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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 05
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“Siamo di fronte a un
nuovo paradigma della biologia,
che no se limita a conoscere o a sfruttare la natura,
ma che passa alla logica della manipolazione totale
per essere padrona di una vida costruita
dall'uomo in modo artificiale”
(Roberto Colombo, Avvenire, 22.05.02)
«À l'inverse de l'homogénéité qui règne dans l'espace
conceptuel de la géométrie,
chaque lieu et chaque direction est affecté dans l'espace intuitif du mythe
d'un accent particulier, qui renvoie lui-même à l'accentuation fondamentale
propre au mythe, à la distinction du sacré et du profane» (E. Cassirer)
«Lo cielo es de los celestes. Los mortales sólo habitamos la
tierra,
y algunos mortales, como los saduceos, prescindieron del cielo
para vivir com más ahínco en su tierra;
no sabemos si el cielo prescindió de ellos » (Félix de Azúa) |
DIRECÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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REVISTA TRIPLOV |
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O Bule |
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O Contrário do Tempo |
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JOSÉ AUGUSTO
MOURÃO
(Universidade Nova de Lisboa/DCC)
O céu e a
terra
De O Senhor Ventura de Torga a
“O céu e a terra” de Karl Barth |
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IX COLÓQUIO INTERNACIONAL «DISCURSOS E
PRÁTICAS ALQUÍMICAS»
Benedita (Portugal). 29-30 de Maio de 2010 |
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A relação entre a natureza (ingens sylva, dizia Vico)
e a cultura não é de ordem ontológica. Natureza e
cultura são duas pontas de uma categoria semântica, constantemente
redefinidas pelo poder de artifício da actividade humana. De que « natureza »
é o céu azul monocromártico de Gioto da capela Scrovegni ou o céu das
exceperiências visuais de James Turrel? Durante muito tempo a natureza
foi considerada como um reino objectivo governado por leis imutáveis,
enquanto a cultura era tida como uma república em que reinava o
simbólico, o político e o social de forma mais ou menos arbitrária. Como
se a história da natureza não tivesse sido sempre a história das suas
metamorfoses. Pensava-se igualmente que a natureza, a que o homem
pertence, era um «dado», o conjunto dos dados em que consiste o problema
da existência, e que todas as «respostas» vêm depois, quando o homem
começa a interpretar a natureza como o dado de um problema. «Porém»,
escreve Emanuele Severino, «già il linguaggio intende il ‘dato’ come l’effeto
di un ‘dare’. Cioè si può credere che la natura – la situazione
originaria in cui l’uomo si trova gettato – sia già essa stessa una
‘risposta’ a un evento più originario che segna il destino dell’uomo»
(1). Não há Natureza mas naturezas: o homem é criador de naturezas
artificiais – a mais recente é a recriação da vida em laboratório: »Abbiamo
progettato, sintetizzato e assemblato cellule capaci di auto-replicarse”
(Craig Venter e Hamilton Smith). Derrida, em Donner le Temps, escreve
que a natureza não existe, existem apenas os efeitos da natureza: a des-naturação
ou a confirmação da natura. Pode defender-se uma outra opinião: «Não é
verdade que a natureza não exista. A natureza é aquilo que se pensa,
não só aquilo que se vê ou se toca» (2). Nesta perspectiva, o mundo não
é apenas aquilo que estaria «fora» de nós, supõe que se tenha uma ideia
do «mundo «interior»- o «mundo escrito», como diria Calvino. Para
Whitehead, a Natureza define-se pela sua integral exterioridade, a sua
transcendência, a sua inacessibilidade; por outro lado, a Natureza está
infinitamente próxima de nós; ou, se quisermos retomar a expressão de
Merleau-Ponty»: «Ela está toda inteira em cada uma das suas aparições, e
não se esgota em nenhuma delas»
(3). Cada percepção nos dá os elementos de uma Natureza sempre nova
pela simples razão que a Natureza é actividade, não é constituida por
instantes. Nos textos de Whitehead, o período em que o seu trabalho
incide sobre a filosofia da natureza, a ligação entre a crítica da
ciência e a crítica da bifurcação da natureza está já presente. Esta
teoria da bifurcação consiste em subdividir a natureza em duas
realidades muito distintas: a natureza, tal como é apreendida pela
consciência, e a natureza tal como é construida como modelo científico:
a primeira «contém em si mesma o verde das árvores, o canto dos pássaros,
o calor do sol, a sensação do veludo» (4), enquanto a segunda, de
natureza causal, «é o sistema conjectural das moléculas e dos electrões
que afectam o espírito de modo a produzir a consciência da natureza
aparente» (5). Whitehead e
Merleau-Ponty compreenderam ambos o erro da ciência que foi exactamente
de separar, através da sua concepção implícita da realidade, a Natureza
e a Vida. O diagnóstico de Merleau-Ponty e Whitehead coincidem: a «cegueira
da ciência». Ao conceber a natureza como natureza causal, a ciência
instaura uma distância com a Vida; como consequência:«A santificação do
claro e distinto levou assim à evacuação do sentido e do valor (6).
