REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 02

 

Arte regendus amor.
Ovídio 

As vossas mulheres são para vós
como a terra.
Alcorão, II, 223. 

Quando o amor te acenar...
segue-o.
Khalil Gibran 

A morte não existe.
Tudo é sexo e canto.
Livro das Quedas

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
   
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Capítulo I do romance de

Casimiro de Brito

(em oficina)

LIVRO DO DESEJO

 

Casimiro de Brito                                                   

   
 
 
 
 
 
 
 

CAPÍTULO I

A terra é feminina

 A terra é feminina, a terra é caótica e pertence, naturalmente, ao reino das mulheres. Floresce nelas o enigma do mar. A morte ao vivo. O mundo pertence à morte. Quando nasci já estava feito. Perfeito. Preparado para a morte — para regressar ao caos. A este caos vivo em que vivo e nem sempre se vê. Havia que regressar atrás e o caminho era e continua a ser o corpo ardente e húmido das mulheres. São elas quem, mais do que inspiram, escrevem o que vai ser, eu não sei, este livro. 

Regresso, anos depois, ao meu diário. Quantas vezes me caiu o coração? Deixei-o em deriva e assim o quero. Vivi tormentosas separações, atravessei rios de sofrimento, mantive nervosa a oficina da escrita, a laranja do mundo apodreceu um pouco mais e o amor acenou-me de novo. Segui-o. Elevamos as nossas taças num andar alto da velha cidade marítima, sobre a igreja da Encarnação, ortodoxa e grega. Ela, num vestido longo, negro, de seda e crepe, moldando-se ao seu corpo felino, caindo negligente sobre uns sapatos de salto alto, com um motivo silvestre bordado a ouro. O contacto do tecido com os seios endurece-lhe os mamilos e o seu relevo discreto fez-me fechar os olhos durante um momento. Um único enfeite: um colar que lhe trouxe do museu de Quioto. Os cabelos sobre os ombros, as pálpebras levemente sombreadas.

— Como estás bela no teu vestido branco.

— Branco? Ah, sim, branco.

Bela, como se estivesse sentada diante de um rio. Apeteceu-me beijar-lhe o pescoço mas havia outras pessoas à volta, amigos de família, uma mãe, um marido, e senti-me dentro de um filme, do India Song, da Duras; como se estivesse na primeira fila de um cinema mas caminhando em volta, vendo-os deslizar, uns após os outros, uma frase sobre o tempo, outra sobre se gosto do país, deslizando como se fossem peixes cansados e eu, com os olhos (os outros, os que não se vêem) postos em Myah, de mim separada por um aquário de homens e mulheres e mais uma taça de Moêt et Chandon. Sorrisos. Competia-me ser amável e discreto. Fui. Bom ano, bom ano, decerto vai ser, o corpo será feliz, as horas breves, a paixão ardente. Duas horas em aquário são uma eternidade. Mandei-lhe, um pouco antes da meia-noite, estávamos a dois passos, uma mensagem telefónica: “Estou feliz e vou amar-te a vida inteira”. Outra, dela, chegou quase ao mesmo tempo: “O meu desejo é saltar-te para cima.”  

Que mais desejar se, de nada precisando, tenho quase tudo? Tudo o que sempre desejei: o amor louco, escrever sem peias, vagabundear como se fosse nómada. Uns dias ganhando a eternidade, outros perdendo aviões. Uns dias batendo com a cabeça na parede, outros amaciado pelo dom da aceitação, que tantos nomes tem?  

