e eu a ela. E esse olhar foi tudo, foi,
pelo menos, um começo avassalador. Uma das guias apresentou-nos e o que
vi foram uns olhos molhados. Molhados de brilhantes, incisivos e cheios
de desejo e de sofrimento. Só meses depois eu saberia porque me tremeu a
alma, habitualmente pouco dada às glosas do amor cego. Ao houbb a’ma!
como chamam os árabes ao amor-paixão-sentimento que um homem sente pela
mulher inesperada. Ah mas o meu corpo sabia, o dela também. Alquimia?
Pensei na facilidade com que a vida nos desvia de um lado para o outro.
Acidentes a par e passo. Um olhar, um pé que podia estar noutro lugar e
subitamente o que podia ser uma coisa é outra, o destino existe quando
um acaso nos surpreende ou faz tremer ou… Houve dois rostos que se
reconheceram e depois as palavras a música o desejo o silêncio deram o
passo seguinte. Dois corpos que se reconheceram depois de terem
atravessado rios e mares montes e florestas veredas e núcleos da matéria
até se encontrarem nesses longos e comovidos diálogos à distância, no
frio das ruas de Paris, nas ilhas adriáticas, sobre o lago de Ohrid, em
camas de países visitados e logo perdidos, em jardins provençais, em
ruínas assírias e aztecas, nos bairros velhos de Lisboa e de Istambul, à
sombra dos cedros milenários de Arz a-Rabb e em Byblos, em Brugges, em
Pompeia, caminhos e nuvens e areias e lençóis deste mundo e do outro,
dependentes um do outro, em alegria e temor, abismo e fulgor, exaustos e
frescos como o sangue de outros rios. Ouço a alegria louca e sofrida da
música de Monk e penso em nós quando nos amamos, quando a terra da vida
me festeja o corpo e eu o dela. Quando tocamos, ao mesmo tempo, nas
raízes e nas estrelas.
Amei. O mar sorri. Começou mais um dia. Ou acabou?
Talvez amanhã, quem sabe, me seja dado outro. Pois que melhor sorte esta
minha de poder vivê-lo com Myah?
Mais uma noite em que pudeste ficar comigo, como
consegues? Jantámos num restaurante aquático, a bordo de um velho
cargueiro, e então disseste ao teu marido, Vamos trabalhar no nosso
livro. Trabalhámos a noite toda. Atentos e desordenados. Acordo e ouço o
marulho da tua respiração. O sol manso da manhã invade-nos o quarto e o
mar, ao fundo, ronrona. Vou ao terraço vê-lo, uma tela deitada onde
posso ler o que me aprouver. Não, não te vou acordar embora te tivesse
prometido que o faria mas sabes, eu sou um monstro, posso deitar-me às 5
e acordar às 7, fui possuído por forças que não sei de onde vêm. O sexo
tumultuoso desta noite, seguido de momentos de detenção e de palavras
amáveis promessas o que somos nesse pensar no que seremos e mais amor
sempre mais e mais do teu corpo como se fosse a única jangada a última
razão da minha vida uma praia o mundo em todo o seu esplendor
contradições elementos catástrofes a paz após a tempestade. Tudo isso e
muito mais, Mozart e os blues de Billie, o Menuetto allegro e a Blue
Moon, encontrei em ti, no teu corpo de seda animal. Num monte de Vénus
elevado e carnoso, apesar do rigor das tuas formas, como se pelo teu
corpo tivesse passado, no seu antigamente, um afluente de sangue árabe.
E tu? Que nunca pensaste que isto existia, que te podia acontecer, a
entrega a invasão do teu corpo por outro corpo que lhe dá tudo que o vê
que o escuta que o visita e lambe e penetra com toda a doçura e
violência da sede e do saber. Nunca te cansas, perguntas-me? Eu não sei
nada, eu não sabia nada antes de te encontrar, eu acabava de sair de um
casamento asséptico, sei apenas que vim encontrar em ti os desejos da
minha vida e outros e mais outros que nem pressentia, olhar-te como quem
te possui, possuir-te como quem é teu e canta, absolutamente cego e
sábio e louco e desesperado. Acordas e dizes, Oh, ao sentires a minha
mão entalada nas tuas nádegas e então começamos, recomeçamos, leve,
docemente, enquanto não acordas de todo. Um mar incessante. Que fazes?
perguntas. Recolho e pouso-te na boca as gotas finais. Não se pode
perder nada. Não, repetes, não se pode. Sorris. Sorves. Engoles. O outro
mar, ao fundo, é uma tela cheia de música, emoção.