O erro da ciência foi o seu esquecimento da experiência que é o seu
fundamento, isto é a sua ignorância do vivido incarnado que precede o
pensamento.
Para a semiótica que se pratica hoje,
e na esteira de Husserl e Merleau-Ponty, a instância de base, o corpo, o
«elemento central da ‘Natureza» (phusis) é a instância constitutiva da
instância de origem. Semioticamente falando, o que é basilar não são as
diferenças fundadas na natureza mas as diferenciações entre os modos de
apreensão do mundo, os pontos de vista. O interpretante é sempre um
outro significante, uma metáfora, um código, um horizonte cultural em
que estamos imersos. O que não existe é a harmonia universal – a paz é
apenas uma trégua em tempo de guerra. A demanda da harmonia universal é
um projecto da escrita poética (Vide Baudelaire) graças à sinestesia e à
metáfora, graças à procura das equivalências figurativas e perceptivas.
Estamos, portanto, com uma questão estética. A particularidade da
experiência estética, para a qual Kant não hesita em falar de «sensações»
(Pl 1, 1042) é a da mais radical pertença a um aqui e agora, defendidas
de qualquer traço da abstracção que a produção conceptual opera sobre o
dado sensível. Nem o juízo estético nem o sentimento que ele produz
podem deixar o solo da experiência sensível. É a propósito do sublime
que Kant diz: «o céu sublime não é o dos astrónomos, mas aquele de que,
por minha conta, eu capto as cintilações». |
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O Senhor Ventura |
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Partamos de dois autores, dois pontos
de vista sobre as duas extremidades que ligam o humano – de humus – que
nunca deixou de se projectar numa ou outra destas extremidades: o céu e
a terra: Miguel Torga e Karl Barth. Um ponto de vista literário, a que
podemos chamar «animista», o de Torga, e um ponto de vista teológico, o
de Barth. Torga é o nosso mais «terreno» escritor, o mais enraizado à
torga e à rocha. Como o cura de Vilarinho ele é «um bloco de pedra».
Poucos como ele olham a perdição a que chegámos: a perda da integridade
e daí a dispersão. A «lei» e a «lição da terra», a «força telúrica»
levarão a melhor sobre o desequilíbrio que reina à face da terra. Para
Teresa Rita Lopes que toda a obra Torga se pode resumir nesta frase, com
variantes: «no começo era a terra» ou «no começo era o corpo», ou ainda
«no começo era o homem» (7). Tudo na sua obra é dicotómico, exclusivo.