Dormi no seu atelier, dormi é como quem diz, fui um ouvido sintonizado ao menor ruído dela. Deles. Visitou-me às duas da manhã para saber se eu estava bem. O marido dormia. Disse-lhe que sim, que lia Tanizaki, onde as paixões e as mortes acontecem lentamente. Sorriu e deixou-me entre os seus desarrumados livros e manuscritos. No quarto do lado nenhum ruído, em mim uma tensão crescente. Mas parecia-me ouvi-la respirar. Ao meio da manhã viemos para aqui, para a casa da praia. Ampla, belíssima mas nem sequer abrimos as janelas sobre o mar. O sopro interior, aparentemente calmo, tomou-nos de assalto e começámos a respirar sem medida. Como quem respira quando se inspira a rodos. Uma praia amena, o chão da casa, os tapetes. Poucas palavras. Rápidos os corpos em seu voo. Nus, sob o frio da casa abandonada, mas logo vestidos um pelo outro. Toco-lhe mas maçãs do rosto agarro os seus cabelos sorri pouso a outra mão no pescoço e nos ombros e nos braços abre um pouco a boca ajusto as minhas pernas às suas acaricia-me o joelho entro pelos seus olhos adentro planta-me os seios no peito pressiono com os dedos os bicos dos seus seios  afloram-me o umbigo puxo-a com os lábios lentamente para mim a sua boca tacteia-me o sexo o meu joelho entre as suas coxas e já me sorve pacientemente e já capto o olhar que me trespassa e morde-me e puxa-o e lambe afasto recusa aproximo a palma das suas mãos no meu rosto as minhas nas suas nádegas e agarro-a e ajusta-se ao meu sexo cego ajusta-o húmidos ardendo incansáveis fatigados explodimos — tudo, tudo… o amor que seja tudo, a vida toda… e descansamos… e recomeçamos mais lentos… vezes e vezes… voltas e voltas… tudo, pelo dia adiante. A noite aproxima-se, que venha, que seja louco o amor e todo e agora e para sempre. A vida inteira. O que é isso de vida? Carpe diem. É isto, e basta.  

 

O mar do sexo onde nado e me tudo. Um mar de seda. Ah mas só mergulho quando as ondas me parecem enigmáticas. E não tenho medo, nem das marés mais bravas e loucas.  

 

O sol esta manhã entra por todos os poros da casa como se fosse um amigo antigo que me veio visitar. Estou só e sento-me à escrita diante de um desses ícones que ela colecciona, uma Virgem da Paixão, suponho que pintada em Creta por autor anónimo. Assisti à manha com que ela comprou a última peça da sua colecção num antiquário de Damasco… Há flores por todo o lado e sinto nas costas a seda de uma abaya que ela me ofereceu na última vez. Ouço Thelonious Monk numa das suas gravações ao vivo: Nice work if you can get it. Saiu cedo, no cumprimento da sua vida sedentária: a sua avó, a sua fada como ela diz, a sua Teta (avó em fenício antigo) adoeceu, foi vê-la ao hospital da família, a velha pintora que me lembra a Justine do Durrell como devia ser no fim da sua vida — foi ela, a velha senhora, quem me ofereceu as “três graças” de marfim antigo que os meus dedos acariciam entre duas frases.  

 

Na primeira vez, em Paris, olhava para os teus lábios — pequenos mas carnudos — e via, previa os lábios do teu sexo. 

 

