REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2010 | Número 05

 

Um dia
O capitão Pedro Teixeira com 1000 canoas  
entrou águas-arriba no Amazonas
acordando aquela imensidão sem dono
(Poema – Raul Bopp)
 

1 - A Inteligência simbólica da Natureza

No corrente ano de 2010, celebra-se, por Declaração da Assembleia Geral das Nações Unidas, “O Ano Internacional da Biodiversidade”. Visa esta celebração avivar em cada um de nós a obrigação que é de todos de conservar o mundo vivo que nos rodeia. Dia a dia, estamos a perder a biodiversidade do mundo em que vivemos ao explorarmos desenfreadamente os recursos da natureza de um modo que não garante os seus ecossistemas e a necessária renovação das espécies (1). Diariamente, o nosso procedimento está a pôr a Terra em perigo, arriscando a própria quietude do Céu, sem nos convencermos verdadeiramente de que de nada nos serve “salvar a alma se acabarmos por perder a Terra”, como nos lembra Bruno Latour no Guião usado para o presente Colóquio “Discursos e Práticas Alquímicas”.

DIRECÇÃO

 
Maria Estela Guedes  
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A.M.Amorim da Costa

Chamamentos da Amazónia,

a Terra Sem Mal, as Amazonas,

a Antropofagia

 

Ano Internacional da Biodiversidade

IX COLÓQUIO INTERNACIONAL «DISCURSOS E PRÁTICAS ALQUÍMICAS»
Benedita (Portugal). 29-30 de Maio de 2010

 
 
 
 
 
 
 

De há muito considerada um dos pontos nevrálgicos da vida na Terra, com a maior concentração de água doce e a mais importante floresta tropical, sobre a Amazónia se concentram os olhares atentos e as preocupações mais genuínas de quantos querem acorrer ao apelo “salvemos o planeta Terra”, salvemos a Terra do perigo de extinção que a ameaça.

Sob o foco desses olhares, a terra das Amazonas, a Amazónia é, muito mais que um mito, um símbolo. O mito das mulheres guerreiras que habitavam essa floresta tropical e lhe deram o nome, as Icamiabas, esfuma-se na lenda da tribo de mulheres que em 1541, atacou as tropas de Francisco Orellana, quando chegaram ao Mar Dulce, após terem descido o rio Napo, e que Frei Gaspar de Carvajal, o cronista da expedição, descreve como “mulheres sem peito, guerreiras, que não aceitavam homem no seu habitat, muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido, entrançado e enrolado na cabeça, muito membrudas, sempre nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo tanta guerra como dez índios". Neste seu relato, Carvajal refere que embora tivessem conseguido abater alguns índios que eram comandados por essas mulheres e até algumas delas, viram-se obrigados a fugir, levando consigo apenas um índio. Este, mais tarde, ao ser interrogado, declarou pertencer a uma tribo cujo chefe, senhor de toda a área (o ataque ocorrera na foz do Rio Nhamundá), era súbdito das mulheres que residiam no interior. Na qualidade de súbditos, obedeciam e pagavam tributos às mulheres guerreiras, que eram acompanhadas pelo chefe Conhori. E respondendo a várias perguntas do comandante, disse que essas mulheres não eram casadas e que sabia existir setenta aldeias delas. Descreveu as casas em que moravam como sendo de pedra e com portas e que as aldeias delas eram bem vigiadas. Disse ainda que elas pariam mesmo sem ser casadas porque, quando tinham desejo, levavam os homens de tribos vizinhas à força, ficando com eles até emprenharem. Quando tinham a criança, se homem, entregavam-no ao pai para que o criasse; se este o não aceitasse, era morto; com elas ficavam apenas as meninas que eram educadas conforme as suas tradições guerreiras. Descreveu ainda os seus hábitos e as suas riquezas, dizendo que elas possuíam muito ouro e prata (2). 

Terra das amazonas, a Amazónia é “inteligência simbólica da Natureza” e símbolo da própria biodiversidade. Este concretiza-se no dia a dia, na riqueza única do planeta, traduzida na maravilhosa diversidade de todas as espécies vegetais e animais que nela se encontram, num infindável número de peixes e anfíbios, aves e mamíferos, vertebrados e invertebrados, árvores de grande porte, arbustos, líquenes e musgos.

O futuro da Terra passa pela sobrevivência deste símbolo. Conservá-lo é manter o equilíbrio ecológico que vai permitindo a própria sobrevivência da biodiversidade que integramos. Ele é – como já foi considerado – “a menina dos olhos da Humanidade” que em nome do seu próprio bem-estar e da sua própria existência, a inteligência humana deveria respeitar como “um santuário intocável” contra o qual é pecado capital atentar. Porém, na nossa insanidade, tornados carrascos de nós mesmos, consideramo-lo “um mito romântico” e apodamos de líricos quem ouse defendê-lo. Já há até quem apregoe o seu fim até ao ano de 2050. Aqueles que consigam sobreviver até que esse infausto acontecimento caia sobre as suas cabeças, talvez se possam perguntar então, caso lhes reste lucidez bastante para o fazer: “porque não nos salvámos quando tivemos oportunidade?“ (3). 

Já se disse que o cheiro do mato da floresta amazónica lembra o começo do mundo. É o cheiro presente na sua biodiversidade, o cheiro que se exala da sua realidade como símbolo e pulmão vital do próprio planeta. No dia em que o perdermos, teremos perdido o próprio mito de que ele está prenhe, como lugar repleto de assombros e magia que o uso magico-medicinal dos muitos alucinógenos que no seu seio crescem, se alimentam e criam e que para nós constituem, a todo o momento, lancinante apelo de vida e transformação. O seu próprio nome é o seu primeiro elemento de magia que apela à nossa transformação alquímica do mesmo modo que o fazem muitos dos usos e costumes dos povos que lá vivem, e, sobretudo, muitas das suas crenças e práticas. Aqui evocaremos algumas como um chamamento que de lá nos chega a toda a hora e que é também ele, renovada fonte de vida.