Ora, os valores exclusivos são valores que tendem a ser «absolutos»: «ao
termo de uma série de filtros e de selecções eles são, de certo modo, «purificados»:
o seu brilho é então função da estreiteza do seu campo de aplicação»
(8). Este tipo de discurso, quando focaliza e valoriza uma temática, uma
figura, facilmente veste a toga do censor, e aí temos o discurso do
moralista. O discurso militante, o romance de tese, o género polémico
são outras tantas versões deste tipo de discurso. No universo dicotómico
de Torga, cada um destes três termos exclui o seu contrário: o céu, a
alma, Deus. A terra, o corpo, o homem, eis a triologia que preside à
obra de Torga. De resto, a Torga repugna tudo o que renega a raíz – a
água, por exemplo, ou a «terra alheia». O deus de Torga é o «deus das
vindimas», das forças elementares do mundo, com as suas festas e os seus
ritos, sem transcendência, sem eternidade à vista. Se há um culto, é à
Grande Mãe que tal culto é dedicado. O oficiante da «vida» celebra o seu
culto no espaço exterior ao Templo: a sua missa é «campal». Como
Heidegger, que não refuta o princípio da razão, nem Deus, nem a técnica,
na prática, o seu princípio de regulação é a «Terra», não o «Céu».
O romance Senhor Ventura (1943) (9) traz já in nuce
os tropismos que Torga amplificará ao longo da sua obra. É a história de
um homem que desobedeceu às leis da terra, sobretudo àquela que impõe o
respeito do exemplo da raíz. Quem parte da terra que o viu nascer é um
“proscrito” - termo que emprega para Pedro, o filho de Maria Lionça do
conto do mesmo nome (Contos da Montanha 1969, pp. 21-22). Vida e Terra
estão sempre de mãos dadas. No conto Vicente o Senhor, o Criador é um
Deus cioso: a água que afoga a Vida, o fogo que o quer matar. Deus é o
Antagonista. Que baste a Terra para dar sentido à vida e à morte.
Deixemos Deus no seu golfo (Mar ou Céu). Maria Lionça é a incarnação da
Mãe-Terra. O movediço introduz a desordem. O Senhor Ventura, o “traga
-mundos”, o “proscrito”, não apenas deixa a terra que o viu nascer como
ainda por cima casa com uma mulher estrangeira. Só quando regressa a
casa é que verdadeiramente acorda. “A terra-mãe dizia-lhe agora toda a
verdade do seu drama e da sua grandeza. Nascer e morrer fiel aos safões,
ao leito e ao húmus quente da charneca, era, afinal, um grande
destino(10). A Terra punirá o Senhor Ventura: morrerá em terra estranha.
Trará o filho para o enraizar na sua terra natal e partirá de novo. O
ciclo fechar-se-á, o destino cumprir-se-á: o filho redimi-lo-á. Após a
morte do pai o filho regressa à aldeia, tornando-se pastor, como o pai
quando tinha a mesma idade. |
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O Sagrado |
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O espaço mítico é dominado pelo “fenómeno de
expressão”. As definições tensivas (aberto vs fechado) da esfera do
sagrado e da esfera do profano são conformes à exigência hjelmsleviana
que concebe as grandezas como “pontos de intersecção de feixes de
relações”. O mundo antigo, sensível à concentração tinha o cuidado de
preservar o valor colocando-o num “templum”: “A sacralização começa
quando separa, da totalidade do espaço, uma região particular, distinta
das outras, que é envolta e por assim dizer enclausurada pelo sentimento
religioso. Esta noção de sacralização religiosa, que se apresenta também
como uma divisão do espaço concretiza-se linguisticamente na expressão
templum. Templum (téménos) remonta à raiz tem-, cortar, significando
aquilo que é delimitado. Um templum define-se como um espaço
circunscrito no ar pelo áugure antigo para delimitar o campo da sua
observação, o campo do visível em que o visual fará sintoma, iminência e
ilimitação (11). Em A Ideia do Sagrado, Rudolph Otto identifica e
explora o mistério não-racional que está para lá da religião e da
