REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

“Ler e escrever são os dois pólos necessários
da mais interactiva das artes humanas.”  Fernando Savater

 

Em 1962 Marshall McLhuan publicou aquela que talvez seja hoje a sua obra mais conhecida, The Gutemberg Galaxy. Nela, este estudioso canadiano defendeu que o desenvolvimento do alfabeto fonético e da impressão teve consequências dramáticas na história da Humanidade, pela destribalização que então se terá operado. Esta ‘Galáxia de Gutemberg’, como lhe chamou, teria enfim sido ultrapassada com o desenvolvimento dos modernos meios de comunicação electrónicos, surgindo então uma nova Galáxia, reconfigurada, que terá retribalizado a Humanidade, redimindo-a daquilo que teriam sido os excessos de um pensamento lógico linear característico da cultura do ‘homem tipográfico’. Estas alterações traduziram-se então na progressiva transformação do mundo numa ‘Aldeia Global’.

DIREÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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JOÃO GARÇÃO

 

A ESCRITA, A LEITURA

 

(Intervenção num Colóquio sobre Língua e Literatura Portuguesas, realizado na Biblioteca Municipal de Felgueiras)

 
 
 
 
 
 
 

       Quase meio século mais tarde, esta problemática da influência da oralidade, da escrita e do sentido da visão na transmissão de informação e na construção do Conhecimento tem adquirido uma especial importância. Na verdade, a Conquista do Imaginário, individual e colectivo, que se tem vindo a operar na sequência das mutações económicas implementadas nas últimas décadas, não poderia executar-se sem que os meios de comunicação de massas aqui desempenhassem um papel fundamental, disto resultando importantes consequências sócio-culturais a que a Escola, também ela, não consegue ser alheia.

     Assim, por exemplo, Giovanni Sartori afirma numa sua obra, com uma certa ironia dorida, que o Homo Sapiens está a ser substituído por um Homo Videns, chamando a atenção para o facto de a televisão ser um ‘instrumento antropogenético’, por gerar um novo tipo de ser humano: é que a televisão, afirma ele, é a primeira escola da criança – a escola divertida que precede a escola aborrecida, já que as crianças vêem televisão antes ainda de aprenderem a ler e a escrever, acabando depois por responder prioritariamente, quando adultos, a estímulos audio-visuais. A capacidade de abstracção e, logo, a capacidade de compreensão, encontrar-se-ão assim prejudicadas, no entender deste autor. Não sem razão, muito provavelmente, Ignacio Ramonet, director do Le Monde Diplomatique, afirma o seguinte: “ Como se oculta hoje a informação? Através de um aumento de informações”. A isto chama ele ‘censura democrática’, por oposição à tradicional censura autocrática.

     Na verdade, questionemo-nos: como é que hoje em dia lemos os jornais? Frequentemente, da mesma forma que vemos televisão - fazendo zapping - passando rapidamente uma vista de olhos pelos títulos e pelas fotografias e suas legendas, raramente nos detendo nalguma notícia para sobre ela nos debruçarmos com maior atenção. Estaremos, então, verdadeiramente informados sobre o mundo que nos rodeia? Compreendemos realmente o contexto em que vivemos? Reflectimos sobre a validade dos elementos estruturantes deste mundo e das nossas vivências?...

    Evidentemente que a tendência uniformizadora que desta maneira se vai operando no espírito dos indivíduos acaba por se traduzir, igualmente, na simplificação das estruturas e das formas estéticas vigentes. Assistimos, assim, à significativa proliferação de obras daquilo a que já se denominou como ‘Literatura Light’, cujos autores poderão ter assegurados nada mais do que meia dúzia de anos de imortalidade, é um facto, mas que, para tédio e exasperação dos mais argutos, são, mesmo que momentaneamente, publicitados como escritores importantes, quando na realidade mais não fazem do que simplificar ideias e sentimentos, para gáudio dos incautos pouco habituados às tarefas da leitura e ao contacto com tonalidades mais ricas, mas também mais complexas e, logo, de menor aceitação imediata. Paralelamente, ocorre o fenómeno – que também não é novo – de se operar um deliberado processo de esquecimento de certos autores e de determinadas obras.

     A divulgação destas formas de superficialidade não tem a ver, obviamente, com a perspectiva de Ortega y Gasset segundo a qual a palavra ‘alegria’ talvez provenha de ‘aligeirar’ – segundo ele, estar alegre é uma leveza, conforme referiu - mas sobretudo para enfatizar que o Real não é algo que deve esmagar o ser humano. Ora, o que agora parece suceder, num momento da história do mundo ocidentalizado em que o culto da felicidade parece invadir o quotidiano dos indivíduos como se de um dever se tratasse, é que estes são deliberadamente fragilizados psicologicamente para se indisporem com as formas da sua própria existência, a fim de adquirirem os produtos que, em teoria, os reconciliarão consigo próprios e com os outros. Este facto nada tem a ver com felicidade, mas sim com uma superficial, histérica e comercial euforia.

     É que a verdadeira felicidade decorrerá, também, do facto de conseguirmos maravilhar-nos com as grandes obras do espírito humano, de forma inteligente e crítica – na Poesia como na Música, na Literatura e no Teatro como na própria produção científica (já Nietzsche dizia que a Ciência mais profunda tem de ser alegre, uma Gaia Ciência, como lhe chamou. A este propósito, recordemos a perspectiva de um dos maiores arautos do Pessimismo, Arthur Schopenhauer. A dado passo, disse este filósofo no seu Journal: ‘A vida oscila, como um pêndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento para o tédio’. Como admirarmo-nos, pois, que os estudantes da sua Universidade deixassem

a sua sala de aulas quase vazia para irem antes assistir às lições de Hegel, seu grande rival?...).

     Temos, assim, que ‘sentir alegria’ não é uma vulgaridade nem traduz superficialidade. A verdadeira felicidade provém sempre da inteligência em acção. Por esta razão, igualmente, nós, professores (e aqueles que o desejam ser), deveremos bater-nos continuamente contra os Schopenhauer de pacotilha que proclamam ser de difícil compreensão ou muito trabalhosas algumas das mais ricas obras do intelecto humano. Fazê-lo é procurarmos enriquecer a Vida daqueles que connosco contactam. E, como disse a certa altura Swann, personagem da magistral obra de Marcel Proust Em Busca do Tempo Perdido, “a que mais se deve ligar, senão à Vida, o único presente que o bom Deus nunca faz duas vezes?”.

 

 

 João Garção  (1968, Portalegre, Portugal).
Poeta, pintor, ensaísta, desportista e professor. Foi guarda-redes profissional na Académica de Coimbra. Licenciado em História da Arte e Mestre em História Contemporânea de Portugal pela Universidade coimbrã, foi depois presidente da Direcção e é actualmente professor do Instituto Superior de Ciências Educativas de Felgueiras.  Representado em diversas antologias poéticas/plásticas, proferiu palestras e publicou artigos sobre Educação, Arte, Ética e Política em jornais e revistas da especialidade no país e no estrangeiro.
  Especialista em teoria artística e arte aplicada. Vive em Guimarães.
Contacto: jfvgarcao@gmail.com

 

© Maria Estela Guedes
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