|
A insegurança
estrutural em que nos encontramos torna-nos mais conscientes para a
nossa situação de impotência. A vontade quer-nos a caminho, a caminho do
Sol, contra a rotina do dia a dia, à semelhança do tubérculo que estende
o botão na procura da luz do Sol. Toda a natureza se encontra irmanada,
a caminho, na consciência de que quem para morre, tal como a água que
para apodrece, reduzindo-se a húmus para os outros. Trata-se de andar,
por vezes, de seguir o impulso do movimento, como o Hamster na sua roda.
“Tudo flui”.
Poder é a força do
embrião que, na sua vontade de encontrar o sol, move o que lhe oferece
resistência, do caminho. Poder participa da realidade ‘instintiva’ do
embrião na procura do chão através da gravidade e no erguer do tronco na
procura do Sol. Na definição da própria identidade está a vontade de
Sol, de saber, de verdade, de sexualidade, de transcendência. Não só é
tendência e deslocação mas também sentido. O ambiente oferece-lhe
resistência o que o obriga a uma certa violência e a entrar numa relação
interactiva. A vontade do poder está implícita no desejo da própria
vantagem (realização), da subsistência. Potência e impotência andam
juntos.
Contra a inércia,
contra a entropia surge uma vontade consciente ou inconsciente que
resiste à apatia/letargia e desencadeia também o agir do outro. A
cultura, os estados, a família surgiram de vontades contra o clima,
contra o ambiente, contra a resignação individual… As relações de
poder institucionalizam-se e expressam-se em diferentes modelos de
ordens sociais ao longo dos tempos (chefes de tribo, reis, presidentes,
imperadores, papas). Cada conglomerado social, com os seus biótopos
naturais, elabora as suas normas mais ou menos elementares que
possibilitam uma relação normal e habitual, com maior ou menor
tolerância e capacidade para a iniciativa individual/grupal numa
tendência de identificação.
Cada época tem a
sua cor local e a sua expressão de poder que condiciona as
consciências individuais, seus anseios, satisfações e insatisfações.
Cada pessoa nasce numa situação de relação com autoridades, leis,
costumes, opinião pública, ideais circundantes, procurando orientar-se e
afirmar-se nela e através dela. Vive embebida na norma que o hábito
torna normal e evidente num determinado espaço e tempo (biótopo).
Adapta-se a esta prisão de mimetismo, do habitual/moda, justificando-a
inconscientemente com a necessidade de justificar a sua existência
através dum olhar crítico, pela janela do passado ou do futuro. Uma
vontade de ser e aparecer afirma-se também contra o caos, contra a
inércia do habitual no sentido aparentemente “futuro”, dado pela
resistência a tradições ou a novos valores.
A rotina poupa-nos
força; é como que o ponto morto entre inspiração e expiração. Nesse
ponto se descansa mas apenas para ganhar forças para uma nova caminhada.
Tudo tem um ritmo com uma orientação não explícita. As normas e as
instituições são as saias da mãe a que o bebé se agarra para se erguer.
Por sua vez, a tendência do erguer-se legitima o portador das saias ao
exercício da autoridade e até ao abuso do poder contra aquele que as não
deixa ou se contenta em continuar gatinhando. No caos dos elementos está
presente uma tendência ordeira que possibilita a convivência dos
indivíduos no respeito mútuo e pressupõe uma ordem de espiral
ascendente. Naturalmente que o desenvolvimento no sentido duma estrutura
superior subentende um novo momento de repouso, de caos que
possibilita a revolução de alguns contra a normalidade.
O exagero do poder
institucionalizado, a sua violência, cria, por sua vez, potencialidades
e fomenta a capacidade criativa nos indivíduos, num movimento espiral
ascendente de acção-reacção-acção. A actividade da liberdade, que
pressupõe a capacidade de dizer sim e de dizer não, é naturalmente
condicionada pela formação e informação. A capacidade de reflectir e de
descobrir a normalidade distingue-nos do mundo animal e vegetal que
permanece encerrado no ciclo vital, num repetir contínuo à maneira das
estações do ano. Os nossos hábitos são formados na geografia das
estruturas institucionais e no tempo das expressões sociais. O Sol
permanece sempre o mesmo, a terra e o tempo também, o que se muda
sociológica e individualmente são as estações e nós com elas, em
contínuo fluir. A rotina do poder e o poder da rotina são apenas
condicionadores recíprocos possibilitadores de ciclones e anticiclones,
de Verão e de Inverno. A regularidade das estações traz com elas o
elemento revolucionário, apenas momentâneo na preparação da próxima
estação. (Os revolucionários que tivemos até hoje, com a excepção do
Mestre da Galileia não passaram de árvores de folha caduca que se
alimentaram do humos da carência e da ignorância do próximo.).