Fragmentos da mulher antiga:
Não há ódio nenhum neste abandono, pelo menos da
minha parte, como se a casca de uma noz tivesse sido fendida e mostrasse
um fruto estranhamente fenecido. Nem ódio nem o temor de vir a odiá-la.
Nem preocupação por ela me odiar. A fotografia que dela conservo mostra
uma mulher belíssima a afastar-se na praia em direcção ao mar. O ódio
não é mais do que o amor não consumado, o amor que ficou por fazer. E
não, não a desejo — o que seria mortal para mim se não desejasse
incessantemente mulheres tão diversas e distantes como Lúria e Myah,
Myah e Izumi. Mas ciúme, sim, sinto um pouco — não ciúme sexual — desse
engenheiro com quem ela debate agora as suas infinitas minúcias.
Reconheço, eu não fui capaz. E por isso nos perdemos. Pergunto-me mesmo
se o abandono — que me assediou — não era filho do vício da minúcia...
mas como poderia eu gostar de um mundo onde houvessem ciúmes, onde a
liberdade, a desordem, a luxúria, a abolição dos limites não fossem a
palavra essencial?
Pensei chamar-te Hawwa, a Vivente, como se chama no
Alcorão à primeira mulher mas depois lembrei-me que não gostarias do
conceito, a fuga do osso, a costela roubada durante o sono, embora
também se diga que o corpo de Hawwa é profético, assim o teu, e a alma,
a que chamam nafs, a do homem e a da mulher, é uma só. Alma, árvore,
casa e casca que não se cansa de buscar o paraíso perdido. O lugar da
fecundação, diziam os antigos — feito e refeito pelos perfumes do amor.
Serás então Myah, tu própria escolheste o nome: “água”, água da fonte,
água-fonte, fonte ardente.
A doce desordem dos corpos que se amam, dos lugares
onde nos fundimos como se por aqui tivesse passado um tufão, os trapos
atirados para o ar, o caos da cama, a cama do chão, um cais onde caíram
barcas loucas com seus lemes torcidos e memórias e sapatos e o pequeno
computador e cuecas e uma chinela e livros e toalhas e canetas e
telefones. Um lugar onde já não sabemos onde começam e acabam as nossas
lembranças.
— Sou o teu veneno, dizes.
— E o meu antídoto, respondo.
Chegámos aqui depois de uma descida a praias poluídas
e de um arak, que tu não bebes, só nele molhaste os lábios, bebes sumo
de limão, acompanhado por pequenas variações encantadoras de comer e
chorar por mais, acepipes orientais de que nunca nos saciamos. Chove, e
depois deixa de chover, no terraço e nesta vida que escolhemos viver,
nómada, arriscada, alimentada por um desejo duplo sinuoso e espantado,
depois direi melhor, um mergulho intenso em corpos que atravessam um
túnel, “um bosque incendiado —dizes— pelo seu próprio fogo”, e por vezes
uns pós de ciúme pelo ar que o outro respira ou dos anos desastrados em
que o outro não existia.
— Tens medo? perguntas.
— Nenhum, e tu?
— Nada nos pode separar. Nem sequer tenho medo de ter
medo.
— Vamos ser sábios.
— Nós?
Rimos, obsessivos. Talvez o dente ou a bala ou a
regra moral radical venha de onde parece haver cumplicidade, aceitação,
compaixão por dois animais apaixonados. Não sei. Agora é assim, amar até
ao esgotamento, adormecer dentro de ti, e depois logo se vê. Ou não se
vê. A chuva cessou e o céu não pode estar mais claro.
Apresentaram-nos no aeroporto. Que partiríamos para
Lodève em grupos de oito poetas, que iriam chegando dos vários países. E
que já estava alguém, uma poeta do Líbano, que me iriam apresentar: Isac,
Myah.
— Desculpa, não sei nada de ti.
Que não tinha importância, disse-lhe. Pedi um café.
Ela, outro sumo de laranja.
— Queres saber alguma coisa? perguntou.
— Nada. O que quiseres dizer.
— Escrevo mas não sei se presta. Ganhei um prémio e
por isso me convidaram.