  2. Três chamamentos da Amazónia numa leitura comum de alquimia
 

Acima referimos a exploração da Amazónia, a terra das Amazonas, sob o comando de Francisco Orellana (1490 - ca.1550), integrado na expedição realizada nos anos de 1540 - 1541 por Gonzalo Pizarro (1502-1548), meio irmão do conquistador do Império dos Incas, Francisco Pizarro (1476-1541), ao longo de todo o rio Napo, da nascente para jusante, desde os Andes até ao Mar Dulce. Deve-se, porém, ao explorador Português Pedro Teixeira Aguas Arribas (ca.1585-1641) o registo e a posse de mais de 62 por cento da Amazónia, incluindo a totalidade da bacia do rio Amazonas, para o reino de Portugal, durante a expedição que iniciou em Gurupá, a 28 de Outubro de 1637, tendo percorrido toda a bacia do grande rio até chegar à cidade de Quito (actual capital do Equador), terminada 26 meses depois, com chegada a Belém do Pará a 12 de Dezembro de 1639.

Pode dizer-se que esta expedição começou quando dois padres e quatro soldados espanhóis chegaram perdidos a Belém do Pará, com a novidade que o rio Amazonas era todo ele navegável. De posse desta preciosa informação, o Governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, pediu a Pedro Teixeira, seu capitão-mor e militar prestigiado, natural de Cantanhede, no distrito de Coimbra que emigrado para o Brasil em 1607, havia participado na fundação da cidade de Belém do Pará e se havia distinguido no combate aos holandeses, ingleses e franceses, para organizar a referida expedição.

Muito acarinhado pelos índios locais, os Tupinambás com quem mantinha a melhor das relações a ponto destes a ele se referirem como o “Curiua-Catu”, o Homem-Branco, e dominando bem a sua língua, o Tupi, Pedro Teixeira preparou aquilo que podemos considerar uma “Bandeira” constituída por 70 canoas, sendo 45 delas de grandes dimensões, com vinte remadores cada, 70 soldados portugueses e 1200 índios que levaram consigo as suas mulheres e filhos.

O relato do que aconteceu durante essa expedição foi feito por Frei Cristobal d´Acuña no seu livro Novo Descobrimento do Grande Rio Amazonas e a Viagem de Pedro Teixeira Águas Arribas (4)  e pelo próprio Pedro Teixeira no seu diário de bordo publicado em 1639, com o título Relazion del General Pedro Teixeira de el rio de las Amazonas para el Senhor Príncipe (5) (6-7).

Os índios de que Pedro Teixeira se fez acompanhar conheciam melhor que ninguém aquelas terras cujo reconhecimento e conquista para a coroa portuguesa a expedição se propunha fazer, bem como os povos que as habitavam. Mas havia neles uma motivação adicional e altamente motivante que os levava a terem-se prontificado com grande entusiasmo para integrarem a expedição: era a procura da Terra dos seus antepassados, a Terra sem Mal, que eles acreditavam estar localizada para os lados da nascente do Grande Rio, um território onde as pessoas não envelheciam.

 

2.1 – A busca da Terra sem Mal

 

No relato da sua expedição da bacia do Amazonas, Pedro Teixeira faz um levantamento geral da fauna, da flora, dos minérios e dos costumes que foi vendo no seu trajecto. Mas não reclama a descoberta da Terra sem Mal. Bem pelo contrário, anota que à medida que a expedição decorria e essa Terra não aparecia, os índios que a integravam foram ficando decepcionados e começaram a enfraquecer, sentindo que a viagem não era aquilo que pensavam (8).

Nem por isso a sua crença nessa Terra se apagou. Podia acontecer estarem a procurá-la no sítio errado. É que essa crença não era só deles; existia também entre outros povos que habitavam regiões não muito longínquas da sua, nas terras do Uruguai, do Paraguai, da Argentina e dos Estados do Sul do Brasil, nomeadamente entre os índios Guarani-Mbyá. Todavia, alguns destes outros povos procuravam a Terra sem Mal migrando em direcção ao mar e admitindo várias outras possibilidades para a sua localização: depois do mar, nas alturas celestes ou no centro da terra situado algures em terras do Paraguai (9-10).

A busca da Terra sem mal pelos povos de língua Tupi faz parte da história de um povo em busca da terra onde se fixou para sempre Maíra, depois de se ter incompatibilizado com seu irmão gémeo Zumé, quando viviam ainda num mundo onde só havia dia, com a noite adormecida no fundo das águas. Do ódio que incompatibilizou os dois irmãos nasceu a guerra incessante entre os descendentes de um e outro, os índios termiminós (os descendentes de Zumé) e os índios tupinambás (os descendentes de Maíra). Nela se encontraria a fonte da eterna juventude do próprio Maíra e de todos os seus descendentes que a ele se conseguissem juntar para celebrar a sua liberdade total; nela seria inesgotável a profusão de alimentos e de recursos em geral.

Nos versos recitados numa das muitas cerimónias com que era celebrado o ritual de santidade com que a procuravam, o seu chão é “chão de Bravos onde o rio empurra o mar; onde o pássaro é mais colorido; onde a chuva é mais molhada… O chão de Bravos onde o verde encontra o azul”.

Segundo a crença Guarani, ela seria “o dique do mar”, simultaneamente um obstáculo para atingir o território onde moram os seus antepassados e onde se não envelhece, e o local onde a terra inicialmente se formou.

