REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 01

 

Lustiano, o Separa, está no banheiro. Funcionário do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais e fã de Noel Rosa, Lustiano Espírito Santo de Maio tanto chorou nos inferninhos da zona da praça Raul Soares, Diga que você me adora, que você lamenta e chora, a nossa separação, o gogó tão rasgado e tremendo tanto no ão, que ficou Separa e é Separa até hoje o Lustiano, mineiro de Iturama. No quarto, Belê muda de roupa. Vão ao Cine Brasil ver um filme que Belê sempre quis ver, Alma Torturada, com Veronica Lake, em quem Belê é gamado desde que a viu de raspão, vapt-vupt, em Cliente Morto Não Paga.

- Belê, cadê o talco?

- Táqui.

- Que horror, como você é desarrumado, Belê.

- Quem que largou ele aqui?

Separa sai nu do banheiro e pega o talco. English Lavender, perfumado. Num gesto dengoso, roda o corpo na frente do espelho e olha Belê.

- Tou ficando velha não, Belê?

Belê, sentado na cama, calça os sapatos e não responde. Tomara mas é que morra, veada coroca. Belê mora com Separa faz dois anos, fugido da fome do sertão de Porteirinha. Uma noite trombou com Separa num boteco da Lagoinha, ainda sem almoço e sem jantar, Separa pagou a janta, assistiram um filme no Regina, Belê gozou na mão de Separa e foi tão bom que Separa abriu a porta, abriu a cama e Belê não saiu mais. Agora, Belê veste calças e camisas da Toulon, na Savassi, pega de perfume floral da Coty e não passa nem na porta dos botecos da Lagoinha. Agora, Belê faz de marido de Separa e mora na praça Raul Soares, não se esconde mais num barraco da favela Tamboril.

- Ó só, Belê. Hem?

 

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
   
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Cunha de Leiradella



HOJE NÃO É DIA DE ROCK
 

                                                                   Cunha de Leiradella
 

Separa mostra as dobras da barriga. Belê nem olha, lustrando os sapatos com o lenço. Já conhece a barriga de Separa, já conhece as mãos de Separa, já conhece as coxas de Separa, já conhece tanto de Separa que não quer nem mais olhar. Nem pegar. Belê já enjoou de Separa, Separa sempre alisando o piru dele, metendo na boca, mexendo no cabelo pixaim. Belê gosta disso não. Separa é branco e é velho e balofento, e Belê é preto e é novo e muito do enxuto. E ama outro.

- Belê.

Separa alisa o cabelo de Belê e esfrega-se nele. Belê tira a cabeça. Horror, sempre que sai do banho Separa esfrega-se em Belê. Separa gosta de alisar o cabelo áspero de Belê e de lhe cheirar o bodum dos sovacos cabeludos. Separa levanta o piru mole e acaricia-o, excitando-se, mas Belê não olha. Separa passa-lhe a mão na cara, devagar, acariciando a pele suada.

- Não quer, não?

Belê fecha os olhos e não responde. Coisa horrorosa, Separa é pior que mulher, se excitando sempre à toa, à toa. Separa entra no banheiro.

- Nego safado. Eu manjo você, viu, seu veado. Ou pensa que eu não vi você se derretendo todo práquele sarará, quando cheguei, hem?

Belê levanta-se e acende um cigarro. Viu sim. Viu sim. Mas ele é macho, viu, sua tricha, veada velha.

- Passe talco nas minhas costas.

Belê passa talco nas costas de Separa. Mas com raiva, com ódio. Agora, Belê odeia passar talco em Separa. Agora, Belê gosta é de alisar o piru de Má Fé, capanga de Tó Miró, chefia na favela Pau-Comeu. Má Fé já dormiu com Belê e Belê babou de gozo. Má Fé não alisa o cabelo de Belê nem se esfrega nele depois do banho. Má Fé é homem, macho, tem amantes, tratou Belê mal, bateu, rasgou, judiou, fez Belê chorar, mas Belê amou. Belê gosta é de macho, voz grossa, piru grande, não de veada coroca que nem Separa, que só sabe ser mulher e ter chilique à toa, à toa.