Regresso ao meu canto e penso no dia em que a conheci, no aeroporto de Montpelier. Visualizo a cena que já me encantou mil vezes. Estava sentada, lia qualquer coisa mas, sobretudo, olhava. Penetrava. Indiscreta. Olhou-me e eu a ela. E esse olhar foi tudo, foi, pelo menos, um começo avassalador. Uma das guias apresentou-nos e o que vi foram uns olhos molhados. Molhados de brilhantes, incisivos e cheios de desejo e de sofrimento. Só meses depois eu saberia porque me tremeu a alma, habitualmente pouco dada às glosas do amor cego. Ao houbb a’ma! como chamam os árabes ao amor-paixão-sentimento que um homem sente pela mulher inesperada. Ah mas o meu corpo sabia, o dela também. Alquimia? Pensei na facilidade com que a vida nos desvia de um lado para o outro. Acidentes a par e passo. Um olhar, um pé que podia estar noutro lugar e subitamente o que podia ser uma coisa é outra, o destino existe quando um acaso nos surpreende ou faz tremer ou… Houve dois rostos que se reconheceram e depois as palavras a música o desejo o silêncio deram o passo seguinte. Dois corpos que se reconheceram depois de terem atravessado rios e mares montes e florestas veredas e núcleos da matéria até se encontrarem nesses longos e comovidos diálogos à distância, no frio das ruas de Paris, nas ilhas adriáticas, sobre o lago de Ohrid, em camas de países visitados e logo perdidos, em jardins provençais, em ruínas assírias e aztecas, nos bairros velhos de Lisboa e de Istambul, à sombra dos cedros milenários de Arz a-Rabb e em Byblos, em Brugges, em Pompeia, caminhos e nuvens e areias e lençóis deste mundo e do outro, dependentes um do outro, em alegria e temor, abismo e fulgor, exaustos e frescos como o sangue de outros rios. Ouço a alegria louca e sofrida da música de Monk e penso em nós quando nos amamos, quando a terra da vida me festeja o corpo e eu o dela. Quando tocamos, ao mesmo tempo, nas raízes e nas estrelas. 

 

Amei. O mar sorri. Começou mais um dia. Ou acabou? Talvez amanhã, quem sabe, me seja dado outro. Pois que melhor sorte esta minha de poder vivê-lo com Myah? 

 

Mais uma noite em que pudeste ficar comigo, como consegues? Jantámos num restaurante aquático, a bordo de um velho cargueiro, e então disseste ao teu marido, Vamos trabalhar no nosso livro. Trabalhámos a noite toda. Atentos e desordenados. Acordo e ouço o marulho da tua respiração. O sol manso da manhã invade-nos o quarto e o mar, ao fundo, ronrona. Vou ao terraço vê-lo, uma tela deitada onde posso ler o que me aprouver. Não, não te vou acordar embora te tivesse prometido que o faria mas sabes, eu sou um monstro, posso deitar-me às 5 e acordar às 7, fui possuído por forças que não sei de onde vêm. O sexo tumultuoso desta noite, seguido de momentos de detenção e de palavras amáveis promessas o que somos nesse pensar no que seremos e mais amor sempre mais e mais do teu corpo como se fosse a única jangada a última razão da minha vida uma praia o mundo em todo o seu esplendor contradições elementos catástrofes a paz após a tempestade. Tudo isso e muito mais, Mozart e os blues de Billie, o Menuetto allegro e a Blue Moon, encontrei em ti, no teu corpo de seda animal. Num monte de Vénus elevado e carnoso, apesar do rigor das tuas formas,  como se pelo teu corpo tivesse passado, no seu antigamente, um afluente de sangue árabe. E tu? Que nunca pensaste que isto existia, que te podia acontecer, a entrega a invasão do teu corpo por outro corpo que lhe dá tudo que o vê que o escuta que o visita e lambe e penetra com toda a doçura e violência da sede e do saber. Nunca te cansas, perguntas-me? Eu não sei nada, eu não sabia nada antes de te encontrar, eu acabava de sair de um casamento asséptico, sei apenas que vim encontrar em ti os desejos da minha vida e outros e mais outros que nem pressentia, olhar-te como quem te possui, possuir-te como quem é teu e canta, absolutamente cego e sábio e louco e desesperado. Acordas e dizes, Oh, ao sentires a minha mão entalada nas tuas nádegas e então começamos, recomeçamos, leve, docemente, enquanto não acordas de todo. Um mar incessante. Que fazes? perguntas. Recolho e pouso-te na boca as gotas finais. Não se pode perder nada. Não, repetes, não se pode. Sorris. Sorves. Engoles. O outro mar, ao fundo, é uma tela cheia de música, emoção. 