experiência religiosa ("não-racional" não deve ser confundido com
"irracional"); diz ele que este mistério é o elemento básico de todas as
religiões, e a isso chamou o numinoso, utilizando o termo "numen" para
se referir à deidade ou a Deus. O “mysterium tremendum et fascinosum de
Rudolph Otto é o sentido do absolutamente outro, ‘causa de tudo’ que
governa o mundo, e que o sujeito experimenta como uma presença
misteriosa e terrível. O numinoso tem um outro aspecto que co-existe com
o mysterium tremendum, o poder de fascinação. O numinoso fascina ou
aterra-nos com uma força irresistível. Otto chama a esta qualidade do
numinoso o mysterium fascinosum. No seu ponto mais intenso, este
fascínio torna-se "exuberante" e transforma-se no "momento" místico ou
directo, completo contacto com o numen, um estado que pouca gente
experimenta. Não há grupo humano que não produza a sua sacralidade. Esse
ponto de fuga que assegura simultaneamente a coesão e a perenidade é o
que se chama o sagrado. Lugares “emblemáticos” como monumentos, um muro,
um mausoléu, uma cripta são pontos de reunião e espaços circunscritos, à
parte. Porém, o sagrado não se refere à natureza, mas ao caos. O Grego
pensou os seus deuses, imortais-mortais, a partir da Beleza da natureza:
“O mundo está cheio de deuses”, dizia Tales. Mas o pensamento filosófico
do divino construiu-se contra os deuses antropomórficos, providenciais,
que os mortais invocam para suplicar e diante dos quais se ajoelham. Ora
o caos é o sagrado, é o atributo dos ventos, dos cavalos, dos homens e
das cidades, mas também das coisas tomadas no seu acmé, no instante
culminante da sua potência. O peixe que se debate fora de água na
extremidade da linha é sagrado (Ilíada XVI, 407). O raio é sagrado. O
numinoso aterroriza. O sagrado separa. No âmbito da cultura semita,
Isaías fala do Santo, e diante do Santo, o terror e o temor que
paralisam. Para Kierkegaard o religioso nasce numa aproximação
demoníaca. Tanto o religioso como o demoníaco nos situam face a face com
o tremendo. Este autor põe em paralelo a figura de Abraão, o cavaleiro
da fé e Tritão, uma figura que surge dos fundos abissais, e isto porque
a tentação demoníaca é encenada na tradição ocidental por relatos
perigosos de exploração marítima e por vezes de expedição na montanha. É
de resto no cenário do mar, que a Bíblia tem por perigoso e tenebroso,
que Jesus aparece como aquele a quem até o mar obedece. |
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K. Barth |
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Passemos a um texto
contrastivo com o de Torga: “O Céu e a terra” de K. Barth (12). Este
texto é um comentário do primeiro artigo do símbolo dos Apóstolos:
“Creio em Deus Pai todo poderoso, Criador do céu e da terra”. São os
dois últimos lexemas que Barth comenta. Se é um discurso de comentário,
transforma saber, é um texto didáctico: é um curso que Barth dá na
Universidade de Bonn no semestre de varão 1946. No discurso de Barth são
as operações persuasivas que ocupam mais espaço: “pensais que..mas eu
digo-vos que” que pressupõe um contrato fiduciário entre o enunciadfor e
os seus auditores-leitores. E uma injunção final: que os leitores se
deixem transformar num “todo” pelo saber produzido.
A criação tem apenas uma
finalidade: servir de teatro para a glória de Deus e “nós constituimos
pela nossa simples existência de criaturas, um sinal, uma demonstração e
uma promessa do destino final de toda a criação”.
Segmentemos o texto:
na sequência inicial: o
enunciador opõe dois programas cognitivos ou saberes: a doutrina cristã
da criação vs uma cosmologia ou imagem fundada na Escritura e o
Símbolo vs do mundo que resulta da reflexão humana.
Começo da explicação do
programa cognitivo positivo que inclui o céu, a terra e o homem.
