REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

“Siamo di fronte a un nuovo paradigma della biologia,
che no se limita a conoscere o a sfruttare la natura,
ma che passa alla logica della manipolazione totale
per essere padrona di una vida costruita
dall'uomo in modo artificiale”
(Roberto Colombo, Avvenire, 22.05.02)

«À l'inverse de l'homogénéité qui règne dans l'espace conceptuel de la géométrie,
chaque lieu et chaque direction est affecté dans l'espace intuitif du mythe
d'un accent particulier, qui renvoie lui-même à l'accentuation fondamentale
propre au mythe, à la distinction du sacré et du profane» (E. Cassirer)

«Lo cielo es de los celestes. Los mortales sólo habitamos la tierra,
y algunos mortales, como los saduceos, prescindieron del cielo
para vivir com más ahínco en su tierra;
no sabemos si el cielo prescindió de ellos » (Félix de Azúa)

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

(Universidade Nova de Lisboa/DCC)

O  céu e a terra

De O Senhor Ventura de Torga a

“O céu e a terra” de Karl Barth

 

IX COLÓQUIO INTERNACIONAL «DISCURSOS E PRÁTICAS ALQUÍMICAS»
Benedita (Portugal). 29-30 de Maio de 2010    
                                       

 
 
 
 
 
 
   
 

A relação entre a natureza (ingens sylva, dizia Vico) e a cultura não é de ordem ontológica. Natureza e cultura são duas pontas de uma categoria semântica, constantemente redefinidas pelo poder de artifício da actividade humana. De que « natureza » é o céu azul monocromártico de Gioto da capela Scrovegni ou o céu das exceperiências visuais de James Turrel? Durante muito tempo a natureza foi considerada como um reino objectivo governado por leis imutáveis, enquanto a cultura era tida como uma república em que reinava o simbólico, o político e o social de forma mais ou menos arbitrária. Como se a história da natureza não tivesse sido sempre a história das suas metamorfoses. Pensava-se igualmente que a natureza, a que o homem pertence, era um «dado», o conjunto dos dados em que consiste o problema da existência, e que todas as «respostas» vêm depois, quando o homem começa a interpretar a natureza como o dado de um problema. «Porém», escreve Emanuele Severino, «già il linguaggio intende il ‘dato’ come l’effeto di un ‘dare’. Cioè si può credere che la natura – la situazione originaria in cui l’uomo si trova gettato – sia già essa stessa una ‘risposta’ a un evento più originario che segna il destino dell’uomo» (1). Não há Natureza mas naturezas: o homem é criador de naturezas artificiais – a mais recente é a recriação da vida em laboratório: »Abbiamo progettato, sintetizzato e assemblato cellule capaci di auto-replicarse” (Craig Venter e Hamilton Smith). Derrida, em Donner le Temps, escreve que a natureza não existe, existem apenas os efeitos da natureza: a des-naturação ou a confirmação da natura. Pode defender-se uma outra opinião: «Não é verdade que  a natureza não exista. A natureza é aquilo que se pensa, não só aquilo que se vê ou se toca» (2). Nesta perspectiva, o mundo não é apenas aquilo que estaria «fora» de nós, supõe que se tenha uma ideia do «mundo «interior»- o «mundo escrito», como diria Calvino. Para Whitehead, a Natureza define-se pela sua integral exterioridade, a sua transcendência, a sua inacessibilidade; por outro lado, a Natureza está infinitamente próxima de nós; ou, se quisermos retomar a expressão de Merleau-Ponty»: «Ela está toda inteira em cada uma das suas aparições, e não se esgota em nenhuma delas» (3). Cada percepção nos dá os elementos  de uma Natureza sempre nova  pela simples razão que a Natureza é actividade, não é constituida por instantes. Nos textos de Whitehead, o período em que o seu  trabalho incide sobre a filosofia da natureza, a ligação entre a crítica da ciência e a crítica da bifurcação da natureza está já presente. Esta teoria da bifurcação consiste em subdividir a natureza em duas realidades muito distintas: a natureza, tal como é apreendida pela consciência, e a natureza tal como é construida como modelo científico: a primeira «contém em si mesma o verde das árvores, o canto dos pássaros, o calor do sol, a sensação do veludo» (4), enquanto a segunda, de natureza causal, «é o sistema conjectural das moléculas e dos electrões que afectam o espírito de modo a produzir a consciência da natureza aparente» (5). Whitehead e Merleau-Ponty compreenderam ambos o erro da ciência que foi exactamente de separar, através da sua concepção implícita da realidade, a Natureza e a Vida. O diagnóstico de Merleau-Ponty e Whitehead coincidem: a «cegueira da ciência». Ao  conceber a natureza como natureza causal, a ciência instaura uma distância  com a Vida; como consequência:«A santificação do claro e distinto levou  assim à evacuação do sentido e do valor (6).  O erro da ciência foi o seu esquecimento da experiência que é o seu fundamento, isto é a sua ignorância do vivido incarnado que precede o pensamento.