 

Fragmentos da mulher antiga:

Não há ódio nenhum neste abandono, pelo menos da minha parte, como se a casca de uma noz tivesse sido fendida e mostrasse um fruto estranhamente fenecido. Nem ódio nem o temor de vir a odiá-la. Nem preocupação por ela me odiar. A fotografia que dela conservo mostra uma mulher belíssima a afastar-se na praia em direcção ao mar. O ódio não é mais do que o amor não consumado, o amor que ficou por fazer. E não, não a desejo — o que seria mortal para mim se não desejasse incessantemente mulheres tão diversas e distantes como Lúria e Myah, Myah e Izumi. Mas ciúme, sim, sinto um pouco — não ciúme sexual — desse engenheiro com quem ela debate agora as suas infinitas minúcias. Reconheço, eu não fui capaz. E por isso nos perdemos. Pergunto-me mesmo se o abandono — que me assediou — não era filho do vício da minúcia... mas como poderia eu gostar de um mundo onde houvessem ciúmes, onde a liberdade, a desordem, a luxúria, a abolição dos limites não fossem a palavra essencial?  

 

Pensei chamar-te Hawwa, a Vivente, como se chama no Alcorão à primeira mulher mas depois lembrei-me que não gostarias do conceito, a fuga do osso, a costela roubada durante o sono, embora também se diga que o corpo de Hawwa é profético, assim o teu, e a alma, a que chamam nafs, a do homem e a da mulher, é uma só. Alma, árvore, casa e casca que não se cansa de buscar o paraíso perdido. O lugar da fecundação, diziam os antigos — feito e refeito pelos perfumes do amor. Serás então Myah, tu própria escolheste o nome: “água”, água da fonte, água-fonte, fonte ardente. 

 

A doce desordem dos corpos que se amam, dos lugares onde nos fundimos como se por aqui tivesse passado um tufão, os trapos atirados para o ar, o caos da cama, a cama do chão, um cais onde caíram barcas loucas com seus lemes torcidos e memórias e sapatos e o pequeno computador e cuecas e uma chinela e livros e toalhas e canetas e telefones. Um lugar onde já não sabemos onde começam e acabam as nossas lembranças.

— Sou o teu veneno, dizes.

—     E o meu antídoto, respondo.  

 

Chegámos aqui depois de uma descida a praias poluídas e de um arak, que tu não bebes, só nele molhaste os lábios, bebes sumo de limão, acompanhado por pequenas variações encantadoras de comer e chorar por mais, acepipes orientais de que nunca nos saciamos. Chove, e depois deixa de chover, no terraço e nesta vida que escolhemos viver, nómada, arriscada, alimentada por um desejo duplo sinuoso e espantado, depois direi melhor, um mergulho intenso em corpos que atravessam um túnel, “um bosque incendiado —dizes— pelo seu próprio fogo”, e por vezes uns pós de ciúme pelo ar que o outro respira ou dos anos desastrados em que o outro não existia.

— Tens medo? perguntas.

— Nenhum, e tu?

— Nada nos pode separar. Nem sequer tenho medo de ter medo.

— Vamos ser sábios.

— Nós?

Rimos, obsessivos. Talvez o dente ou a bala ou a regra moral radical venha de onde parece haver cumplicidade, aceitação, compaixão por dois animais apaixonados. Não sei. Agora é assim, amar até ao esgotamento, adormecer dentro de ti, e depois logo se vê. Ou não se vê. A chuva cessou e o céu não pode estar mais claro.  

 

Apresentaram-nos no aeroporto. Que partiríamos para Lodève em grupos de oito poetas, que iriam chegando dos vários países. E que já estava alguém, uma poeta do Líbano, que me iriam apresentar: Isac, Myah.

— Desculpa, não sei nada de ti.

 Que não tinha importância, disse-lhe. Pedi um café. Ela, outro sumo de laranja.

— Queres saber alguma coisa? perguntou.

— Nada. O que quiseres dizer.

— Escrevo mas não sei se presta. Ganhei um prémio e por isso me convidaram.