- Pare, Belê. Que horror, tou toda branca.

Separa tira o talco das mãos de Belê. Belê sai do banheiro. Tomara é que morra, veada velha. Separa entra no quarto.

- Belê, sabe que dia é hoje?

Na frente do espelho, Separa veste a calcinha Valisère, modelo bem cavado e olha Belê, encostado na cabeceira da cama. Separa que pagou, mas foi Belê que deu, presente de Natal.

- Hem, Belê?

Belê não responde.

- Ah, Belê, que horror, como que pode?

Separa aproxima-se de Belê, abraça-o e beija-o.

- Poxa, Belê, esqueceu que logo mais faz dois anos que a gente se conheceu? Até fomos ver o John Holmes no Regina, não lembra, não?

Num gesto brusco, Belê afasta-se de Separa. Não lembro, não quero lembrar e tenho raiva de quem lembra. Acende um cigarro, liga o rádio e deita-se na cama, os olhos fixos no teto, no peito uma saudade enorme de Má Fé, enquanto a voz romântica de Paulo Sérgio enche o quarto, cantando Não Consigo Esquecer Você. Separa volta-se para o espelho.

- Poxa, Belê, você tá que... Eu, hem, que horror. 

Belê não quer mais morar com Separa. Só ainda não largou porque não tem dinheiro e não quer voltar a esconder-se num barraco, que nem há dois anos se escondia na Favela Tamboril. Não fosse isso, um pé na bunda de Separa era o bem-feito. Belê não agüenta mais Separa lambuzando o corpo dele com a língua, alisando e engolindo o piru dele, toda noite querendo ser montado. Belê, agora, quer é um homem que o monte, que deixe pegar no piru, lamber, engolir, deitar por baixo, fazer um tudo. Agora Belê gosta é de Má Fé, capanga de Tó Miró, chefia na favela Pau-Comeu. Má Fé, que tem amantes, que tratou mal, que bateu, que judiou, que fez até Belê roubar dinheiro de Separa, não essa veada velha, coroca, mulher nojenta. Mas Má Fé não paga. Belê já teve experiência, já dormiu com Má Fé, que bateu nele, que rasgou ele, fez judiaria e Belê ainda teve que pagar. E toda vez que Belê pega no piru de Má Fé, Belê paga. Rouba dinheiro de Separa para pagar, mas não se importa. Quer é as unhas de Má Fé rasgando as costas e o piru arromba que arromba, as nádegas empinadas e Má Fé gemendo, batendo e gozando por trás. Separa ajusta a calcinha e olha-se no espelho mais uma vez.

- Hem, Belê? Eu não tou emagrecendo, não?

Belê fecha os olhos. Bicha horrorosa. Tricha. Neguinha gostosa. Vem cá, vem, que tu vai ver. Má Fé sorri e cuspe longe, o bafo da cachaça saindo junto com o cuspe. Belê sente um friozinho gostoso subindo pela espinha e pestaneja, como as mocinhas fazem no cinema e nas novelas. Separa tá no trabalho. Má Fé sorri e passa-lhe a mão na bunda. Neguinha safada. Belê pega os cigarros, olha Má Fé, pestaneja de novo, sorri, provocante, e sai do bar, rebolando. Entra em casa correndo, passa perfume no corpo e espera Má Fé. Belê tem certeza que Má Fé vem. Má Fé gosta de cabaços, já disse a Belê. Má Fé entra, pisando firme e bate com a porta, num tranco só, não é como Separa, que só pisa macio e não se sente nem entrar. Belê entra no quarto, a tanga vermelha da Hope justa no corpo, quase fio dental. Má Fé joga o cigarro pela janela, agarra Belê pelo pescoço e joga-o em cima da cama. Bunda do cacete, neguinha. Belê quase desmaia, arrepiado. Volta-se e olha Má Fé tirar a roupa, o corpo magro, moreno, brilhando de suor. A boca de Belê fica seca e a garganta rasca. Ah, meu Deus, como ele é bonito. E nem espera Má Fé tirar a cueca, puxa com tanta força que rebenta dois botões, a boca aberta e a língua procurando o que lamber, desesperada. Ah, meu Deus, hoje morro, eu morro. Belê olha Separa rodando o corpo na frente do espelho. Velha nojenta. Veada. Desgraçada. Tricha.