— E o que fazes além de escrever?
— Cuido da casa. Parece que mal. Tenho três filhos.
— Três filhos? Tantos assim? Pareces tão nova.
— 25 anos. Mas houve um tempo em que me fizeram
filhos...
Olhos de metal macio. Provocadores. Como se fossem
duas as mulheres dentro do mesmo olhar.
— Fizeram?
— O meu marido. Quando devia ter feito amor.
— Um filósofo?
— Um comerciante. Árabe sunita. Porquê um filósofo?
— Os filósofos têm tantas dúvidas que nem sempre
fazem bem o seu amor. Falam mas não amam, raciocinam mas não gozam,
duvidam mas não se entregam.
— Nunca tinha pensado nisso. É uma provocação?
— Talvez. Sinto-te doce e ao mesmo tempo convulsiva.
Talvez provoques a provocação.
— E os poetas?
— Há de tudo.
— Tu?
— Gostava de tomar mais cafés contigo.
— Cafés?
— Começos. Palavras amargas. Café sem açúcar. E o que
vem depois de cada café quando não sabemos nada do outro.
Que vamos então partir, disse a nossa guia. Que
chegaram mais poetas, a carrinha está cheia.
Quem fala aqui? Um eu que não sou eu, que vem de
longe e traz coisas pequeninas entre os dedos. Desígnios invisíveis. Um
homem enjaulado no vasto mundo e, sobretudo, na teia de mulheres, as
visitantes da noite, as portadoras do caos, umas vezes doce, outras nem
tanto. Em cada milímetro da casa, em cada partícula do dia, uma boca,
uma entrega que se pode desenvolver de um modo ou de mil outros pois a
verdade, a realidade não é só uma. Em boa verdade não é nenhuma. Este é
também um livro — um canto — sobre o grande e único milagre, o de sermos
isto, o de estarmos vivos desta maneira e não de outra quando tudo são
apelos para outra coisa, outros erros. Falo de mutações. De liberdade
condicionada. Libertinagem. O amor impera, e o seu sexo, neste livro,
porque se parte do princípio de que tudo é caos — e a ordem que aqui se
persegue não tem nada a ver com as regras da sociedade, apenas com as
leis, também elas caóticas, do amor. Mas não sabereis quem sou. Parece
que escrevo um diário, que me coloco à sombra da luz excessiva de uma
verdade que não existe… Que vivo e me vejo viver…
“O poeta amigo de Myah”, devem pensar no meio.
Amizade, amor platónico, pensarão. Mas eu estou perdido como se tivesse
apenas este minuto, este chão para viver e as outras mulheres da minha
vida tivessem caído numa caixa escura. Contemplo escuto acaricio bebo
excito-me dispo-a deixo-me despir invadir devassar apoderar-se de mim
que faça de mim o que quiser e ela quer tudo e então cresço ruborizo
visito-a por todo o lado por todos os buracos e pede-me que não deixe um
só em solidão e entro invado-a e tudo e muito mais ela me devolve
incansável inesgotável. Quantas vezes posso? Ela quer sempre mais e mais
e há sempre um pouco mais onde parecia não haver mais nada. A minha vida
é agora e apenas no meu corpo e sabe-me bem. Quem está comigo não
pertence a este mundo, é este mundo. Estava eu nestes reflexões quando
Myah, às voltas com os seus prelúdios, estamos na casa da praia, se
levanta do piano e me pergunta:
— Amas-me? Diz que me amas, diz muitas vezes — e
reparo que tem os olhos molhados.
— Por que choras?
Aproxima-se, entra para dentro dos meus olhos, coloca
as mãos nos meus joelhos, puxa-me para o chão, sentados um diante do
outro, e diz:
— Eu devia ter-te encontrado há dez anos.
— Mas há dez anos tu…
— Era uma adolescente? E depois? Eu sei que tu te
terias apaixonado por mim e eu por ti. Não me teria casado, uma mulher
não se deve casar aos 18 anos com o primeiro príncipe comercial que
aparece, pressões de família, aqui ainda é assim… Mas também para me
livrar do peso da família… Saí de um peso para entrar num pesadelo.
— Tens-me dito que os primeiros anos foram bons…
— Eu pensava que sim antes de saber que o amor é
outra coisa, uma fusão, coração, palavra, sexo, loucura, excesso, vício,
humidades trocadas... As palavras são tuas, o corpo de quem ama é todo
ele um sexo louco e sábio. E tu…
— Eu?