— E o que fazes além de escrever?

— Cuido da casa. Parece que mal. Tenho três filhos.

— Três filhos? Tantos assim? Pareces tão nova.

— 25 anos. Mas houve um tempo em que me fizeram filhos...

Olhos de metal macio. Provocadores. Como se fossem duas as mulheres dentro do mesmo olhar. 

— Fizeram?

— O meu marido. Quando devia ter feito amor.

— Um filósofo?

— Um comerciante. Árabe sunita. Porquê um filósofo?

— Os filósofos têm tantas dúvidas que nem sempre  fazem bem o seu amor. Falam mas não amam, raciocinam mas não gozam, duvidam mas não se entregam.

— Nunca tinha pensado nisso. É uma provocação?

— Talvez. Sinto-te doce e ao mesmo tempo convulsiva. Talvez provoques a provocação.

— E os poetas?

— Há de tudo.

— Tu?

— Gostava de tomar mais cafés contigo.

— Cafés?

— Começos. Palavras amargas. Café sem açúcar. E o que vem depois de cada café quando não sabemos nada do outro.

Que vamos então partir, disse a nossa guia. Que chegaram mais poetas, a carrinha está cheia.  

 

Quem fala aqui? Um eu que não sou eu, que vem de longe e traz coisas pequeninas entre os dedos. Desígnios invisíveis. Um homem enjaulado no vasto mundo e, sobretudo, na teia de mulheres, as visitantes da noite, as portadoras do caos, umas vezes doce, outras nem tanto. Em cada milímetro da casa, em cada partícula do dia, uma boca, uma entrega que se pode desenvolver de um modo ou de mil outros pois a verdade, a realidade não é só uma. Em boa verdade não é nenhuma. Este é também um livro — um canto — sobre o grande e único milagre, o de sermos isto, o de estarmos vivos desta maneira e não de outra quando tudo são apelos para outra coisa, outros erros. Falo de mutações. De liberdade condicionada. Libertinagem. O amor impera, e o seu sexo, neste livro, porque se parte do princípio de que tudo é caos — e a ordem que aqui se persegue não tem nada a ver com as regras da sociedade, apenas com as leis, também elas caóticas, do amor. Mas não sabereis quem sou. Parece que escrevo um diário, que me coloco à sombra da luz excessiva de uma verdade que não existe… Que vivo e me vejo viver… 

 

“O poeta amigo de Myah”, devem pensar no meio. Amizade, amor platónico, pensarão. Mas eu estou perdido como se tivesse apenas este minuto, este chão para viver e as outras mulheres da minha vida tivessem caído numa caixa escura. Contemplo escuto acaricio bebo excito-me dispo-a deixo-me despir invadir devassar apoderar-se de mim que faça de mim o que quiser e ela quer tudo e então cresço ruborizo visito-a por todo o lado por todos os buracos e pede-me que não deixe um só em solidão e entro invado-a e tudo e muito mais ela me devolve incansável inesgotável. Quantas vezes posso? Ela quer sempre mais e mais e há sempre um pouco mais onde parecia não haver mais nada. A minha vida é agora e apenas no meu corpo e sabe-me bem. Quem está comigo não pertence a este mundo, é este mundo. Estava eu nestes reflexões quando Myah, às voltas com os seus prelúdios, estamos na casa da praia, se levanta do piano e me pergunta:

— Amas-me? Diz que me amas, diz muitas vezes — e reparo que tem os olhos molhados.

— Por que  choras?

Aproxima-se, entra para dentro dos meus olhos, coloca as mãos nos meus joelhos, puxa-me para o chão, sentados um diante do outro, e diz:

— Eu devia ter-te encontrado há dez anos.

— Mas há dez anos tu…

— Era uma adolescente? E depois? Eu sei que tu te terias apaixonado por mim e eu por ti. Não me teria casado, uma mulher não se deve casar aos 18 anos com o primeiro príncipe comercial que aparece, pressões de família, aqui ainda é assim… Mas também para me livrar do peso da família… Saí de um peso para entrar num pesadelo.