Migrando em direcção ao mar, também os índios Guarani-Mbyá nunca encontraram a sua Terra sem Mal, como os Tupinambás a não encontraram migrando em direcção das nascentes do Grande Rio, o Amazonas. Nem por isso, algum dia puseram em causa a sua existência: ela era para eles o espaço sagrado em que viviam os seus antepassados, em que o tempo seria um também um tempo sagrado em eterna renovação, do qual ninguém conhece nem a origem, nem o fim. Uma espécie de paraíso, ela era para eles, na palavra de Jean de Léry, uma Terra sagrada que norteava a conduta de vida de todos eles no seio da tribo, buscando viver “dentro das normas consideradas certas que são as de matarem e comerem muitos inimigos”, para um dia irem também eles “para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com as almas de seus avós" (11).

Partindo das terras amazónicas, estes grupos empreenderam um enorme deslocamento populacional, expandindo o seu território e alcançando, na época da colonização europeia, uma verdadeira unidade nacional, com aldeias dispersas por todo o território brasileiro. Em 1557, Hans Staden descreveu-os como grupos que se caracterizavam por uma grande mobilidade, pelo seu carácter guerreiro, e exímios canoeiros que aproveitavam o curso dos maiores rios para as suas viagens pelo que eram também conhecidos como “Povo das Águas” (12).

Em 1549, o Padre Manuel da Nóbrega na descrição que fez de uma cerimónia a que os tupis chamavam “caraimonhaga” e que celebravam como um momento de santidade, mas que ele tinha como um fenómeno diabólico, referiu-se à Terra sem Mal como o vindouro "paraíso tupi". De facto, logo desde os primeiros contactos que os colonizadores do mundo Ocidental tiveram com índios da Amazónia e os ouviram  falar dessa Terra e dos rituais duma santidade imaculada que deviam ser cumpridos na sua procura, logo a associaram com o nunca encontrado Paraíso terrestre do povo bíblico. Para os místicos que procuram a transformação do Homem em Deus, acreditar na sua existência e partir à sua procura, é acreditar no estado inicial do começo do mundo em que vivemos, esse estado inicial da Terra em que segundo o registo da Tábua de Esmeralda, se cumpriu “o milagre da unidade”, esse estado da Terra em que, no princípio de todos os princípios, todas as coisas estiveram e vieram do uno por intrínseca adaptação, um estado em que “o que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo" (13) onde somente o dia existia e a noite jazia adormecida no fundo das águas.

Depois de chegados a terras brasileiras, os Jesuítas promoveram as suas missões pelas terras do interior, à busca dos povos índios para os integrar na Santa Igreja e na Coroa de Portugal, criando as famigeradas Reduções de evangelização dos índios. Às missões em Olinda e S.Luiz, com os Padres Fernando Pinto e Luís Figueira, seguiu-se a missão ao vastíssimo território do rio Amazonas. Nesta participou o Padre António Vieira.

No seu romance “O Sal da Terra”, Miguel Real (14), referindo-se à participação de Vieira nesta missão, sempre acompanhado do seu protegido e companheiro de infância, o Índio Tupi Mundé, encontramos pitorescas referências à Terra sem Mal, experienciadas nos contactos directos que teve com as diferentes tribos da região. Citamos, numa leitura salteada. Em 1656, a expedição penetrou na Serra de Ibiapaba. Na sua maravilhosa eloquência, Vieira deixou-nos as mais preciosas observações sobre os povos que aí encontrou (15). Destacamos as suas observações sobre o próprio rio das Amazonas e as línguas que na região se falavam e anotamos a grande importância com que se refere ao mito de Zumé, o Pai da Terra sem Mal que ouviu da boca de muitos. Compara o rio Amazonas a Babel pela muita variedade de línguas que ali havia, fazendo notar que “houve quem tivesse chamado ao rio das Amazonas o rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome Babel, como o de rio. Vem-lhe curto o nome de rio porque o rio das Amazonas da cidade de Belém para cima já lhe têm contado mais de três mil léguas e ainda se lhe não sabe o princípio. Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os portugueses lhe chamam Grão-Pará ou Maranhão, que tudo quer dizer mar e mar-grande. E vem-lhe curto também o nome Babel porque na Torre de Babel houve somente setenta e duas línguas e as que se falam nas terras do rio das Amazonas são tantas e tão diversas que se lhe não sabe o nome, nem o número" (16).

Confrontado com o mito de Zumé, Vieira não se cansou de afirmar que “o sangue e o suor dos Índios que habitavam essas terras eram o ouro e a prata do rio Amazonas” e , por isso mesmo, elas eram “as terras do nada onde se pode ter tudo”, porque o nada é o pouco, o pouco que é o suficiente”, “onde o pouco era muito e o muito era pouco”, “a terra sem proveito algum onde, por isso mesmo se pode ser feliz“, onde “o vizinho nunca ambicionará o que temos, porque mais não temos do que ele tem” e onde não deveria entrar quem trouxesse ódio em seu coração" (17).