— Terias caído nas minhas malhas, de feiticeira, como
dizes? Nos meus ardis? Terias caído apesar dos meus poucos anos?
— Esqueces os meus muitos. A minha mulher, ainda há
um ano, dizia que eu estava acabado: “Já não podes?”, perguntava-me.
— Pobre da tua mulher que não te conhecia, que não
deve perceber nada do que é um homem, do que se deve fazer com um homem
para ele fazer connosco tudo o que nós quisermos.
— É assim que fazes comigo?
— Totalmente. Não gostas?
— Talvez eu não tenha nascido para ela.
— Claro que não. Nasceste para mim. Tu eras meu antes
de saberes que eu existia. Meu, assim.
Enrolou-me as pernas na cintura e torceu-me o dorso
num golpe seco mas delicado. Deitados, as pernas descruzaram-se.
Tocou-me nos mamilos torceu-os com uma leve violência que me agitou o
sangue e eu beijei os seus seios mordi-os soltou-se e atacou-me o sexo
começou a acariciá-lo a excitá-lo enquanto eu busquei com a língua toda
com toda a saliva possível e a meti na mão que, arado gentil, se
infiltrou nos lábios espumosos do seu sexo.
— Já não choras? — perguntei, olhando-a fundo.
— Raramente choro quando entras para dentro de mim.
Quando começo a voar enlouqueço.
— Pensava que tu eras sempre
— Louca? Talvez. Mas agora vou
perverter-se, corromper-te de amor. Para além do entendimento, como
dizem nestas bandas. Assim está bem?
— Sim. Abre um pouco mais, assim.
— Toda, abro-me toda, dou-te tudo o que tenho, tudo o
que sou. Bebe-me, agarra-me, come-me.
A bela desordem desta casa. Vejamos uma estante com
livros, que livros? Ao lado da Bíblia, traduzida por André Chouraqui, o
De l’ Amour, de Stendhal; e ao lado de um livro sobre Francisco de
Assis, a Justine, a do marquês de Sade, ilustrada por Dubout; e ainda o
delicioso Rouchd al-lâbib li mou’acharati al-habîb, uma espécie de Kama
Sutra árabe que, traduzido à letra, disse-me ela, daria Guia do Desperto
para a frequentação da Bem-amada; e junto à foto do seu casamento a
pequena “menina” nua de João Cutileiro, que lhe ofereci no dia dos seus
26 anos.
Esta noite dormi sozinho e senti-me perdido sem o seu
calor oriental. Existe tal coisa? Parece que sim, o seu corpo ardendo
lentamente sobre sob o meu. Vou fechar os olhos, lembrar-me de cenas
enquanto o sono não chega — ou ela, às oito da manhã. Como consegues
aquecer-me só de me olhar? Não sei, tal como nada sei, senão vivê-lo, do
mistério que arrancaste dos meus ossos frios, uma música distante que
parecia esgotada. Vou à janela, olho a baía, a profusão de luz em redor
do mar. No Verão nadei nessas águas, ardi, ouvimos a Carmen no Templo de
Júpiter, adormecemos ao som da cascata na gruta de Astarte. Releio o
Cântico dos Cânticos: “Que ele me beije com os beijos da sua boca! Bem
melhor do que vinho, o teu amor…” O teu rosto dramático não me sai da
memória, são duas da manhã e já não sei adormecer sem a tua cabeça no
meu pescoço o meu joelho nas tuas coxas as tuas mãos na minha cintura.
Quantas vezes me deixo cair no sonho quando as tuas mãos me amaciam e
depois me excitam?
Acordo. Um telefonema. E depois outro e outro, ao
ritmo da sua vida. Barbeio-me, tomo duche enquanto ela continua com os
seus telefonemas, a gerir a sua teia, filhos, amigos, obrigações mínimas
e múltiplas e depois regresso, nu, dentro da minha amaya. O nervo
matinal animado pela água tépida. É ela agora quem vai à casa de banho:
canta, despede-se do seu período e depois atira-se para dentro de mim.
Faz frio, a casa nunca mais acaba, o ar condicionado falha. Um abraço
vigoroso, o calor desigual, a respiração nos pescoços vai aquecer-nos.