— Tens-me dito que os primeiros anos foram bons…

— Eu pensava que sim antes de saber que o amor é outra coisa, uma fusão, coração, palavra, sexo, loucura, excesso, vício, humidades trocadas... As palavras são tuas, o corpo de quem ama é todo ele um sexo louco e sábio. E tu…

— Eu?

— Terias caído nas minhas malhas, de feiticeira, como dizes? Nos meus ardis? Terias caído apesar dos meus poucos anos?

— Esqueces os meus muitos. A minha mulher, ainda há um ano, dizia que eu estava acabado: “Já não podes?”, perguntava-me.

— Pobre da tua mulher que não te conhecia, que não deve perceber nada do que é um homem, do que se deve fazer com um homem para ele fazer connosco tudo o que nós quisermos.

— É assim que fazes comigo?

— Totalmente. Não gostas?

— Talvez eu não tenha nascido para ela.

— Claro que não. Nasceste para mim. Tu eras meu antes de saberes que eu existia. Meu, assim.

Enrolou-me as pernas na cintura e torceu-me o dorso num golpe seco mas delicado. Deitados, as pernas descruzaram-se. Tocou-me nos mamilos torceu-os com uma leve violência que me agitou o sangue e eu beijei os seus seios mordi-os soltou-se e atacou-me o sexo começou a acariciá-lo a excitá-lo enquanto eu busquei com a língua toda com toda a saliva possível e a meti na mão que, arado gentil, se infiltrou nos lábios espumosos do seu sexo.

— Já não choras? ­— perguntei, olhando-a fundo.

— Raramente choro quando entras para dentro de mim. Quando começo a voar enlouqueço.

— Pensava que tu eras sempre

­         — Louca? Talvez. Mas agora vou perverter-se, corromper-te de amor. Para além do entendimento, como dizem nestas bandas. Assim está bem?

— Sim. Abre um pouco mais, assim.

— Toda, abro-me toda, dou-te tudo o que tenho, tudo o que sou. Bebe-me, agarra-me, come-me.

 

 

A bela desordem desta casa. Vejamos uma estante com livros, que livros? Ao lado da Bíblia, traduzida por André Chouraqui, o De l’ Amour, de Stendhal; e ao lado de um livro sobre Francisco de Assis, a Justine, a do marquês de Sade, ilustrada por Dubout; e ainda o delicioso Rouchd al-lâbib li mou’acharati al-habîb, uma espécie de Kama Sutra árabe que, traduzido à letra, disse-me ela, daria Guia do Desperto para a frequentação da Bem-amada; e junto à foto do seu casamento a pequena “menina” nua de João Cutileiro, que lhe ofereci no dia dos seus 26 anos.

 

 

Esta noite dormi sozinho e senti-me perdido sem o seu calor oriental. Existe tal coisa? Parece que sim, o seu corpo ardendo lentamente sobre sob o meu. Vou fechar os olhos, lembrar-me de cenas enquanto o sono não chega — ou ela, às oito da manhã. Como consegues aquecer-me só de me olhar? Não sei, tal como nada sei, senão vivê-lo, do mistério que arrancaste dos meus ossos frios, uma música distante que parecia esgotada. Vou à janela, olho a baía, a profusão de luz em redor do mar. No Verão nadei nessas águas, ardi, ouvimos a Carmen no Templo de Júpiter, adormecemos ao som da cascata na gruta de Astarte. Releio o Cântico dos Cânticos: “Que ele me beije com os beijos da sua boca! Bem melhor do que vinho, o teu amor…” O teu rosto dramático não me sai da memória, são duas da manhã e já não sei adormecer sem a tua cabeça no meu pescoço o meu joelho nas tuas coxas as tuas mãos na minha cintura. Quantas vezes me deixo cair no sonho quando as tuas mãos me amaciam e depois me excitam?