A aliança: finalidade e
fundamento de criação Sequência conclusiva: resumo do saber produzido e
comunicação graças a este saber de um objecto-valor: a unidade-comunhão
da criatura e do Criador Vê-se nesta primeira sequência um sujeito
virtual (a Igreja, os cristãos) chamada a não se deixar desviar pelas
operações sedutoras do falso saber. È fora da esfera da reflexão humana,
das “concepções do mundo” que o sujeito cognitivo é convidado a adquirir
este saber. O discurso referencial (a Escritura, a fé) não serve para
validar o enunciado de estado: “o céu e a terra são o objecto da
doutrina cristã da criação”, mas a garantir a aquisição do verdadeiro
saber. A Weltanschauug pertence ao modo de produção do falso saber. “A
Bíblia não nos em parte alguma que devamos adoptar esta ou aquela
concepção do mundo”.
Assinalemos um primeiro
percurso figurativo de tipo cosmológico: “céu”, “terra”, “criação”,
“universo”, “mundo”. Um percurso de actividades noéticas que cobrem os
lexemas: “doutrina”, “sistema”, “pensamento”, etc. Uma primeira citação
de Génesis 1,1 lembra que o saber contido no Credo pressupõe conhecido o
relato da criação como querer e fazer de Deus. Uma segunda citação do
catecismo de Lutero lembra que o homem é no relato bíblico a figura
central. Uma pergunta: a descrição da criação que nos dá o Credo é uma
descrição adequada na medida em que o homem é aí omitido? O homem parece
omisso no símbolo, mas o céu e a terra são o seu quadro natural.
Barth retoma as
explicações do falso saber: o céu e a terra são apresentados como
autónomos enquanto a Escritura fala sempre do céu e da terra, logo do
homem também, no quadro duma relação com Deus. “O genitivo mostra que
não acreditamos , mas no Deus Criador”. O Credo fala do homem conforme à
Escritura. Uma primeira referência ao símbolo de Niceia-Constantinopla
permite a Barth separar o céu e a terra (céu = invisível vs terra =
visível). Uma segunda referência à Escritura desdobrada por uma
referência à “cosmologia antiga” permite introduzir uma nova disjunção:
céu físico, ainda visível – o firmamento ou a abóbada – e o “verdadeiro
céu”, que forma o trono de Deus, que escapa completamente à compreensão
do homem. Uma terceira disjunção: entre o céu invisívele e
incompreensível e a presença de Deus. O céu não é Deus. É um puro
mistério.
Em semiótica, o mistério
é a conjunção do ser e do não-parecer, não ao nível do dizer como
secreto, mas no plano do conhecer. Não se trata de uma operação de
veridicção, mas de estatuir sobre um objecto do saber (Deus) que como o
céu é incompreensível. A terra é descrita como mundo do compreensível
enquanto o céu era designado como mundo do mistério, o céu em relação
com Deus (alto) e a terra em relação com o homem (baixo). O homem está
situado no limite do céu e da terra. O poder do homem baseia-se num
saber: é capaz de compreender o seu meio natural. A aliança que precede
a criação no tempo) de Deus com o homem é como um querer de Deus que faz
do homem o sujeito potencial (virtual) do louvor. A criação é o sinal de
um desígnio eterno de Deus – um querer e poder-fazer de Deus. A criação
remete-nos assim para aquilo a que o enunciador chamou a aliança. Mas
mais do que a criação, é a criatura humana que é sinal da aliança
realizada de maneira perfeita em J. Cristo. A polaridade céu-terra
remete para uma polaridade mais fundamental que é Deus e o homem . O céu
e a terra são apenas o quadro em que o homem é investido por um
poder-ser e um poder-fazer: dar glória a Deus, viver em comunhão-unidade
com Ele. |
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Coda |
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Que distingue a filosofia da teologia?