Para a semiótica que se pratica hoje, e na esteira de Husserl e Merleau-Ponty, a instância de base, o corpo, o «elemento central da ‘Natureza» (phusis) é a instância constitutiva da instância de origem. Semioticamente falando, o que é basilar não são as diferenças fundadas na natureza mas as diferenciações entre os modos de apreensão do mundo, os pontos de vista. O interpretante é sempre um outro significante, uma metáfora, um código, um horizonte cultural em que estamos imersos. O que não existe é a harmonia universal – a paz é apenas uma trégua em tempo de guerra. A demanda da harmonia universal é um projecto da escrita poética (Vide Baudelaire) graças à sinestesia e à metáfora, graças à procura das equivalências figurativas e perceptivas. Estamos, portanto, com uma questão estética. A particularidade da experiência estética, para a qual Kant não hesita em falar de «sensações» (Pl 1, 1042) é a da mais radical pertença a um aqui e agora, defendidas de qualquer traço da abstracção que a produção conceptual opera sobre o dado sensível. Nem o juízo estético nem o sentimento que ele produz podem deixar o solo da experiência sensível. É a propósito do sublime que Kant diz: «o céu sublime não é o dos astrónomos, mas aquele de que, por minha conta, eu capto as cintilações».

 

O Senhor Ventura

 

Partamos de dois autores, dois pontos de vista sobre as duas extremidades que ligam o humano – de  humus – que nunca deixou de se projectar numa ou outra destas extremidades: o céu e a terra: Miguel Torga e Karl Barth. Um ponto de vista literário, a que podemos chamar «animista», o de Torga, e um ponto de vista teológico, o de Barth. Torga é o nosso mais «terreno» escritor, o mais enraizado à torga e à rocha. Como o cura de Vilarinho ele é «um bloco de pedra». Poucos como ele olham a perdição a que chegámos: a perda da integridade e daí a dispersão. A «lei» e a «lição da terra», a «força telúrica» levarão a melhor sobre o desequilíbrio que reina à face da terra. Para Teresa Rita Lopes que toda a obra Torga se pode resumir nesta frase, com variantes: «no começo era a terra» ou «no começo era o corpo», ou ainda «no começo era o homem» (7). Tudo na sua obra é dicotómico, exclusivo. Ora, os valores exclusivos são valores que tendem a ser «absolutos»: «ao termo  de uma série de filtros e de selecções eles são, de certo modo, «purificados»: o seu brilho é então função da estreiteza do seu campo de aplicação» (8). Este tipo de discurso, quando focaliza e valoriza uma temática, uma figura, facilmente veste a toga do censor, e aí temos o discurso do moralista. O discurso militante, o romance de tese, o género polémico são outras tantas versões deste tipo de discurso. No universo dicotómico de Torga, cada um destes três termos exclui o seu contrário: o céu, a alma, Deus. A terra, o corpo, o homem, eis a triologia que preside à obra de Torga. De resto, a Torga repugna tudo o que renega a raíz – a água, por exemplo, ou a «terra alheia». O deus de Torga é o «deus das vindimas», das forças elementares do mundo, com as suas festas e os seus ritos, sem transcendência, sem eternidade à vista. Se há um culto, é à Grande Mãe que tal culto é dedicado. O oficiante da «vida» celebra o seu culto no espaço exterior ao Templo: a sua missa é «campal». Como Heidegger, que não refuta o princípio da razão, nem Deus, nem a técnica, na prática, o seu princípio de regulação é a «Terra», não o «Céu».

