Na data combinada,
compareci para fazer a entrevista, que me surpreendeu do começo ao fim.
Inicialmente, por ele querer ler as questões que eu levava numa folha de
papel em vez de deixar que eu as enunciasse; depois, por dizer
repetidamente que era difícil dar conta delas, insistindo em que
renunciássemos à entrevista; e, finalmente, por retomá-la quando eu já
me dispunha a voltar noutro dia.
Derrida não deixou em momento algum de resistir à entrevista que ele
havia concordado em conceder. Para que eu percebesse o quão impossível é
a posição de quem precisa do tempo que for necessário para desenvolver o
pensamento e deve se su
BMeter ao tempo limitado do dispositivo jornalístico? Tratava-se de
denunciar o autoritarismo da mídia ao qual ele já se havia referido mais
de uma vez?
Seja
como for, através da sua resistência, o filósofo questionou a entrevista
à medida que eu a fazia. Por isso, além das suas respostas a questões
específicas, segue o relato do que ocorreu antes e depois de cada
pergunta.
Derrida me pede para lhe entregar as questões que estão numa folha de
papel que eu seguro na mão. Depois de ler atentamente, ele se concentra
e responde à primeira pergunta, que diz respeito ao título do seu livro
e, em particular, à razão pela qual ele usa a palavra
espectro no plural. [BM]
JD
Trata-se, por um lado, de Marx, como espectro para a consciência
política mundial de hoje, que vê no comunismo – por ela confundido com
as sociedades socialistas que desmoronaram – algo morto e que deve ser
evitado. Para essa consciência, é preciso se certificar de que Marx está
e vai continuar enterrado. Existe, portanto, uma relação com o espectro
de Marx e do comunismo. Mas também existem, por outro lado, os espectros
de Marx, os que perseguiram o próprio Marx. Na segunda parte do livro,
digo que Marx era perseguido por um exército de espectros, trato do
problema da fantasmalidade em relação com o fetichismo, com a
ideologia etc. Dependendo da maneira como a gente articula o genitivo, o
plural indica Marx como um espectro e, por outro lado, os espectros que
existiam para ele. Só que a noção de espectralidade não diz respeito
apenas ao fantasma e, sim, a tudo o que eu chamo de “lógica espectral”,
àquilo que, na nossa experiência, não é nem inteligível, nem sensível,
nem visível, nem invisível e que tanto diz respeito à linguagem quanto à
telecomunicação.
BM
O que
o levou a falar de uma lógica espectral?
JD
O
tema do espectro já está nos meus livros anteriores. O espectro é uma
estrutura que resiste às oposições metafísicas. Não é nem sensível, nem
inteligível, nem vivo e nem não-vivo. Portanto, tem uma afinidade com
quase todos os conceitos que me interessaram no meu trabalho: a graça, o
“pharmacon”, o “suplemento”, tudo o que resistia às oposições
conceituais da filosofia clássica. A espectralidade foi o viés
estratégico da “desconstrução”. Tratava-se de encontrar uma categoria
que resistisse às categorias filosóficas. Já faz muito tempo que eu me
interesso pelo trabalho do luto na psicanálise e para além da
psicanálise. Escrevi sobre o assunto em Glas e em certas
introduções a obras de psicanálise. Quando a gente se interessa por esse
trabalho, tem que se ocupar do retorno do fantasma. Procurei mostrar, a
partir de Freud e contra ele, que o trabalho de luto é interminável.
Foi, portanto, a partir de uma reflexão sobre o luto que eu cheguei a
privilegiar a espectralidade e, em Espectros de Marx, a
gente encontra muitos fios de pensamento já bem antigos.
Derrida lê a segunda questão, que diz respeito à razão pela qual ele se
refere a Shakespeare em
Espectros de Marx. Lê e logo responde.
JD
Shakespeare é uma referência de Marx, que o cita sempre. Mas as obras
que ele cita não são as que eu privilegio em Espectros de Marx.
Ele cita sobretudo Timão de Atenas, O mercador de Veneza... Ao
que sei, ele não fala de Hamlet. Achei necessário considerar o
interesse de Marx por Shakespeare, porém também fui a este por causa da
lógica da espectralidade. Há muitos espectros na obra de Shakespeare. Em
Hamlet, em Macbeth...
BM
O que
o recurso a Shakespeare significou para o senhor?
JD
Difícil responder a isso numa entrevista...
BM
Bem,
então vamos passar à próxima pergunta.
Digo
isso me referindo à terceira questão, que está na folha de papel, em
cima da mesa de Derrida, à sua frente.
JD
Não,
não... Há muito o que dizer sobre o recurso a Shakespeare. Mas deste
modo eu não consigo falar.
BM
Hum...