Para Hugo de S. Victor a teologia é determinada por uma «voluntaria
certitudo», donde o que é importante é a voluntariedade da certeza, a um
nível superior à opinião, mas inferior à «ciência». Em suma, o objecto
da teologia são os «objecta fidei». Os teólogos não são intelectuais,
mas «magistrati della verità» (Emanuelle Coccia). A filosofia é surda à
presença das coisas (Serres, Statues) – à pedra a que Sísifo
constantemente sobe. James Lovelock (13) diz-nos de que modo a metáfora
de Gaia permite inverter a solução kantiana e pode permitir escutar o
apelo dos seres a que o moralismo nos ensinou a não ser sensível.
Se a teologia reivindica o domínio do homem sobre a
criação e a sua subordinação a um Criador, a ciência, varre da cena
qualquer transcendência, erguendo um pedestal ao cientista. A língua
latina chamava res, a coisa, donde nós retiramos a realidade, o objecto
do processo judicial ou a própria causa, de modo que, para os Antigos, o
acusado tinha o nome de reus porque os magistrados o citavam. Como se a
única realidade humana viesse dos tribunais. Como se a natureza fosse
apenas um palco e não um actor. A lei positiva proibe ou esconde a lei
natural. A pedra cai porque o preso caíu (Sísifo). Continuamos a
comportar-nos como “reis da criação”, rodeados de rituais de sagração
que hoje todo o poder exibe. O Reino e a Glóiria, de Giorgio Agamben,
sobre a genealogia do poder ajuda-nos a colocar uma questão de
peso: se o poder é, antes de mais, todo o governo, porque tem ele
necessidade da glória isto é desse aparelho do cerimonial e litúrgico
que o acompanha desde o começo? Afinal, o poder moderno não é apenas
“governo” mas também “glória”: as cerimónias, as liturgias e as
aclamações que consideramos como um resíduo do passado não deixam de
constituir a base do poder ocidental. A análise das aclamações
litúrgicas e dos símbolos cerimoniais do poder, do trono à coroa, da
púrpura aos fachos romanos, permite construir uma genealogia inédita que
esclarece a função do consenso e dos médias nas democracias modernas.
Aquilo que é hoje conhecido como
«sciences studies» modificaram seriamente a separação entre o
estritamente científico e factual e a moral, os factos e os valores.
Que distingue a ecologia da moral? Para nos tornarmos morais à maneira
dos modernos, temos de nos abrigar do mundo e olhar as coisas como um
espectáculo. Dizia-o Kant e repete-o Blumenberg. Não, a natureza não é
um espectáculo a ver de longe. É a surdez que se torna o sinal da
imoralidade. Lovelock ensina-nos uma outra perspectiva: ele não imagina
Gaia dotada de sensações nem a entende como um animal ou uma bactéria.
Gaia é uma metáfora: onde nos transporta ela? À questão política e moral
das relações mútuas de tamanho, de dependência e de responsabilidades
entre os humanos e o que os faz viver. Gaia não é um simples objecto nem
um simples organismo. Não podemos sair da metáfora: para não cair no «objectivismo»
ou no antropomorfismo. É preciso juntar políticos, cientistas,
ecologistas e moralistas para discutir a articulação dos nossos
diferentes apegos. Latour tem razão: «Nous ne voyons jamais que nous
mêmes, la parole des hommes débat indéfiniment du crime et du châtiment»
(14). Não temos que divinizar os astros para experimentar em nós essa
constrição essencial à nossa station terrestre, aos nossos desastres, ao
nosso sentimento do espaço em geral que é a abóbada celeste. O céu
abarca tudo: vê-nos nascer e morrer. Em último caso, vivemos todos sob o
olhar do céu. «Não há nem lugar, nem vazio, nem tempo fora dele»,
escrevia Aristóteles (15). Bem conclui Félix de Azúa quando escreve :
« La imposibilidad de vivir en la tierra amputrada de su cielo y de su
infierno aparece con cegadora claridad ; el espectáculo de estas
hormigas ebrias de petulancia. Cinismo y desolación es estimulante. Hoy
hay luna llena» (16). Porque não falar então do céu e da terra como se
de um ambo se fala? Porque não começar a falar de um novo iluminismo e
do conhecimento científico como valor cultural e civil? |
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Notas |
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[1] Emanuele Severino, Pensieri sul Cristianesimo,
BUR rizzoli Saggi, 2010, p. 104.