Entre Cumã e Gurupi, no Estado do mesmo nome, descobriu Vieira uma aldeia reinol onde viviam os descendentes de alguns náufragos dos barcos de João de Barros, os Marques e os Martins, os povoadores do litoral de Belém. A eles se refere Vieira observando tratar-se de duas famílias naturais de Oleiros, perto de Castelo Branco, que “depois de secos e restaurados, saciada a fome com carne fresca de caranguejo, se tinham embrenhado no sertão junto com uma carrada de negros salva do mesmo naufrágio, presumindo que caminhavam para Sião e Catão de que tinham ouvido falar na caravela, ao tempo em que os Descobridores criam que a América era a Índia, e lá ao fundo, ao virar da esquina, gorada sempre por outra que se lhe seguia, estaria a cidade de Eldorado, visitada por Marco Polo”, com “telhados de ouro, varandas de prata e paredes de marfim”. Embrenhados na selva, aprendido o tupi dos índios que a habitava, perceberam que esta era a Terra sem Mal, “uma vasta campina, de milho e abóbora, abundante de fruta, muita mandioca, um vasto feijoal e terra prenhe de caça, atravessada por um ribeirão manso, onde se pescava à mão, onde os velhos morriam em paz e os seus antepassados tinham vivido felizes, sem outras tribos para guerrear”. Ela era a “Terra do Paraíso, como lhe chamavam os pajés (= os chefes religiosos), a Terra do Ouro, da Vida serena, onde sem cessar podiam tocar música, brincar com os filhos, assar peixe no espeto, bater o pilão, pintar a cabaça, cozer o pão de mandioca, adormecer na rede com mulher…, a Terra da Harmonia”14.

Os Marques e os Martins que a haviam fundado, deram a esta sua cidade o nome de Castelo Branco, a cidade da Metrópole de que provinham. Pela harmonia que nela reinava, pela organização social que nela existia, onde tudo era dividido equitativamente por todas as famílias, e em que ninguém se sentia menos nem mais que os outros, onde não eram precisos julgados pois nela não havia rixas, nem conflitos, ao visitá-la, Vieira considerou-a o primeiro povoado branco anunciador do Quinto Império, e também ele vislumbrou nela a Terra sem Mal dos Índios Tupis. A conselho do seu protegido Mundé, mandou que na portada de cada casa dessa cidade se gravassem as letras C.M.B., Christus Mansionem Beneductam, a mansão abençoada por Cristo, lembrando também que era a terra dos três Reis Magos (Caspar, de acordo com a grafia de Gaspar desses tempos, Melchior e Baltazar). A união das três raças do mundo, numa só (18).

Centro matricial do Quinto Império, este Castelo Branco era a cidade celebrada pelas Utopias dos séculos XVI e XVII, de Thomas Morus (19)  e Tommaso Campanela (19), com a grande diferença de ser uma cidade “com um lugar real” no mundo dos humanos, enquanto a cidade que Rafael Hitlodeu teve o privilégio e a dita de encontrar no novo mundo, descrita na obra de Thomas Morus, ou a Cidade do Sol descrita pelo almirante genovês na obra de Tommaso Campanela, são cidades “sem lugar”, no reino da utopia. Ela era para Vieira, a Cidade do Futuro.

Infelizmente, a crueldade da história diz-nos que poucos anos passados sobre os anos de terra sem males da Castelo Branco dos Marques e Martins em terras do Amazonas, os novos povoadores europeus estabelecidos nas suas vizinhanças, gananciosos e medíocres, escravizadores de índios, viessem a acusar o povo desta cidade como milenarista e herético, decretando a divisão das roças e terminassem com o sistema igualitário que na cidade reinava. O Governador do Estado, escutado o Conselho, ordenou que Castelo Branco do Maranhão fosse como todas as demais terras: tivesse meirinho, juiz, almoxarife, carcereiro, etc… Quando tal aconteceu, um grupo de resistente deixou a cidade, fez-se ao rio Amazonas, desembarcou na Ilha Joanes, dirigiu-se para o seu interior e nela criou um povoado com o nome de Salva Terra de Magos, onde tentara dar continuação ao espírito que os animava na sua original Castelo Branco, num apelo à união das raças figuradas pelo destino comum dos três Reis Magos (20).

No seu visionamento, a cidade de Castelo Branco das terras do Amazonas, era para o Padre António Vieira a figuração do Quinto Império entre os Tupis, e simultaneamente a figuração do Paraíso Cristão anunciado pelos missionários. Ao dominar cada vez mais as línguas dos índios Tupis, ele acreditava e julgava-se convicto de que muitas tribos tupis tinham incorporado o aparecimento dos sacerdotes jesuítas nas suas crenças ancestrais patentes na história que entre eles se contava sobre o “Pai-Zumé”, o grande chefe que em tempos idos passara pelo seu território. Nele efectuara Zumé inúmeros milagres e trouxera a prosperidade ao seu povo. Depois, partira, prometendo que voltaria um dia para levar definitivamente o povo Tupi para a Terra sem Mal. Para o Padre António Vieira, esta crença era não só a figuração do Quinto Império entre os Tupis, como também a figuração do Paraíso cristão anunciado pelos missionários. E mais: o mito de Zumé era para ele, António Vieira, a garantia da passagem pelas Índias Ocidentais do Apóstolo Tomé. Depois de ter evangelizado as Índias Orientais, S. Tomé teria atravessado o mar-oceano cavalgando uma onda gigante e permanente, ou voando nas asas de um anjo. Tupã, o deus em que os Tupis acreditavam, não seria senão uma reminiscência do verdadeiro deus cristão, o deus do Céu e do Trovão de que S. Tomé havia falado aos seus antepassados. E o espírito anham  de que falavam os mesmos Tupis, mais não seria que o demónio, a legião de espíritos malignos alojados nas entranhas da selva que perseguiam quantos nela se embrenhassem, únicos responsáveis dos males que lhes poderiam acontecer, uma perna partida, uma doença inesperada, uma seca passageira, uma zanga com os vizinhos…

Esta seria a origem única de qualquer mal que pudesse acontecer na terra em que viviam. Sem qualquer noção de pecado individual, nenhum dos males que pudesse acontecer na tribo seria devido a qualquer membro da mesma. Após a morte, todos eles seriam levados para a Terra onde viviam os seus antepassados, onde os espíritos maus não tinham qualquer possibilidade de acção e que seria, essa sim, a verdadeira Terra sem Mal (21).