O romance Senhor Ventura (1943) (9) traz já in nuce os tropismos que Torga amplificará ao longo da sua obra. É a história de um homem que desobedeceu às leis da terra, sobretudo àquela que impõe o respeito do exemplo da raíz. Quem parte da terra que o viu nascer é um “proscrito” - termo que emprega para Pedro, o filho de Maria Lionça do conto do mesmo nome (Contos da Montanha 1969, pp. 21-22). Vida e Terra estão sempre de mãos dadas. No conto Vicente o Senhor, o Criador é um Deus cioso: a água que afoga a Vida, o fogo que o quer matar. Deus é o Antagonista. Que baste a Terra para dar sentido à vida e à morte. Deixemos Deus no seu golfo (Mar ou Céu). Maria Lionça é a incarnação da  Mãe-Terra. O movediço introduz a desordem. O Senhor Ventura, o “traga -mundos”, o “proscrito”, não apenas deixa a terra que o viu nascer como ainda por cima casa com uma mulher estrangeira. Só quando regressa a casa é que verdadeiramente acorda. “A terra-mãe dizia-lhe agora toda a verdade do seu drama e da sua grandeza. Nascer e morrer fiel aos safões, ao leito e ao húmus quente da charneca, era, afinal, um grande destino(10). A Terra punirá o Senhor Ventura: morrerá em terra estranha. Trará o filho para o enraizar na sua terra natal e partirá de novo. O ciclo fechar-se-á, o destino cumprir-se-á: o filho redimi-lo-á. Após a morte do pai o filho regressa à aldeia, tornando-se pastor, como o pai quando tinha a mesma idade.

 

O Sagrado

 

O espaço mítico é dominado pelo “fenómeno de expressão”. As definições tensivas (aberto vs fechado) da esfera do sagrado e da esfera do profano são conformes à exigência hjelmsleviana que concebe as grandezas como “pontos de intersecção de feixes de relações”. O mundo antigo, sensível à concentração tinha o cuidado de preservar o valor colocando-o num “templum”: “A sacralização começa quando separa, da totalidade do espaço, uma região particular, distinta das outras, que é envolta e por assim dizer enclausurada pelo sentimento religioso. Esta noção de sacralização religiosa, que se apresenta também como uma divisão do espaço concretiza-se linguisticamente na expressão templum. Templum (téménos) remonta à raiz tem-, cortar, significando aquilo que é delimitado. Um templum define-se como um espaço circunscrito no ar pelo áugure antigo para delimitar o campo da sua observação, o campo do visível em que o visual fará sintoma, iminência e ilimitação (11). Em A Ideia do Sagrado, Rudolph Otto identifica e explora o mistério não-racional que está para lá da religião e da experiência religiosa ("não-racional" não deve ser confundido com "irracional"); diz ele que este mistério é o elemento básico de todas as religiões, e a isso chamou o numinoso, utilizando o termo "numen" para se referir à deidade ou a Deus. O “mysterium tremendum et fascinosum de Rudolph Otto é o sentido do absolutamente outro, ‘causa de tudo’ que governa o mundo, e que o sujeito experimenta como uma presença misteriosa e terrível. O numinoso tem um outro aspecto que co-existe com o mysterium tremendum, o poder de fascinação. O numinoso fascina ou aterra-nos com uma força irresistível. Otto chama a esta qualidade do numinoso o mysterium fascinosum. No seu ponto mais intenso, este fascínio torna-se "exuberante" e transforma-se no "momento" místico ou directo, completo contacto com o numen, um estado que pouca gente experimenta. Não há grupo humano que não produza a sua sacralidade. Esse ponto de fuga que assegura simultaneamente a coesão e a perenidade é o que se chama o sagrado. Lugares “emblemáticos” como monumentos, um muro, um mausoléu, uma cripta são pontos de reunião e espaços circunscritos, à parte. Porém, o sagrado não se refere à natureza, mas ao caos. O Grego pensou os seus deuses, imortais-mortais, a partir da Beleza da natureza: “O mundo está cheio de deuses”, dizia Tales. Mas o pensamento filosófico do divino construiu-se contra os deuses antropomórficos, providenciais, que os mortais invocam para suplicar e diante dos quais se ajoelham. Ora o caos é o sagrado, é o atributo dos ventos, dos cavalos, dos homens e das cidades, mas também das coisas tomadas no seu acmé, no instante culminante da sua potência. O peixe que se debate fora de água na extremidade da linha é sagrado (Ilíada XVI, 407). O raio é sagrado. O numinoso aterroriza. O sagrado separa. No âmbito da cultura semita, Isaías fala do Santo, e diante do Santo, o terror e o temor que paralisam.  Para Kierkegaard o religioso nasce numa aproximação demoníaca. Tanto o religioso como o demoníaco nos situam face a face com o tremendo. Este autor põe em paralelo a figura de Abraão, o cavaleiro da fé e Tritão, uma figura que surge dos fundos abissais, e isto porque a tentação demoníaca é encenada na tradição ocidental por relatos perigosos de exploração marítima e por vezes de expedição na montanha. É de resto no cenário do mar, que a Bíblia tem por perigoso e tenebroso, que Jesus aparece como aquele a quem até o mar obedece.

