REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

1. Encontros obstinados estes. Durativos, como o é toda a obstinação. Mas que é um obstinado? O obstinado é aquele que continua a fazer o que faz mesmo quando tudo parece demonstrar que não o pode fazer. No plano cognitivo esta atitude exprime-se deste modo: “Não podemos mais fazer isso”, mas continuamos a fazê-lo, contra ventos e marés. A obstinação traduz-se modalmente assim: “não posso, mas faço-o”. Como se vê, a modalidade dominante é aqui a do querer. O obstinado sabe que, no plano cognitivo tal é impossível, sabe que no plano do desejo quer o impossível. Catarina de Sena não tinha outro verbo a que se arrimar: “Io voglio”.

2. Bom seria que fôssemos aquilo a que Didi-Huberman chama «uma comunidade do desejo, uma comunidade de luares emitidos» (Survivance des lucioles, 2009: 133), que impedisse a reconstituição da luz que nos cobre e cega com um «cosmos metafísico» ou de um «dogma teológico». Bom seria que fôssemos Laboureurs du Ciel (e da Terra). Contra a arrogância e o despotismo que hoje placidamente reinam. É difícil aceitar o despojamento de que Lao Tsé testemunha: “o sábio não tem ideias”. Ou a informação de Heraclito (Frammenti, nº 13): “Il sighore in cui oracoulo é quello in Delfi, né parla (légei) né cela (krúptei), ma invia segni (semaínei)”. Essa é a melhor atitude contra o autoritarismo marmóreo e fixista e a doxa.

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Maria Estela Guedes  
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A guerra dos paradigmas

José Augusto Mourão

(Universidade Nova de Lisboa/ISTA)

 

Conferência de abertura do Colóquio

IX COLÓQUIO INTERNACIONAL «DISCURSOS E PRÁTICAS ALQUÍMICAS
Benedita (Portugal). 29-30 de Maio de 2010

 
 
 
 
 
 
 

3. Temos sido acolhidos em vários sítios – de Lisboa a Odivelas e a Lamego, de Guimarães a Mafra. Desta vez a anfitriã deste encontro é a Benedita, a que chegamos pela mão da Isabel, a mais entusiasta de nós, a mais hospitaleira, que está por trás da organização do nosso encontro. Obrigado.  Também aos companheiros de estrada que aqui se juntaram a nós.

4. Nós vimos da guerra dos paradigmas, “aquisições geralmente reconhecidas que, por um certo período, fornecem um modelo de problemas e soluções aceitáveis a quem pratica um campo de investigação” (Khun). São também promessas de sucesso: as disciplinas “normais” são a condição fiduciária para realizar estas promessas feitas em nome da luz (das Luzes de todos os tempos). “Siamo di fronte a un nuovo paradigma della biologia, che no se limita a conoscere o a sfruttare la natura, ma che passa alla logica della manipolazione totale per essere padrona di una vida costruita dall'uomo in modo artificiale” (Roberto Colombo Avvenire, 22.05.02). Nós vimos de um paradigma em que reina a violência do logos sobre a phusis. Cf. http://www.labunt.it/ferraris.

Não mudamos de Física (forma vs matéria). Até a Física chineza, baseada na energia, na travessia, no sopro, no insaturado, se está a converter à Física ocidental. A violência da publicidade, que é ainda a violência do logos, expressa neste slogan: "I shop therefore I am" está a apoderar-se do disponível figurativo da libido, transformando-a em pulsão, satisfação e sucesso. (J. Cl- Coquet, Phusis et Logos, 2007, François Jullien, La grande image n'a pas de forme, 2003; Bernard Stiegler, 2019). O sonho da modernidade ideológica traz consigo a violência do século XIX … A razão é a potência da interrogação e da descoberta, mas também do “estupor” de Schelling: reconhecer os próprios limites é o fármaco importante contra a ideologia (Bruno Forte (Arcebispo de Chieti-Vasto, Avvenire, 22.05.02).