JD
Me
interessei, por exemplo, pelo que chamo de “efeito de viseira” no
fantasma do rei, do pai de Hamlet. O “efeito de viseira” diz respeito ao
fato de que o fantasma vê sem ser visto, por usar uma viseira. Tentei, a
partir daí, pensar o que é uma situação em que a gente é olhado sem
poder olhar, uma situação espectral. Me interessei também pelo fato de
que o tempo de Hamlet é difícil de calcular, porque o fantasma
surge primeiramente na peça pela segunda vez. A coisa começa pela
repetição. Por fim, há algo que Hamlet diz e que organiza Espectros
de Marx: “The time is out of joint”, o tempo está
disjunto. Trata-se do tema da disjunção, da não-contemporaneidade a si
mesmo, é um tema maior nesse livro que se quer não-contemporâneo.
Escrever um livro falando de Marx, hoje, pode parecer anacrônico e eu
procuro justificar esse anacronismo através da disjunção, do out of
joint. Mas, diga, quanto tempo nós temos?
BM
Em
princípio uma hora, mas depende do senhor.
JD
Uma
hora é muito. Veja (mostrando a agenda repleta), eu tenho outro
encontro marcado para daqui a pouco.
BM
Bem,
então nós faremos o que for possível.
JD
Mas
eu não tenho condições de dar a entrevista, eu escrevo tão melhor do que
falo...
Desligo o gravador para deixá-lo à vontade. Logo depois, ele retoma a
palavra.
JD
Mas
você vai me mostrar o texto?
BM
Claro, posso até escrever em francês primeiro, se o senhor fizer questão
disso.
JD
Não,
não precisa, pode ser em português.
Derrida passa a ler a questão seguinte. Nela, pergunto se ele diria que
o filósofo deve se ocupar do espectro como o psicanalista se ocupa do
recalcado.
JD
Claro
que o espectro é alguém que nos fascina e tentamos reprimir, recalcar.
No entanto, não sei se a categoria psicanalítica esgota o problema.
Tento pensar a dimensão política de tal recalque. Por outro lado, no fim
do livro, eu me coloco uma série de questões sobre o modo como Freud
trata o fantasma e o que diz do unheimlich. Trata-se de
levar em conta uma leitura psicanalítica do espectral e também de
colocar questões sobre as categorias psicanalíticas, que devem ser
reelaboradas e politizadas. Você opõe, na sua pergunta, o filósofo e o
psicanalista, mas o psicanalista também trata do espectro.
BM
Claro, mas foi o senhor que organizou o seu pensamento a partir da
figura do espectro.
JD
Espectros de Marx
não é
um livro filosófico simplesmente. Por várias razões. Primeiro, porque
desconstrói uma série de axiomas filosóficos. A própria filosofia não
foi capaz de pensar o espectro. É preciso pensá-lo contra a filosofia.
Por outro lado, queria protestar contra uma corrente atual que quer
tratar Marx como um grande filósofo e estudá-lo na universidade.
Trata-se de uma maneira de neutralizar Marx, de fazer dele um personagem
da Academia Filosófica. Não é só uma leitura de filósofo que eu faço, é
uma leitura que protesta contra certa reapropriação filosófica de Marx.
Digo
a Derrida que ele já está respondendo à minha pergunta seguinte, a qual
trata justamente de saber o que significa a volta ao espírito de Marx.
Derrida lê a pergunta de novo na folha, que está à sua frente e
responde.
JD
Insisto em dizer que não é um “retorno a” Marx, mas que se trata do
“retorno de” Marx. Não se trata de um desses tantos retornos a mais, em
que a gente vai redescobrir uma obra. Trata-se de levar em conta o fato
de que Marx retorna, e que não podemos resistir ao que esse retorno nos
dita, nos impõe. Por outro lado, esse “retorno de” é o retorno do
espírito ou do espectro, de uma certa maneira de colocar as questões
críticas, sem necessariamente reabilitar as teses de Marx. É preciso
distinguir o espírito da letra. Questionar com o espírito de Marx não
quer dizer reaplicar dogmaticamente a doutrina de Marx, voltar a uma
ortodoxia marxista. Nunca fui e nem me tornei marxista.
BM
Sim.
JD
Marx,
o pensamento marxista, foi um dos poucos que fizeram da abertura crítica
uma palavra de ordem.
BM
Isso
é verdade.
JD
Trabalhar com o espírito de Marx também significa não ficar no interior
de uma dogmática marxista e tentar pensar o inédito do nosso tempo com
um certo espírito – que eu também chamo de “espírito de justiça” e nos
vem de Marx. O espírito diz respeito à espectralidade, porém também a
uma incitação que não nos paralisa numa letra dogmática, num dogma
literal, numa doutrina.