- Se veste, não?

- Chi, Belê, mas que horror.

- Quero perder o filme, não.

- Chi, Belê. Tá impossível hoje, que horror. 

Separa e Belê descem a av. Amazonas, caminho do Cine Brasil. Belê na frente, que, agora, tem até vergonha de andar na rua com Separa. Minha Nossa Senhora, tomara é que Má Fé não veja. Separa corre atrás de Belê.

- Me espere, Belê. Que horror.

Belê pára e espera. Tem medo que Separa grite, faça escândalo.

- Quê que deu em você, hem, Belê? Coisa horrorosa.

- Pode ter fila.

Não tinha. Era a primeira sessão da tarde e o Cine Brasil estava vazio. Separa comprou as entradas.

- Viu como não tinha fila?

- Mas podia ter, ora.

Sentaram bem na frente, quarta fila. Separa não gosta que ninguém sente junto quando vai ao cinema com Belê. A campainha toca e as luzes apagam. Impaciente, a mão de Separa procura a braguilha de Belê. Belê cruza as pernas e tira a mão de Separa. Separa encosta a ponta da língua na orelha dele.

- Tem um presente.

Belê não diz nada nem se mexe. Separa descruza-lhe as pernas e enfia a mão entre as coxas.

- Vai gostar, você vai ver.

No meio da sessão Belê goza na mão de Separa. Separa limpa Belê, o lenço perfumado com o floral da Coty.

- Gostou, não? Hem, Belê?

Belê não responde. Recosta-se na cadeira e fecha os olhos. Era com Má Fé que ele tinha gozado. Má Fé rasgando a pele dele, arrombando ele, batendo nele, cuspindo nele, fazendo judiaria, Belê gritando, desfalecendo, mas gozando, de bom que era.

- Belê?

Belê não responde. Má Fé ainda está gozando, lanhando as costas dele.

- Não adivinha, não? Hem?

Belê continua calado, Má Fé gozando e uma quenturinha subindo das virilhas, Belê quase gozando outra vez. Separa pega na mão dele.

- Poxa, Belê...

As luzes acendem. Belê tira a mão de Separa, levanta-se e sai. Separa segue-o.

- Chi, Belê. Me espere.

Belê não responde. Quer chegar rápido em casa, trancar-se no banheiro e deixar que Má Fé o arrombe outra vez, ele gozando nos ladrilhos. Separa alcança-o já na calçada e segura-lhe um braço.

- Venha ali comigo, Belê.

- Vou, não.

- Venha, Belê. Vai gostar, você vai ver.

- É longe?

- Chi, Belê, é logo ali, na esquina da Tupinambás.

Entram no elevador e saltam no nono andar. Separa abre a porta de um apartamento conjugado e faz Belê entrar. Fecha a porta, abre a janela, abre a porta do banheiro e mostra a quitinete.

- Gostou, Belê?

Belê não responde. Coisa horrorosa, de fundos. Moro aqui nem morta. Separa passa um braço na cintura de Belê.

- Comprei pela Caixa pra nós dois. Com seguro e tudo.

Belê olha Separa, espantado.

- Comprou mesmo? Jura?

Separa sorri, satisfeito com a alegria de Belê.

- Semana que vem vamos assinar a escritura. Nós dois.

Belê olha á área de serviço, lá em baixo. Separa encosta-se nele. Agora não vai me deixar nunca mais. Belê debruça-se na janela e calcula a altura. Nove andares, se cair, era uma vez, viu, sua veada?

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

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