5. A guerra vem de longe. É conveniente saber contra as Luzes e os valeurs universais que  regem ainda as sociedades democráticas, ergue-se, do século XVIII até hoje, uma outra tradição. Esta modernidade quere-se alternativa e leva à guerra graças a uma argumentação que se tornou coerente pelo facto de que todos os seus partidários se lêem uns aos outros com atenção e constituem o seu corpus. Taine escreve sobre Burke e Carlyle, Meinecke sobre Burke e Herder, que, para Renan, é o «pensador-rei», Maistre segue Burke e é seguido por Maurras, Sorel ataca as Luzesm com uma sanha igual à de Maurras. Ao desenvolver o pensamento de Herder, Spengler forja o conceito da impermeabilidade das culturas; prosseguido as análises Herder, Isaiah Berlin escreve sobre  Vico com um arrebatamento semelhante ao de Croce. Sofrendo a influência de   a Meinecke, il acrescenta na segunda metade do século XX um elo à cultura política das  anti-Luzes. Os males contra os quais  combateram as Luzes  são de todas as épocas. (Cf. Zeev Sternhell, Les anti-Lumières. Une tradition du XVIIIe siècle à la guerre froide, Collection Folio histoire (No 176) (2010), Gallimard).

6. Interessante que um homem como Jean Petitot, um dos maiores filósofos das ciências vivo, acabe de publicar um livro que tem este título: Per un nuovo illuminismo. Porque é preciso hoje um novo iluminismo para a consciência científica? Para propor a consciência científica não só como valor cultural, mas também como valor cívico. Um novo iluminismo é inseparável de uma filosofia “político-civil”. A questão permance: como delinear a relação entre saber e dever, técnica e humanismo?

7. É preciso destronar a concepção paradigmaticamente metafísica desde Platão, a que proclama que o espaço e a encenação são uma questão de visão, do olho, retinal ou mental, questão de pura opticalidade, passiva, receptiva, transparente e objectivante, opondo-lhe a alternativa da espacialização háptica (H. Parret, «Spatialiser haptiquemente: de Deleuze à Riegl, et de Riegl à Herder» NAS, 2010). Helène Cixoux exprime admiravelmente o cenário em que  se trava a guerra do logos: «Oui il y a une tête qu’il faut perdre, la tête qui sait c’est-à-dire qui croit savoir, trop vite, celle que Proust dénonce et fuit, cette tête à intelligence qui empêche la sensation de trouver son nom et les arbres aux tendres bras tendus en supplication de ressusciter. Car ce sont ceux qui croient savoir qui sont les vrais crédules, les croyants, les arrivés, les immobiles. Alors que ceux qui sont en promenade et ne savent pas, et sont tentés par les sirènes de l’oubli et de la mémoire, et scrutent le morceau de rideau vert tendu devant l’écran de verre brisé en se demandant ce qui leur arrive, ceux-là approchent du point d’apocalypse. Une ivresse leur souffle qu’elle va avoir lieu, elle va avoir lieu... Les temps sont proches. Voici: les prisons s’écroulent. Les grilles ouvrent grand leurs barreaux.» (Héléne Cixous, Philippines, 2009, p. 84.).  

8. O nosso planeta está sujeito não só ao aquecimento atmosférico, mas também ao aquecimento semântico. Por alguma razão se fala de poluição semiótica. A globalização não é uniforme. Nos seus efeitos, sempre locais, está provocando tanta modernidade reflexiva quantas as transformações na ecologia dos signos e das linguagens. Paolo Fabbri fala de uma heteroglossia plural mediada pelos mediascapes da nova tecnologia da informação. Na sociedade do conhecimento, onde a termodinâmica da força foi substituída pela gramática da informação, as linguagens do “multiverso semiotico” (Sloterdijk) com os seus predicados da realidade e dos valores, as suas tácticas de enunciação e pontos de vista, apresentam um novo papel “mediante”.

9. Vamos continuar, obstinadamente, a pensar o discurso (logos) e as práticas, sem as guerras de “alecrim e manjerona” que nos habituaram à mão divisão das ciências da natureza e do espírito. Vamos continuar, obstinadamente a encontrar-nos. Para testemunhar da força do impossível contra o necessário.    

 

 

 

José Augusto Mourão,op (Portugal)
Presidente do Instituto S. Tomás de Aquino, promotor, com o CICTSUL e o TriploV, do colóquio internacional «Discursos e Práticas Alquímicas».
E-mail: jam@triplov.com

 

 

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