Temos o
pretensiosismo de contradizer o Inverno com se o progresso não fosse
apenas o passado visto da perspectiva dum outro momento (estação),
em diferido. Todos nós procuramos segurança e orientação (ordem social)
uns olhando mais para o retrovisor e outros fixando-se mais no sentido
do pára-brisas, não notando porém o que se encontra para lá do
retrovisor e do pára-brisas. Vivemos da luta contra a vontade
alienadora do passado ou contra a vontade alienante do futuro
tornando-nos assim incapacitados para reconhecer a realidade para além
da perspectiva do móvel; sim porque a realidade é aperspectiva.
Abdicamos da capacidade de nos transformar transformando e fixamo-nos
apenas numa dinâmica do poder do passado e do poder do futuro numa linha
de tempo linear ou cíclico.
Uma identidade
aberta que transcenda os condicionantes rotineiros, pode abrir uma
brecha na rotina através da reflexão ou de contradição, uma brecha para
lá do retrovisor e do pára-brisas que conduza a uma nova identidade na
complementaridade.
É natural que as
diferentes estruturas de personalidades (‘boas/más’) e a sua reacção em
diferentes situações não são moralmente determináveis, a nível
científico; de facto personalidades mais positivas podem reagir como as
mais negativas; há momentos de dissonância em toda a pessoa (“pecado
original”). É difícil ter-se uma imagem realista das condições de origem
do bem e do mal. Daqui a dificuldade da adequação de castigo e a questão
da liberdade ou determinismo de comportamentos e a consequente
dificuldade de julgar. O Homem é um ser em processo entre natura e
cultura e o poder uma sua constante.
As instituições
domesticam o poder ou deveriam domesticá-lo contra toda a prepotência
interna e externa.
O abuso dos chefes tribais, as guerras civis foram evitadas com a
instituição do monopólio do poder do Estado. A justiça passou do
foro privado para o público. As pessoas não são santas nem anjos
precisam de controlo e de instituições com a divisão de poderes. O
problema mais que nas instituições está na falta de moralidade do Estado
e dos seus representantes. Estes, alheios à honra e à dignidade humana,
conseguem defraudar a república instaurando nela as suas coutadas. É um
dado científico que o dinheiro e o poder em regra corrompem. O Estado
tem instâncias de controlo dos poderosos mas estas não funcionam. O
problema maior está no facto de serem os poderosos os membros das
instâncias de controlo!
O sentido do
estado vem da necessidade do povo se organizar num determinado espaço
para manter a justiça e defender-se de agressores. Para Blaise Pascal
”a justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica”.
Uma solução de conflitos, a um nível de justiça equitativa, precisa dum
espaço também para a impotência política, para aqueles que não têm voz.
A impotência da justiça é a oportunidade do mais forte.
Platão desenvolve
a teoria da justiça contra a alegação sofista do direito do mais
forte. Poder e vontade de viver andam juntos. Platão apela para o
domínio do corpo (paixões) através da alma (virtudes). Thomas Hobbes vê
na condição humana o seu ser de lobo contra os outros (Homo homini lupus!).
Segundo ele, este só pode ser dominado pela razão e através dum Estado
poderoso. Com a criação da instituição a legitimação do poder não
fica abandonada às forças da natureza, ao mais forte. A legitimação do
poder através de Deus ou do povo é organizada em regras do poder
estatal. Aqui o direito do mais forte ou do grupo é contrabalançado com
o direito do indivíduo, com o direito privado. O indivíduo abdica do
poder de fazer justiça pelas próprias mãos outorgando o poder individual
no Estado. O Estado, em contrapartida, promete garantir o exercício da
liberdade a todos. O abuso do poder por parte dos governantes e seus
iguais deslegitima-os levando o cidadão à desobediência cívica e à
formação de grupos guerrilha, como era o caso antes do estado de
direito, a uma regressão aos tempos bárbaros. Para Aristóteles o Homem é
o zoon politikon. Violência acontece onde não há relação, onde não
acontece reconhecimento.
Rousseau contradiz
Hobbes afirmando que o Homem é, por natureza, bom, e que a sociedade é
que o estraga.