BM
Isso
tem algo a ver com o estilo de Marx?
JD
Com o
estilo, no sentido literário, não. Tem a ver com o modo de colocar as
questões, uma certa vigilância em relação a certas maneiras que, na
sociedade, os homens têm de esquecer, dissimular, fetichizar.
BM
Que
proposições de Marx o senhor mantém e que outras recusa?
JD
Em
nome do espírito de Marx, eu me proponho, no livro, a desconstruir todas
as proposições de Marx. Alguns marxistas dizem que não sobra nada de
Marx. É bem possível que a ontologia de Marx, todas as suas teses
filosóficas, o materialismo dialético, a maneira como ele próprio tenta
conjurar o fantasma requeiram a desconstrução. Não guardo um conteúdo de
tese marxista. Não retenho nada desse ponto de vista. Enquanto
ontologia, a filosofia de Marx me parece desconstrutível.
BM
E o
que o senhor pensa da luta de classes e da dialética?
JD
Tenho
uma relação complicada com a dialética. É muito difícil explicar
isso numa entrevista, você sabe...
BM
Trata-se de uma questão que interessa aos leitores...
JD
Eles
que leiam o livro. Não consigo explicar isso numa entrevista.
BM
Eu o
entendo perfeitamente bem.
Digo
isso e fico em silêncio. Derrida lê as perguntas e subitamente diz:
“Não, eu não posso. Aliás, eu não posso mais nada. Isso tudo é muito
difícil, não me sinto capaz... Acho que nós devemos parar”. Pela segunda
vez, desligo o gravador e sugiro uma pausa, um café. Derrida não diz nem
sim nem não, e eu volto a ligar o gravador, tomando inutilmente a
iniciativa.
BM
Numa
das suas entrevistas, o senhor lembrou que posições de esquerda podem se
aliar a posições de extrema-direita. Por causa de inquietações legítimas
a respeito da política econômica dos estados dominantes da Europa, uma
certa esquerda se aliou a um antieuropeísmo extremo. Tem sentido ainda
falar de esquerda e de direita?
JD
Não, eu não posso responder, é muito difícil.
Silêncio.
JD
Não
posso e não é só porque esteja cansado, é porque é difícil. Queira me
perdoar.
Recupero a folha de papel que está na frente dele, leio a questão
seguinte e faço uma última tentativa.
BM
A
exploração da xenofobia pela classe política parece estar na base dos
grandes conflitos da modernidade. Como lutar contra ela?
JD
Sou
contra, mas não tenho nada a dizer, não vou ficar aqui fazendo frases.
Não devia ter prometido a entrevista, porque não me sinto capaz.
Silêncio.
JD
O que
eu posso dizer a respeito disso está no livro.
Derrida pega novamente a folha em que estão as perguntas e eu agora
protesto.
BM
Não
vejo por que o senhor quer ler. Seria melhor que eu lhe colocasse as
questões.
JD
Quem
redigiu isso?
BM
Fui
eu.
JD
É
muito difícil.
BM
Gostaria pelo menos que o senhor me desse uma resposta relativa à
questão da pertinência dos conceitos de esquerda e de direita.
JD
Não,
não...
BM
O
senhor não responde às questões que dizem respeito à política.
JD
Não é
porque é político. Não vou dizer que não existe mais esquerda e direita,
porque é uma armadilha em que eu não quero cair. São coisas que não
suportam a improvisação. Me aborrece ter que fazer você voltar, mas eu
francamente não me sinto capaz. Se eles lá no jornal quiserem, que
escrevam sobre o livro. Eu... eu não consigo.
Desligo pela terceira vez o gravador e digo a ele que me disponho a
voltar num outro dia, ainda que isso implique viajar 500 quilômetros.
Derrida quer saber para onde vou. Respondo que vou passar uns dias no
interior da França escrevendo. Inesperadamente, ele resolve continuar a
falar e aborda a questão da luta de classes e da dialética.
JD
O
gravador está funcionando? Vamos tentar. No que concerne à luta de
classes, procurei mostrar que o esquema da luta dos antagonismos e da
dominação de uma força social por outra é irredutível. Numa situação
social dada, existem relações de força, de dominação, e essas relações
estruturam a sociedade. Dizer isso significa não renunciar à ideia de
conflito, mas não significa definir os termos dessa luta baseando-se no
conflito de classes sociais. O conceito de classe social hoje precisa
ser retrabalhado. Ainda existem as classes sociais, mas o uso que o
discurso marxista tradicional faz do conceito de classe social talvez
deva ser revisto. Acho que não é necessário se servir do conceito de
luta de classes, na sua tradição marxista, para analisar hoje as lutas,
as hegemonias, as contradições, as relações de força que, por não serem
as das classes, não deixam de ser de uma estrutura de grupo, que a gente
pode analisar com um espírito marxista. Não se trata de conservar ou de
abandonar o conceito de luta de classes, basta adaptá-lo a uma nova
situação político-econômica. Quanto à dialética marxista, é preciso
dizer que a expressão “materialismo dialético” não está em Marx. Por
outro lado, como muitos pensadores franceses, eu questionei a dialética.