 

2.2 – O mito das Amazonas

 

No relato da sua expedição da bacia do Amazonas, Pedro Teixeira refere que tanto na ida como na vinda da sua exploração nunca se cruzou com as amazonas descritas pelo Frei Gaspar Carvajal no relato que fez da expedição de Francisco de Orellana que atrás referimos. Não deixa, todavia, de anotar que lhe chegaram muitas notícias delas, indo ao ponto de dizer que os seus homens poderiam ter estado a “seis jornadas” do sítio em que elas se encontravam, constituído por 300 aldeias ou mais, com “quinhentos ou oitocentos casais” cada, num local em que se acabaria o uso das flechas furadas e perigosas” do tipo daquelas que eram usadas pelos povos com que se encontrara mais do sul”(22).

Quer dizer, embora se não tenha cruzado com as Amazonas, Pedro Teixeira não só não descarta a sua existência nas paragens por onde andou, como afirma acreditar que elas por ali existiam, acreditando ter estado muito perto do lugar onde viveriam. Deste modo, o Relato que faz da sua Expedição da Amazónia mantém vivo o destino desse “Mito Singular” que ao longo dos tempos, dominou o universo mitológico de gregos e romanos, donde terá espalhado para Oriente e Ocidente, para os povos do Norte e para os do Sul, por terras da Ásia e da África. Com a descoberta do Novo Mundo, depressa nele se implantou e radicou

Colombo, no regresso da sua primeira viagem às Américas, ao aportar a uma das ilhas das Caraíbas, diz ter sido atacado por uma tribo guerreira, que o recebeu com grande hostilidade. Sobre esse inesperado encontro escreveu a Luís de Santangel, homem de confiança dos Reis Católicos, nestes termos: «… é a primeira ilha que se encontra, para quem vai de Espanha rumo às Índias e onde não há nenhum homem. Estas mulheres não se ocupam de qualquer actividade feminina, só executam exercícios com o arco e flechas fabricados com canas e cobrem-se de lâminas de cobre que possuem em abundância». Por sua vez, o italiano Filipo Pigafetta (1491-1534), remetendo-se a um relato que lhe fizera um dos pilotos que acompanhou o navegador Fernão de Magalhães, refere a existência duma ilha só com mulheres, a ilha de Ocoloro, nas vizinhanças de Java (Ásia). Eram mulheres que se dedicavam à guerra e que «dando à luz algum filho, o matavam se fosse macho e o conservavam consigo só quando fosse mulher. E tão esquivas se mostravam à conversação amorosa que, se algum homem ousasse desembarcar na sua ilha, pelejavam por tirar-lhe a vida»(23).

No nosso mundo Ocidental, o primeiro relato deste mito aparece-nos num registo de Heródoto, subsequentemente também registado por Diodoro Sículo (II, 45.3), Estrabão (III.53.3) e Apolodoro (II.3.2). De acordo com a tradição referida por estes registos, dos usos e costumes destas mulheres guerreiras fazia parte a prática corrente e generalizada a mutilação do seio direito para não embaraçar o manejo que faziam do arco. Daí o seu nome de amazonas [do grego an (= não) e mazós (=seios)].

De acordo com esse relato, o início da sua história é situado na batalha de Termodonte, como no-lo diz a Professora Maria Helena Rocha Pereira no trabalho que já referenciamos: durante a batalha em causa, os Gregos saíram vitoriosos e conseguiram captar vivas algumas das mulheres guerreiras que contra eles se tinham batido, fazendo-as entrar nos seus navios para a exibirem e bem conhecer quando chegassem a suas casas. Pouco avisados e desprevenidos, já no mar alto, foram surpreendidos por um ataque surpresa com que elas os atacaram e dizimaram. Porém, ignorantes da arte de navegar, as guerreiras vitoriosas ficaram à mercê dos ventos e das ondas, tendo aportado, por acaso num sítio pertencente aos Citas, a quem começaram a saquear e a apoderar-se dos seus cavalos. Estes, desconhecedores de tal raça, dos seus trajes e língua, julgaram tratar-se de jovens imberbes que tentaram dominar travando com eles luta feroz. Só quando no fim do combate arrastaram consigo os cadáveres daquelas que tinham conseguido abater, verificaram tratar-se de mulheres: Em vez de tentarem dizimá-las por completo, enviaram alguns dos seus jovens acampar nas proximidades dos locais onde elas se refugiavam, com ordens expressas de as não molestarem em nada, na intenção de as conquistarem para a sua causa e com elas procriarem para que da “união com tão extraordinárias donzelas lhes nascesse descendência que a eles próprios engrandecesse”. Não conseguiram estabelecer relações permanente com elas, mas apenas algumas relações esporádicas, pois nenhuma delas aceitou deixar os seus acampamentos para ir viver com a família e nos acampamentos deles. Habituadas a ocuparem todo o seu tempo a lançarem setas e dardos, a montarem a cavalo e a fazer guerra a quantos tentassem intrometer-se nos seus acampamentos, tudo quanto conseguiram delas foi que fossem viver para longe da terra que haviam saqueado, conservando consigo apenas as filhas e entregando o filhos-rapazes  aos pais ou, se estes os não aceitassem, tirando-lhes a vida. E de futuro só aceitariam os contactos necessários para conservarem a espécie, com o mesmo compromisso quanto aos filhos-rapazes. E foi esta a história que delas se perpetuou. Os escultores e pintores imortalizaram-nas e o mais célebre conjunto escultórico é o friso do mausoléu de Halicarnasso onde são perpetuadas lutando contra Hércules (24).