Esta visão romântica tem um sentido apenas corrector da redução do homem
a lobo. De facto uma cidadania ovina continua a desconhecer a realidade
do cordeiro e do lobo no ribeiro do Estado.
Cooperação é
também uma estratégia da sobrevivência e não apenas a lei da selecção
natural como queria erradamente o darwinismo social. Até as plantas
mostram uma certa sociabilidade na distribuição das raízes no solo.
Afirmação, resistência e cooperação fazem parte da mesma realidade. Sem
a aspiração para a luz, sem o poder não haveria acção. A experiência
mostra-nos violência e poder, numa relação ambivalente. No poder está o
reconhecimento do outro e a consciência do nós. Daí a necessidade de
reconhecer poder ao outro, seja ele embora o mais pequeno. Uma árvore
frondosa deve ser consciente da sombra que faz aos arbustos que impede
crescer debaixo dela. Uma república adulta terá de reconhecer a
realidade dos vários biótopos que tem capacitando-os para agir e não só
para reagir. Aos seus representantes não chega a legitimação exterior
através dos votos, eles terão de ser modelos íntegros de ética aplicada.
A crise de hoje tem também a ver com uma mentalidade parasita de
adaptados sem personalidades exemplares. O sistema não suporta
personalidades e vive duma mediania fomentadora de oportunistas espertos
e não de inteligências.
Há um abismo entre
um discurso fundamental e um discurso situacional, moral prático. Ética
e política aplicadas encontram-se muito distantes daquele. O direito
deveria estar ao serviço do bem-comum e limitar o poder. “A
confiança é boa mas o controlo é melhor”. O poder corrompe porque quanto
mais se tem mais se quer ter. Urge distribuir o poder porque poder e
dinheiro em demasia estragam o carácter. Actualmente, na Europa o
poder político e jurídico não tem o poder de limitar os poderosos;
estes apoderaram-se das instituições e adaptaram-nas ao seu formato; as
nações encontram-se, por isso, a caminho do desastre. Os políticos com
os poderosos não podem solucionar o problema porque são parte dele.
Apesar da situação
crítica em que nos encontramos, se não houvesse instituições não haveria
continuidade; elas são como que a estrada onde o móvel (indivíduo e
cultura) passa. A instituição global mais antiga da humanidade, a Igreja
Católica, é perita em preservar a memória e pretende englobar o tempo
linear e o tempo cíclico, o espaço e o tempo, a imanência e a
transcendência como prevê a fórmula da trindade. O seu problema está
sempre na resistência que oferece a um presente com as suas certezas de
dia a dia. Sem instituição não haveria memória e deixaria de haver a
transmissão do facho cultural duma geração à outra. A percepção do
presente só é possível no âmbito de percepção do passado e do futuro sem
descurar a realidade em que assenta a paisagem. A instituição, tal
como o poder devem estar presentes na consciência quotidiana mas só em
segundo plano, doutro modo tornam-se em ameaça à liberdade do membro.
A presença do poder (instituição / pessoa) deve ser discreta e nunca
tornar marginal a presença do indivíduo. O poder como o indivíduo
encontram-se numa relação mútua de serviço à comunidade e seus valores.
A pessoa é a alma da instituição.
O indivíduo só o é
no e com o grupo, precisando de quem o represente numa ordem de valores
e interesses comuns. Em si o indivíduo não deveria estar acima do grupo
nem vice-versa, como podemos ver na fórmula trinitária de 3=1. O
Homem não é “a medida de todas as coisas” como queria Protágoras. O
Homem só é todo com todas as coisas.
A complexidade
social aliada à velocidade duma vida acelerada provoca nos governados e
governantes incapacidades de diálogo fomentando no povo uma consciência
saudosista retrógrada e na política um activismo progressista leviano. A
contínua mudança não permite a reflexão da experiência feita. As
mudanças das condições sociais dão-se tão rapidamente que impedem a
responsabilidade política, social e individual. Uma luta pela
imposição de interesses específicos distrai a nação duma ocupação
objectiva e desperdiçam-se as energias em discussões estéreis pelo
poder. O sucesso de uns não pode acontecer à custa dos outros, como é
costume. Respeito e reconhecimento de parte a parte; um estado
paternalista não possibilita uma relação equilibrada entre os cidadãos.
Para uma relação integral do Homem e da sociedade não chega já o diálogo
é necessária uma ortopraxia do triálogo numa relação de união eu-tu-nós!
Nesta realidade nova, ninguém é igual ao outro mas torna-se através do
outro. |