 

K. Barth

 

Passemos a um texto contrastivo com o de Torga: “O Céu e a terra” de K. Barth (12). Este texto é um comentário do primeiro artigo do símbolo dos Apóstolos: “Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da terra”. São os dois últimos lexemas que Barth comenta. Se é um discurso de comentário, transforma saber, é um texto didáctico: é um curso que Barth dá na Universidade de Bonn no semestre de varão 1946. No discurso de Barth são as operações persuasivas que ocupam mais espaço: “pensais que..mas eu digo-vos que” que pressupõe um contrato fiduciário entre o enunciadfor e os seus auditores-leitores. E uma injunção final: que os leitores se deixem transformar num “todo” pelo saber produzido.

A criação tem apenas uma finalidade: servir de teatro para a glória de Deus e “nós constituimos pela nossa simples existência de criaturas, um sinal, uma demonstração e uma promessa do destino final de toda a criação”.

Segmentemos o texto:

na sequência inicial: o enunciador opõe dois programas cognitivos ou saberes: a doutrina cristã da criação   vs  uma cosmologia ou imagem fundada na Escritura e o Símbolo vs do mundo que resulta da reflexão humana.

Começo da explicação do programa cognitivo positivo que inclui o céu, a terra e o homem.

A aliança: finalidade e fundamento de criação Sequência conclusiva: resumo do saber  produzido e comunicação graças a este saber de um objecto-valor: a unidade-comunhão da criatura e do Criador Vê-se nesta primeira sequência um sujeito virtual (a Igreja, os cristãos) chamada a não se deixar desviar pelas operações sedutoras do falso saber. È fora da esfera da reflexão humana, das “concepções do mundo” que o sujeito cognitivo é convidado a adquirir este saber. O discurso referencial (a Escritura, a fé) não serve para validar o enunciado de estado: “o céu e a terra são o objecto da doutrina cristã da criação”, mas a garantir  a aquisição do verdadeiro saber. A Weltanschauug pertence ao modo de produção do falso saber. “A Bíblia não nos em parte alguma que devamos adoptar esta ou aquela concepção do mundo”.

Assinalemos um primeiro percurso figurativo de tipo cosmológico: “céu”, “terra”, “criação”, “universo”, “mundo”. Um percurso de actividades noéticas que cobrem os lexemas: “doutrina”, “sistema”, “pensamento”, etc. Uma primeira citação de Génesis 1,1 lembra que o saber contido no Credo pressupõe conhecido o relato da criação como querer e fazer de Deus. Uma segunda citação do catecismo de Lutero lembra que o homem é no relato bíblico a figura central. Uma pergunta: a descrição da criação que nos dá o Credo é uma descrição adequada na medida em que o homem é aí omitido? O homem parece omisso no símbolo, mas o céu e a terra são o seu quadro natural.

Barth retoma as explicações do falso saber: o céu e a terra são apresentados como autónomos enquanto a Escritura fala sempre do céu e da terra, logo do homem também, no quadro duma relação com Deus. “O genitivo mostra que não acreditamos , mas no Deus Criador”. O Credo fala do homem conforme à Escritura. Uma primeira referência ao símbolo de Niceia-Constantinopla permite a Barth separar o céu e a terra (céu = invisível vs terra = visível). Uma segunda referência à Escritura desdobrada  por uma referência à “cosmologia antiga” permite introduzir uma nova disjunção: céu físico, ainda visível – o firmamento ou a abóbada – e o “verdadeiro céu”, que forma o trono de Deus, que escapa completamente à compreensão do homem. Uma terceira disjunção: entre o céu invisívele e incompreensível e a presença de Deus. O céu não é Deus. É um puro mistério.