 

 

Acordo. Um telefonema. E depois outro e outro, ao ritmo da sua vida. Barbeio-me, tomo duche enquanto ela continua com os seus telefonemas, a gerir a sua teia, filhos, amigos, obrigações mínimas e múltiplas e depois regresso, nu, dentro da minha amaya. O nervo matinal animado pela água tépida. É ela agora quem vai à casa de banho: canta, despede-se do seu período e depois atira-se para dentro de mim. Faz frio, a casa nunca mais acaba, o ar condicionado falha. Um abraço vigoroso, o calor desigual, a respiração nos pescoços vai aquecer-nos. Cresço, mas não muito e é então que ela me toca, dedos finos e me vira as costas sem deixar a glande.

— O que fazes?

— Toco-te, roço-te.

— Mas tu nunca

­         — Nunca muita coisa mas hoje apetece-me, queres?

— Tudo, de todas as maneiras.

E começa a salivar-me o sexo, a metê-lo entre as nádegas, deixo-a conduzir, acaricio o clítoris, nada mais e sim, que faça o que quiser, e ela faz, muito lenta, o meu sexo conduzido pelos seus dedos como se fosse um objecto. É.

— Esqueces-te que tens uma boca? Que ela faz milagres? 

— Tenho mais lábios, hoje vai ser com estes, gostas?

— Estou a gostar, molha, molha um pouco mais.

— Sim, com as mãos, só as mãos, as duas.

— Fizeste quando eras virgem? Com as virgens fazia-se assim — digo-lhe ao ouvido. Como não podiam perder a virtude antes do casamento exploravam outras coisas, outros ritmos… O namorado tinha que ser muito experiente. Claro que perdiam muitas vezes a cabeça.

— Nada, eu nunca fiz nada, fui atirada para o casamento como um cordeiro para a boca do lobo, mas o meu lobo ainda sabia menos do que eu. Não tinha dentes. Apenas explorei um pouco os mistérios do meu corpo solitário. Estás a gostar?

— A gostar? Vou enlouquecer-te, enlouquecendo. Vou fazer como faziam os casais virgens, horas.

— Horas? Não acredito.

— Passavam horas: meter um pouco, manter um pouco e depois tirar, retirar, era quase impossível mas tinha que ser assim. Uns orgasmos pelo meio, uns delírios. Pantanosos, fluviais. Quem não passou por isso ficou frio para a vida inteira. Ou agressivo ou apenas um vaso, no caso da mulher. As coisas delicadas que se fazem por estas bandas.

— Nunca fiz. Sabes que não sou um vaso mas que serei um vaso quando quiser, se quiser. Horas? Agrada-me a promessa.

— Sobretudo se formos interrompidos pelo telefone de dez em dez minutos. Deixa-me tirar um pouco… assim… vou entalá-lo no rabo enquanto falas...

— Estou a gostar, mas deixa-me ser eu a fazer tudo, quero comer-te.

— Comer-me?

— Trabalhá-lo, chupá-lo com esses lábios. Gostas?

— Se gosto, mas agora vai doer-te, vou meter-te o dedo e depois o sexo, vais adorar.

— Adoro sim dói não faz mal eu gosto mas não faças doer muito não sim sim assim molha molha mais podes fazer doer que já não me dói...

— Agora deixa-me ver, deixa-me descobrir o quase invisível, vê-lo outra vez.

— Pensavas que eu tinha sido reduzida, disseste-me na ilha.

— Não, isso não, já sabia que eras meio maronita, meio ortodoxa, mas admirei-o, o teu grão é tão pequenino. Uma das minhas mulheres tinha um clítoris que parecia um pequeno sexo masculino.

— Gostavas?

— Gosto do teu, tocá-lo com a glande como se fosse a língua, com a língua como se fosse a glande.

— Quanto tempo dizes tu que podes?