Este “mito singular” no seio da Amazónia, com a importância acrescida de estar na origem do nome da região, remete-nos para a história dos exploradores da selva amazónica que nela se embrenharam, e muitos nela se perderam, que juntaram à aventura de autênticos argonautas seduzidos por velos de ouro que existiriam ao longo de todo o rio que a banhava como o referira, em 1542, Francisco Orellana que o descrevera como “um imenso rio num território povoado de Amazonas e regido por um grande príncipe que todas as manhãs era recoberto de pó de ouro”, a aventura de encantamento místico de cavaleiros andantes seduzidos por essas mulheres valentes, Formosas e fascinantes, as Amazonas.

Ao ouvirem falar da existência de mulheres guerreiras nos territórios cuja exploração e levantamento topográfico lhes fora pedido, não surpreende que os bandeirantes que se embrenharam na densa floresta da bacia do grande rio da selva amazónica, cheia de enigmas, magias e medos, partissem platonicamente fascinados pela imagem das mulheres guerreiras da Antiguidade Grega. Na selva cerrada, toda ela povoada de sombras e mistérios, de espíritos e duendes, o mito das Amazonas guiava-os e era por eles alimentado como um mito carregado de esoterismo. E é absolutamente natural que persista ainda hoje no seio dessa mesma selva o que nos permite invocá-lo aqui como mais um chamamento que da Amazónia e da cultura dos índios que a habitam nos chega, dia a dia.

Conhecidas também como as Icamiabas, na mitologia dos índios Tupinambás, estas mulheres guerreiras da selva amazónica eram as Cunha-teco-ima, as mulheres à margem da lei ou sem lei, o princípio maternal da natureza. Isoladas do contacto permanente com o sexo masculino, elas celebravam, em certas épocas do ano, as suas vitórias sobre o mesmo, reunidas junto do seu lago sagrado a que chamavam o “Yaci-Uarua”, o Espelho da Lua.  Durante a noite, com a lua a reflectir-se no espelho da água, mergulhavam num ritual de purificação e limpeza, para se tornarem deusas da Lua, clamando pela Grande Mãe das Pedras Verdes. Das mãos desta acabariam por receber a sua Pedra Verde que se tornaria nos seus amuletos vivos, o seu talismã propiciatório de protecção material e espiritual que pendurado ao pescoço, as acompanharia para toda a parte. Nele esculpiam estranhos símbolos e com ele se feriam para colherem gotas de sangue em que concretizariam seus desejos de vida e com que presenteariam aqueles que seriam os futuros pais de seus filhos. O seu grande poder estaria sempre associado às margens de um rio ou lago numa noite de lua cheia (25). Propiciatório de protecção material e espiritual, esse seu talismã torna-se também a fonte da sua força e da vida da sua própria comunidade. No dizer de Carvajal, cada uma delas “fazia tanta guerra como dez índios”. Por força desse mesmo talismã, ao saírem das águas do Espelho da Lua, continuando embora escondidas dos homens, cada uma delas, sem se haver tornado no Hermafrodita que carrega em si, num e mesmo ser, o princípio total da vida, simultaneamente princípio masculino e feminino, estava apta para forçar a conjugação necessária à sobrevivência do género. O Espelho da Lua dera-lhe o dom necessário para forçar a sua reportagem ao Sol vivificante.

Também aqui, ao assistirmos ao ritual das Icamiabas, as mulheres guerreiras da Amazónia nas águas do Espelho da Lua, podemos reviver a alquimia da Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto, explicitando um pouco mais a concretização do milagre da unidade de quando todas as coisas estavam no Uno de que nasceram por adaptação: o Sol é o seu pai; a Lua, a mãe; o vento trouxe-as no ventre; a Terra é a sua ama. Aqui está o pai de todo o telesma do mundo inteiro" (26).

 

2.3 – A antropofagia nas tribos de índios da Amazónia 

 

No relato da sua expedição da bacia do Amazonas, Pedro Teixeira ao referir-se aos costumes dos índios com que foi contactando refere-se, por mais de uma vez, às sua práticas antropófagas. Depois de terem passado num lugar a que deram o nome de Rio do Ouro por haver “nos seus habitantes grandes quantidades deste metal feitas em adornos que traziam nas orelhas e nos narizes”, chegaram à aldeia dos Omaguas que “usam as cabeças chatas; ocuparam o rio em longitude cerca de cem léguas e terão mais ou menos quatrocentas aldeias; é gente muito antropófaga, sendo suposto que todos os do rio o sejam e se comem uns aos outros…”(27).

Mais que pura carnificina e uma forma de degradação das gentes que a praticavam, a antropofagia de muitos destes índios da zona amazónica, era, na generalidade das situações, um ritual de apropriação de saber e de força, dois atributos de afirmação humana que ninguém se poderia arrogar por mera concessão hereditária. Era, como já acima o referimos citando Jean de Léry, o cumprimento das “normas consideradas certas, que são as de matarem e comerem muitos inimigo”(28). Assim o mostram muitas das práticas rituais que a acompanhava. Integrada num rito de santidade como o rito em que se alicerçava a sua procura da Terra sem Mal, para os índios Tupinambás, a antropofagia era também ela celebrada como um rito, conhecido como o rito Ibirapema. É pois redutor olhá-la apenas com os olhos da nossa cultura de Ocidentais confinada ao seu aspecto de canibalismo e selvajaria, com toda a crueldade que naturalmente lhe associamos. Sem dela fazer a mínima apologia, impõe-se olhá-la também no seu poder de transformação e regeneração do Homem pelo homem, na busca de novos poderes e maior aproximação ao poder do que está para além de si-mesmo, numa maior comunhão com aqueles que já partiram e se tornaram os senhores que do Além vão determinando o destino dos que por cá continuam.