Cresço, mas não muito e é então que ela me toca, dedos finos e me vira
as costas sem deixar a glande.
— O que fazes?
— Toco-te, roço-te.
— Mas tu nunca
— Nunca muita coisa mas hoje apetece-me,
queres?
— Tudo, de todas as maneiras.
E começa a salivar-me o sexo, a metê-lo entre as
nádegas, deixo-a conduzir, acaricio o clítoris, nada mais e sim, que
faça o que quiser, e ela faz, muito lenta, o meu sexo conduzido pelos
seus dedos como se fosse um objecto. É.
— Esqueces-te que tens uma boca? Que ela faz
milagres?
— Tenho mais lábios, hoje vai ser com estes, gostas?
— Estou a gostar, molha, molha um pouco mais.
— Sim, com as mãos, só as mãos, as duas.
— Fizeste quando eras virgem? Com as virgens fazia-se
assim — digo-lhe ao ouvido. Como não podiam perder a virtude antes do
casamento exploravam outras coisas, outros ritmos… O namorado tinha que
ser muito experiente. Claro que perdiam muitas vezes a cabeça.
— Nada, eu nunca fiz nada, fui atirada para o
casamento como um cordeiro para a boca do lobo, mas o meu lobo ainda
sabia menos do que eu. Não tinha dentes. Apenas explorei um pouco os
mistérios do meu corpo solitário. Estás a gostar?
— A gostar? Vou enlouquecer-te, enlouquecendo. Vou
fazer como faziam os casais virgens, horas.
— Horas? Não acredito.
— Passavam horas: meter um pouco, manter um pouco e
depois tirar, retirar, era quase impossível mas tinha que ser assim. Uns
orgasmos pelo meio, uns delírios. Pantanosos, fluviais. Quem não passou
por isso ficou frio para a vida inteira. Ou agressivo ou apenas um vaso,
no caso da mulher. As coisas delicadas que se fazem por estas bandas.
— Nunca fiz. Sabes que não sou um vaso mas que serei
um vaso quando quiser, se quiser. Horas? Agrada-me a promessa.
— Sobretudo se formos interrompidos pelo telefone de
dez em dez minutos. Deixa-me tirar um pouco… assim… vou entalá-lo no
rabo enquanto falas...
— Estou a gostar, mas deixa-me ser eu a fazer tudo,
quero comer-te.
— Comer-me?
— Trabalhá-lo, chupá-lo com esses lábios. Gostas?
— Se gosto, mas agora vai doer-te, vou meter-te o
dedo e depois o sexo, vais adorar.
— Adoro sim dói não faz mal eu gosto mas não faças
doer muito não sim sim assim molha molha mais podes fazer doer que já
não me dói...
— Agora deixa-me ver, deixa-me descobrir o quase
invisível, vê-lo outra vez.
— Pensavas que eu tinha sido reduzida, disseste-me na
ilha.
— Não, isso não, já sabia que eras meio maronita,
meio ortodoxa, mas admirei-o, o teu grão é tão pequenino. Uma das minhas
mulheres tinha um clítoris que parecia um pequeno sexo masculino.
— Gostavas?
— Gosto do teu, tocá-lo com a glande como se fosse a
língua, com a língua como se fosse a glande.
— Quanto tempo dizes tu que podes?
— O tempo todo, se me ajudares. Se me deixares
concentrar. Para mim o sexo é uma mistura muito variável de sentimento,
tesão e razão. Ah mas agora apetece-me entrar, derramar-me.
— Já não sou virgem?
— Já não. Salta-me para cima, força.
— Sim, sim. Vou-te inundar.
E aconteceu o que aconteceu..
A sândalo cheiras, a perfume de rosas mas o que lambo
nas tuas coxas e sorvo na tua cintura é o suor do amor e tu em mim o que
bebes e comes é uma terra que passou a ser tua. A sândalo humanizado
cheiramos, e quase se ouve.
— Como é delicado o perfume das frases ingénuas e
pomposas!
— Amo-te. Venero-te com tudo o que há em mim de
místico e de erótico.
— Cada novo dia contigo é o melhor da minha vida, um
milagre, uma coroação!
— Entro inteiro em ti, inteira permaneces quando
partes.
— “Aspiro o delicado hálito da tua boca”
Desfaço-me na lágrima absoluta, essa que me esvazia e
cega. |