— O tempo todo, se me ajudares. Se me deixares concentrar. Para mim o sexo é uma mistura muito variável de sentimento, tesão e razão. Ah mas agora apetece-me entrar, derramar-me.

— Já não sou virgem?

— Já não. Salta-me para cima, força.

— Sim, sim. Vou-te inundar.

E aconteceu o que aconteceu..

 

        

A sândalo cheiras, a perfume de rosas mas o que lambo nas tuas coxas e sorvo na tua cintura é o suor do amor e tu em mim o que bebes e comes é uma terra que passou a ser tua. A sândalo humanizado cheiramos, e quase se ouve.

 

 

— Como é delicado o perfume das frases ingénuas e pomposas!

— Amo-te. Venero-te com tudo o que há em mim de místico e de erótico.

— Cada novo dia contigo é o melhor da minha vida, um milagre, uma coroação!

— Entro inteiro em ti, inteira permaneces quando partes.

— “Aspiro o delicado hálito da tua boca”

 

 

Desfaço-me na lágrima absoluta, essa que me esvazia e cega.

 

 

Casimiro de Brito (Portugal)
Poeta, romancista, contista e ensaísta. Nasceu no Algarve, em 1938, onde estudou (depois em Londres) e viveu até 1968. Depois de uns anos na Alemanha passou a viver em Lisboa. Teve  várias profissões mas actualmente dedica-se exclusivamente à literatura. Começou a publicar em 1957 (Poemas da Solidão Imperfeita) e, desde então, publicou mais de 40 títulos. Dirigiu várias revistas literárias, entre elas "Cadernos do Meio-Dia" (com António Ramos Rosa), os Cadernos "Outubro/ Fevereiro/ Novembro" (com Gastão Cruz) e "Loreto 13" (órgão da Associação Portuguesa de Escritores). Actualmente é responsável pela colaboração portuguesa na revista internacional “Serta”. Esteve ligado ao movimento "Poesia 61", um dos mais importantes da poesia portuguesa do século XX. Ganhou vários prémios literários, entre eles o Prémio Internacional Versilia, de Viareggio, para a "Melhor obra completa de poesia", pela sua Ode & Ceia (1985), obra em que reuniu os seus primeiros dez livros de poesia.
Colabora nas mais prestigiadas revistas de poesia e tem obras suas incluídas em mais de 190 antologias, publicadas em vários países. Participou em inúmeros recitais, festivais de poesia, congressos de escritores, conferências, um pouco por todo o mundo. Foi director de festivais internacionais de poesia de Lisboa, Porto Santo (Madeira) e Faro. Foi vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores, presidente da Association Européenne pour la Promotion de la Poésie, de Lovaina e presidente do P.E.N. Clube Português.  Obras suas foram gravadas para a Library of the Congress, de Washington. Foi agraciado pela Academia Brasileira de Filologia, do Rio de Janeiro, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura — entre outras distinções, nomeadamente, em Portugal, a Ordem do Infante. Conselheiro da Associação Mundial de Haiku, de Tóquio. Nomeado “Embaixador Mundial da Paz” (Genebra, 2006). A Académie Mondiale de Poésie (da Fundação Martin Luther King), galardoou-o em 2002 com o primeiro Prémio Internacional de Poesia Leopold Sédar Senghor, pela sua carreira literária. Ganhou o Prémio Europeu de Poesia Aleramo-Mario Luzi, para o “Melhor Livro de Poesia Estrangeiro publicado em Itália em 2004” e o “Poeteka” na Albânia. Tem traduzido poesia de várias línguas, sobretudo do japonês e foi traduzido para galego, espanhol, catalão, italiano, francês, corso, inglês, alemão, flamengo, holandês, sueco, polaco, esloveno, servo-croata, macedónio, grego, romeno, búlgaro, húngaro, albanês, russo, árabe, hebreu, chinês e japonês. A sua obra é composta por mais de 40 livros, a consultar em:
http://casimirodebrito.no.sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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