[2] Alessandro Carrera, La consistenza della luce. Il
pensiero della natura da Goethe a Calvino, Feltrinelli, Milano, 2010, p.
156.
[3] M. Merleau-Ponty, La Nature, Notes, Cours du
Collège de France, Paris, Seuil, 1994, p. 160.
[4] A. N. Whitehead, Le Concept de nature, Paris,
Vrin, 2006, p. 68.
[5] ibidem.
[6] Michel Weber, “La vie de la Nature selon le
dernier Whitehead” in Études philosophiques, Juillet 2006-3, Paris, PUF,
p. 397.
[7] «Miguel Torga: l'office pour «un dieu de terre»,
Fondation Caloust Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, Paris, 1984.
[8] Jacques Fontanille, Sémiotique et littérature,
Paris, puf, 1999, p. 166.
[9] Miguel Torga, O Senhor Ventura, Lisboa, Dom
Quixote, 2007.
[10] O Senhor Ventura, p. 124.
[11] G. Didi.Huberman, L’homme qui marchait dans la
couleur, Paris, Minuit, 2001, p. 33.
[12] Karl Barth “Esquisse d'une dogmatique: “le Ciel et la terre”,
Delachaux et Niestlé 1950, p. 56-61.
(13) James Lovelock, La revanche de
Gaïa: Pourquoi la Terre riposte-t-elle et comment pouvons-nous
encore sauver l'humanité? Paris, Flammarion, 2007
(14) Émile Hache et Bruno Latour,
Morale ou moralisme? Un exercice de sensibilisation», in Raisons
Politiques nº 34 mai 2009, pp. 143-166.
(15) Aristote, Du ciel I, 9, 279a, trad. P.
Moreaux, Paris, Les Belles Lettres 1965, p. 37.
(16)
Félix de Azúa, Salidas de tono. Cinquenta reflexiones de uno
ciudadano, Anagrama, 1996, p. 458.
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Bibliografia |
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Aristote, Du ciel I,
9, 279a, trad. P. Moreaux, Paris, Les Belles Lettres 1965.
A. N. Whitehead, Le
Concept de nature, Paris, Vrin, 2006.
D. Rel, II 1763-1993 –
J. Ries (dir.) Traité d’ anthropologie du sacré, Paris, 1992.
Émile Hache et Bruno
Latour, Morale ou moralisme? Un exercice de sensibilisation», in Raisons
Politiques nº 34 mai 2009.
Félix de Azúa, «Lo que
queda del cielo» in Salidas de tono. Cincuenta reflexiones de un
ciudadano Anagrama, 1996, p. 45
Emanuele Severino,
Pensieri sul Cristianesimo, BUR rizzoli Saggi, 2010.
Félix Duque, Filosofía
para el fin de los tiempos Akal, Nuestro Tiempo, 2000, p. 119.
Guido Ceronetti,
«Thérèse d’Avila entre ciel et terre» in Le lorgnon mélancolique, Albin
Michel, 1990 , p. 92.
Jacques Fontanille,
Sémiotique et littérature, Paris, puf, 199
Maurice Merleau-Ponty,
La Nature, Notes, Cours du Collège de France, Paris, Seuil, 1994
Michel Weber, “La vie
de la Nature selon le dernier Whitehead” in Études philosophiques,
Juillet 2006-3, Paris, PUF.
Miguel Torga, O Senhor
Ventura, Lisboa, Dom Quixote, 2007.
M. Régis Debray, Le
Monde des Religions mars-avril 2009. |
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José Augusto Mourão,op (Portugal)
Presidente do Instituto S. Tomás de Aquino,
promotor, com o CICTSUL e o TriploV, do colóquio internacional
«Discursos e Práticas Alquímicas».
E-mail: jam@triplov.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
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