Em semiótica, o mistério é a conjunção do ser e do não-parecer, não ao nível do dizer como secreto, mas no plano do conhecer. Não se trata de uma operação de veridicção, mas de estatuir sobre um objecto do saber (Deus) que como o céu é incompreensível. A terra é descrita como mundo do compreensível enquanto o céu era designado como mundo do mistério, o céu em relação com Deus (alto) e a terra em relação com o homem (baixo). O homem está situado no limite do céu e da terra. O poder do homem baseia-se num saber: é capaz de compreender o seu meio natural. A aliança que precede a criação no tempo) de Deus com o homem é como um querer de Deus que faz do homem o sujeito potencial (virtual) do louvor. A criação é o sinal de um desígnio eterno de Deus – um querer e poder-fazer de Deus. A criação remete-nos assim para aquilo a que o enunciador chamou a aliança. Mas mais do que a criação, é a criatura humana que é sinal da aliança realizada de maneira perfeita em J. Cristo. A polaridade céu-terra remete para uma polaridade mais fundamental que é Deus e o homem . O céu e a terra são apenas o quadro em que o homem é investido por um poder-ser e um poder-fazer: dar glória a Deus, viver em comunhão-unidade com Ele.

 

Coda

 

Que distingue a filosofia da teologia? Para Hugo de S. Victor a teologia é determinada por uma «voluntaria certitudo», donde o que é importante é a voluntariedade da certeza, a um nível superior à opinião, mas inferior à «ciência». Em suma, o objecto da teologia são os «objecta fidei». Os teólogos não são intelectuais, mas «magistrati della verità» (Emanuelle Coccia). A filosofia é surda à presença das coisas (Serres, Statues) – à pedra a que Sísifo constantemente sobe. James Lovelock (13) diz-nos de que modo a metáfora de Gaia permite inverter a solução kantiana e pode permitir escutar o apelo dos seres a que o moralismo nos ensinou a não ser sensível. Se a teologia reivindica o domínio do homem sobre a criação e a sua subordinação a um Criador, a ciência, varre da cena qualquer transcendência, erguendo um pedestal ao cientista. A língua latina chamava res, a coisa, donde nós retiramos a realidade, o objecto do processo judicial ou a própria causa, de modo que, para os Antigos, o acusado tinha o nome de reus porque os magistrados o citavam. Como se a única realidade humana viesse dos tribunais. Como se a natureza fosse apenas um palco e não um actor. A lei positiva proibe ou esconde a lei natural. A pedra cai porque o preso caíu (Sísifo). Continuamos a comportar-nos como “reis da criação”, rodeados de rituais de sagração que hoje todo o poder exibe. O Reino e a Glóiria, de Giorgio Agamben, sobre a genealogia do poder ajuda-nos a colocar uma questão de peso: se o poder é, antes de mais, todo o governo, porque tem ele necessidade da glória isto é desse aparelho do cerimonial e litúrgico que o acompanha desde o começo? Afinal, o poder moderno não é apenas “governo” mas também “glória”: as cerimónias, as liturgias e as aclamações que consideramos como um resíduo do passado não deixam de constituir a base do poder ocidental. A análise das aclamações litúrgicas e dos símbolos cerimoniais do poder, do trono à coroa, da púrpura aos fachos romanos, permite construir uma genealogia inédita que esclarece a função do consenso e dos médias nas democracias modernas.

Aquilo que é hoje conhecido como «sciences studies» modificaram seriamente a separação entre o estritamente científico e factual e a moral, os factos e os valores.  Que distingue a ecologia da moral? Para nos tornarmos morais à maneira dos modernos, temos de nos abrigar do mundo e olhar as coisas como um espectáculo. Dizia-o Kant e repete-o Blumenberg. Não, a natureza não é um espectáculo a ver de longe. É a surdez que se torna o sinal da imoralidade. Lovelock ensina-nos uma outra perspectiva: ele não imagina Gaia dotada de sensações nem a entende como um animal ou uma bactéria. Gaia é uma metáfora: onde nos transporta ela? À questão política e moral das relações mútuas de tamanho, de dependência e de responsabilidades entre os humanos e o que os faz viver. Gaia não é um simples objecto nem um simples organismo. Não podemos sair da metáfora: para não cair no «objectivismo» ou no antropomorfismo. É preciso juntar políticos, cientistas, ecologistas e moralistas para discutir a articulação dos nossos diferentes apegos. Latour tem razão: «Nous ne voyons jamais que nous mêmes, la parole des hommes débat indéfiniment du crime et du châtiment» (14). Não temos que divinizar os astros para experimentar em nós essa constrição essencial à nossa station terrestre, aos nossos desastres, ao nosso sentimento do espaço em geral que é a abóbada celeste. O céu abarca tudo: vê-nos nascer e morrer. Em último caso, vivemos todos sob o olhar do céu. «Não há nem lugar, nem vazio, nem tempo fora dele», escrevia Aristóteles (15). Bem conclui Félix de Azúa quando escreve : « La imposibilidad de vivir en la tierra amputrada de su cielo y de su infierno aparece con cegadora claridad ; el espectáculo de estas hormigas ebrias de petulancia. Cinismo y desolación es estimulante. Hoy hay luna llena» (16). Porque não falar então do céu e da terra como se de um ambo se fala? Porque não começar a falar de um novo iluminismo e do conhecimento científico como valor cultural e  civil?