Em tese de Mestrado defendida na Faculdade de Filosofia da Universidade de S.Paulo, em 1947, sobre A Organização Social dos Tupinambás, Floristan Fernandes descreve alguns dos aspectos rituais da antropofagia praticada por estes índios  (29).

Outro tanto o faz Alberto Mussa no seu livro Meu Destino é Ser Onça(30), retomando relatos do Frade André Thevet, de Hans Staden e do Padre Anchieta.

Aqui apontaremos alguns aspectos do rito que praticavam e que deixam claro que os Tupinambás não praticavam o canibalismo como mera forma de alimentação. De acordo com suas crenças, somente deviam ser comidos os guerreiros aprisionados em combate e que, na hora da morte, não se acovardassem. Depois da captura dos guerreiros que iriam ser comidos, deveria proceder-se a toda uma preparação dos que seriam executados para servirem de alimento humano. Esta preparação passava, muitas vezes e em muitos casos, pela obrigação de ser dada em casamento ao prisioneiro que ia ser executado, uma das jovens da aldeia. Só depois de ele ter consumado todo o rito matrimonial com ela poderia ser executado para ser comido. No primeiro dia de execução, os homens que participavam na cerimónia deveriam ter o corpo pintado com jenipapo e coberto de penas vermelhas. Um grupo de mulheres da tribo era escolhido para passar a noite ao lado da vítima, entoando gritos de vingança, ao mesmo tempo que a mulher dele (a mulher com quem vivia, caso tivesse sido possível capturá-la com ele, ou, então, a mulher que a própria tribo lhe dera depois de capturado) chorava e dele se despedia. Na execução, o matador deveria imitar o ataque de uma ave de rapina, acometendo sobre a vítima numa série de golpes até a derrubar. O último dos golpes, o fatal, deveria ser na nuca.

Só depois de morto, o corpo seria retalhado e comido pelos elementos da tribo. Ao executor não era dado o direito de comer qualquer porção do executado. Após a execução, ele deveria afastar-se e apresentar-se diante de toda a tribo só dias depois, após terminadas as cerimónias em que o executado tinha sido comido. Deveria apresentar-se com um novo nome e marcado com incisões feitas usando um dente de cotia, um roedor semelhante ao coelho, para não ser tido mais como um executor de morte, mas como um homem novo por cujo feito a aldeia como um todo recebera a coragem e a força do guerreiro canibalizado. Pelo inimigo que fora devorado na sequência da execução feita por um dos seus membros, a tribo libertara-se de mais uma força do mal que a ameaçava. Alimentar-se da carne dos seus inimigos apanhados nas guerras que a tribo com eles travava, em cerimónia que durava dias e envolvia toda a tribo, inclusive mulheres e crianças, era uma das maneiras mais honradas que os Tupinambás tinham de alcançar a Terra sem Mal. Como outros povos primitivos, os Tupinambás não desejavam a morte natural, mas antes uma morte ritual. Na antropofagia concretizavam esse seu desejo; a vingança do canibalismo sobre os seus adversários tornava sagrada a violência do homem contra o homem.

Na sua citada obra Organização Social dos Tupinambás, Floristan Fernandes realça o carácter de rito de eleição que a tribo atribuía aos actos de canibalismo que os seus membros praticavam. Eles escolhiam os seus líderes com base em requisitos bem claros, o primeiro dos quais era o poder da força. Ao bom guerreiro era dado poder de liderança. Em alguns casos, este poder poderia ser conquistado pelos pajés, os sábios, ou pelos homens mais velhos, isto é, num caso e noutro, por aqueles que tinham o saber, nunca por mera concessão hereditária, cabendo-lhes assegura a autoridade e o domínio sobre os demais, como requisitos necessários à sobrevivência quotidiana do grupo. Comer os guerreiros que conseguiam vencer era um meio de conquistarem esse mesmo poder. Preparando-se para puderem um dia vir a receber tal poder, desde meninos recebiam pequenos arcos e flechas, pois isso iria garantir que eles se tornassem bons guerreiros e caçadores. E na morte eram sepultados em posição fetal pois esta era, segundo as suas crenças, a melhor maneira de se alcançar a “terra sem males”.

 Todos sabemos que esta crença e atitude destes índios amazónicos relativamente à antropofagia não é caso único entre as muitas e muitas crenças do nosso mundo. E o misticismo que lhe subjaz não é, ainda hoje, caso único no número de instituições que temos como inaceitáveis. E não precisamos de ir muito longe. Olhando à nossa volta que outra leitura fazer na crença cristã, traduzida em alguns dos seus grupos mais numerosos, nomeadamente entre os Católicos que têm no sacramento da Eucaristia um dos seus ritos fundamentais, “do comer o pão e beber o vinho tornados o Corpo e Sangue de Cristo”, o Deus feito Homem? Nele têm o penhor da salvação, a transformação do Homem em Deus! E não ousamos rotular de antropófagos os crentes que convictamente praticam este rito! E lembramos aqui, uma vez mais, o Padre António Vieira.