O que existe de estritamente dialético em Marx não é o que mais me
interessa. Isso posto, mesmo se num determinado momento existem
conflitos que não são dialetizáveis, o pensamento dialético pode ainda
ser muito fecundo. O meu trabalho, tanto neste livro quanto nos
anteriores, é interrogar a necessidade e o limite da lógica dialética.
Tendo
desistido de seguir o meu roteiro, eu faço a ele as perguntas que me
ocorrem em função do que ele diz.
BM
O
senhor fala de uma Nova Internacional. Quem vai fazer parte dessa Nova
Internacional e como ela vai se organizar?
JD
O que
eu chamo de Nova Internacional, brincando com essa expressão, implica
detectar através do mundo, fora dos partidos, fora dos sindicatos, uma
aspiração a uma solidariedade internacional que reúna homens e mulheres
que não são necessariamente cidadãos de um Estado ou sujeitos políticos
no sentido tradicional da palavra “político”. Tal solidariedade exige
uma transformação do direito internacional e da democracia, que hoje não
se afina com o conceito de Estado-nação, de fronteira e nem com um
direito internacional de instituições internacionais que, por um lado,
são regidas por categorias europeias criticáveis e, por outro lado, são
dependentes dos Estados Unidos. A gente pode detectar a aspiração
através de muitos sinais, ela forma uma espécie de solidariedade. Embora
não tenha forma organizacional, ela perturba as instituições ligadas ao
Estado. Existe uma força internacional que hoje é obscura e ainda não
encontrou a sua linguagem.
BM
O que
tem isso a ver com o Parlamento Internacional dos Escritores, que se
reuniu no ano passado em Estrasburgo, em torno do caso Rushdie, e do
qual o senhor participa ativamente?
JD
Trata-se de um parlamento que tenta, para além dos Estados, das
economias, dos poderes da mídia, unir todos os que procuram pensar
livremente, inventar formas novas, se engajar em vias que não são
controladas por dogmas, constituições, ortodoxias nacionais,
lingüísticas ou religiosas.
BM
Qual
a finalidade da reunião do Parlamento Internacional dos Escritores em
Lisboa este ano [1994]?
JD
Vamos
trabalhar juntos. O tema da reunião será a literatura deslocada.
BM
O que
é literatura deslocada?
JD
Hoje,
mais do que nunca, muitos escritores, pensadores, jornalistas, pessoas
que representam a liberdade da palavra estão ameaçados de morte,
ostracizados, foram expulsos do seu país ou, às vezes, obrigados a se
esconder no interior do mesmo, a se autocensurar. Por que tanto exílio
no exterior e no interior? Por que os escritores, os que inventam formas
e trabalham com a linguagem, estão assim tão visados?
BM
O que
tem a autocensura com a mídia?
JD
A
mídia, seja ela estatal ou livre, é controlada por monopólios de
interesse comercial, ela é dirigida pelo mercado.
BM
Que
efeito tem isso sobre o trabalho do escritor?
JD
A
mídia é a mediação entre o escritor e o leitor, é um poder que avalia,
classifica, sustenta ou marginaliza e, consequentemente, limita a
autonomia de criação. Os escritores começam a só escrever o que o
mercado vai absorver. A onipotência do mercado exerce um efeito de
autocensura, sem falar das censuras ainda mais graves, como as que pesam
sobre Salman Rushdie, sobre os escritores que na Índia, ou em outros
lugares, estão ameçados de morte. No Parlamento Internacional, vamos
refletir a respeito das condições novas dessas perseguições, de seus
agravamentos atuais. O escritor sempre teve problemas com o poder
estatal ou religioso, mas hoje isso se passa em condições diferentes.
BM
Trabalhar no Parlamento é uma forma de ser um intelectual engajado?
JD
A
palavra “engajado” tem uma história. Quando alguém se diz engajado,
corre o risco de evocar modelos anteriores, enquanto o engajamento hoje
deve encontrar formas novas. Mas o trabalho no Parlamento é uma forma de
engajamento, claro.
BM
Obrigada pela entrevista.
JD
Isso
basta? O material é suficiente?
BM
Acredito que sim. Agora, é redigir a entrevista e pedir uma foto ao seu
editor.
JD
Se
você quiser, eu posso te dar uma foto.
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