 

Notas

 

[1]  Emanuele Severino, Pensieri sul Cristianesimo, BUR rizzoli Saggi, 2010, p. 104.

[2]  Alessandro Carrera, La consistenza della luce. Il pensiero della natura da Goethe a Calvino, Feltrinelli, Milano, 2010, p. 156.

[3]  M. Merleau-Ponty, La Nature, Notes, Cours du Collège de France, Paris, Seuil, 1994, p. 160.

[4]  A. N. Whitehead, Le Concept de nature, Paris, Vrin, 2006, p. 68.

[5]  ibidem.

[6] Michel Weber, “La vie de la Nature selon le dernier Whitehead” in Études philosophiques, Juillet 2006-3, Paris, PUF, p. 397.

[7] «Miguel Torga: l'office pour «un dieu de terre», Fondation Caloust Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, Paris, 1984.

[8] Jacques Fontanille, Sémiotique et littérature, Paris, puf, 1999, p. 166.

[9]  Miguel Torga, O Senhor Ventura, Lisboa, Dom Quixote, 2007.

[10] O Senhor Ventura, p. 124.

[11]  G. Didi.Huberman, L’homme qui  marchait dans la couleur, Paris, Minuit, 2001,  p. 33.

[12] Karl Barth “Esquisse d'une dogmatique: “le Ciel et la terre”, Delachaux et Niestlé 1950, p. 56-61.

(13) James Lovelock, La revanche de Gaïa: Pourquoi la Terre riposte-t-elle et comment pouvons-nous encore sauver l'humanité? Paris, Flammarion, 2007

(14) Émile Hache et Bruno Latour, Morale ou moralisme? Un exercice de sensibilisation», in Raisons Politiques nº 34 mai 2009, pp. 143-166.

(15) Aristote, Du ciel I, 9, 279a, trad. P. Moreaux, Paris, Les Belles Lettres 1965, p. 37.

(16) Félix de Azúa, Salidas de tono. Cinquenta reflexiones de uno ciudadano, Anagrama, 1996, p. 458.

 

Bibliografia

 

Aristote, Du ciel I, 9, 279a, trad. P. Moreaux, Paris, Les Belles Lettres 1965.

A. N. Whitehead, Le Concept de nature, Paris, Vrin, 2006.

D. Rel, II 1763-1993 – J. Ries (dir.) Traité d’ anthropologie du sacré, Paris, 1992. 

Émile Hache et Bruno Latour, Morale ou moralisme? Un exercice de sensibilisation», in Raisons Politiques nº 34 mai 2009.

Félix de Azúa, «Lo que queda del cielo» in Salidas de tono. Cincuenta reflexiones de un ciudadano Anagrama, 1996,   p. 45

Emanuele Severino, Pensieri sul Cristianesimo, BUR rizzoli Saggi, 2010. 

Félix Duque, Filosofía para el fin de los tiempos Akal, Nuestro Tiempo, 2000, p. 119. 

Guido Ceronetti, «Thérèse d’Avila entre ciel et terre» in  Le lorgnon mélancolique, Albin Michel, 1990 , p. 92. 

Jacques Fontanille, Sémiotique et littérature, Paris, puf, 199

Maurice Merleau-Ponty, La Nature, Notes, Cours du Collège de France, Paris, Seuil, 1994

Michel Weber, “La vie de la Nature selon le dernier Whitehead” in Études philosophiques, Juillet 2006-3, Paris, PUF.

Miguel Torga, O Senhor Ventura, Lisboa, Dom Quixote, 2007. 

M. Régis Debray, Le Monde des Religions mars-avril 2009.

 

 

 

José Augusto Mourão,op (Portugal)
Presidente do Instituto S. Tomás de Aquino, promotor, com o CICTSUL e o TriploV, do colóquio internacional «Discursos e Práticas Alquímicas».
E-mail: jam@triplov.com

 

 

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