Confrontado com o canibalismo do povo Tupi, Vieira ouvira várias justificações para a prática do mesmo. Diziam-lhe tratar-se de uma prática decorrente da sua actividade de caçadores: “caçar significava, não raro,que algum dos caçadores fosse ferido; a ferida gangrenava e a gangrena matava. Comia-se então a carne do inimigo, não deixando duplicar a hipótese dos ferimentos. O mesmo se aplicando no caso dos ferimentos sofridos durante as lutas com as tribos rivais: comia-se a carne do inimigo que já fora preso; dava força e conferia prestígio. Este era tão importante que na maioria das tribos, o jovem Tupi só podia escolher mulher depois de ter aprisionado um inimigo, fraco ou forte, não importava, como prova de ser já suficientemente corajoso para proteger a mulher e a tribo. Depois de o fazer, devia ostentar um dente do inimigo como pingente do colar, como sinal do seu feito. Em conversa com Mundé, o índio Tupi seu protegido e companheiro, Vieira dizia tratar-se de justificações que não faziam qualquer sentido. À queima-roupa, Mundé retorquiu-lhe: mas, padre Vieira, também o senhor come carne e bebe sangue humanos… Percebendo onde Munhé queria chegar, o padre Vieira, de imediato lhe respondeu: “a hóstia consagrada e o vinho abençoado são um milagre espiritual, não são corpo e sangue de homem, mas de Cristo, Filho de Deus, realidade transcendente, não física nem sensível”. Mais uma vez, é deliciosa a justificação que avançou para o que considerava a total disparidade entre o comer a carne de humanos e o comer da carne de Cristo no rito da Eucaristia: “é muito diferente; é como comer carne crua ou cozida; crua, somos bichos; cozida, somos homens. Com o pão da hóstia, de homens transfiguramo-nos em Deus; com a carne dos homens continuamos homens”(31).

 

3. Conclusão

 

Os muitos chamamentos que da Amazónia nos chegam, na voz das muitas lendas e mitos que a povoam dos quais os três que aqui referimos – a Terra-sem-mal, as Amazonas e a Antropofagia – não se esgotam em si próprios; são, sim, outras tantas possibilidades paradigmáticas para as ciências da Natureza e as relações humanas. Cada um deles pode e deve ser ouvido como uma vivência dessa escatologia ecológica de que nos fala o guião deste IX Encontro Internacional de Discursos e Práticas Alquímicas, referida como “discurso sobre o fim dos modos de vida antigos”. Ao invocá-los, impõe-se-nos tentar compreender melhor os tempos em que vivemos e preparar melhor o futuro que se inicia em cada instante que vivemos, conscientes – como o refere o mesmo Guião -  de que “o fim dos tempos somos nós que o impomos a nós mesmos, nos papéis de vítima inocente, pecador malfeitor ou anjo exterminador”.

No confronto natureza-cultura que neles perpassa, ressalta a necessidade de reinventarmos constantemente a condição humana, a verdadeira fonte da cultura e a matriz geradora do progresso e dum desenvolvimento plasmado nos processos da natureza. Neles perpassa o carácter vivo da Terra. A vida pulula e jorra por todos os cantos da vasta selva amazónica, nos muitos milhares de espécies de animais e plantas, muitas das quais ainda não conseguimos identificar, e muitas das quais poderemos nunca ter a ocasião de identificar porque corremos o risco de serem eliminadas antes que tenhamos a oportunidade de o fazer.

A reinvenção dos mitos da imortalidade e do mundo-paraíso que perpassa em todos esses elementos leva-nos, porventura, de volta ao organicismo da ciência da Antiguidade Clássica, numa atitude em que a cosmologia andava de mãos dadas com o astrologia e a filosofia natural de mãos dadas com a magia e a alquimia. Com o racionalismo determinista da ciência da Idade Moderna, a divisão da natureza entre o mundo dos vivos e o mundo dos não-vivos constituiu-se ponto-chave da construção científica, relevando o organicismo para plano subalterno e absolutamente secundário. Não foi só o geocentrismo que deu lugar ao heliocentrismo. A Terra, o Sol, todos os demais corpos do Universo e tudo quanto neles existe, são pequenos pontos, senão perdidos, praticamente desapercebidos na imensidade do espaço-tempo.

Nem por isso, a Terra onde o Homem existe e vive, perdeu o seu carácter de Terra-Mãe para quem nos remetem os chamamentos contínuos que da Amazónia nos chegam. Com suas lendas, mistérios e magia, eles remetem-nos para Gaia, a deusa da Terra, numa concepção holística e sistémica sobre os processos da natureza. Nascida depois do Caos em que o Universo primeiro existiu, ela é o grande super-organismo vivo, o elemento primordial e latente da potencialidade geradora da vida, que em si encerra toda a força da vida de cada um de nós. Dela nasceu Cronos, o tempo que dela separou o próprio pai, Urano, separando assim o Céu da Terra; dela nasceram os Andróginos que surgiam do chão em todos os quadrantes e tudo fizeram para escalar o Olimpo com a intenção de destruir o próprio deus e a ele se substituírem. Foi também ela quem produziu, escondida no meio de toda a luxuriante vegetação que cobria o mundo, a planta que ao ser comida poderia dar imortalidade. Uma planta que necessitava de luz para crescer; essa planta que Zeus, apagada a luz das estrelas e escondido nos véus de Nix, a deusa da noite, encontrou e destruiu, atraindo sobre si a fúria eterna da deusa que a criara.  

Esta mesma fúria da deusa da Terra recairá legitimamente sobre cada um de nós, sempre que fecharmos nossos ouvidos aos múltiplos chamamentos que todos os dias nos chegam do interior da selva amazónica. Na sua conjuntura, eles são um apelo contínuo, vivo e lancinante, à crescente reafirmação duma ecologia que envolve representações simbólicas e materiais, fundida com o destino do Homem. Na matriz da cultura judaico-cristã que informa o chamado Mundo Ocidental, cada dia menos Ocidental e mais Universal, essas representações simbólicas e materiais que constituem a dimensão ficcional da ecologia encontram-se fundidas nos processos ecológicos que projectam a Amazónia como grande signo da modernidade, com a génesis ou origem do Mundo centrada no Paraíso Terrestre, o estado de bem-estar e perfeição em que o Homem viveu inicialmente e a que, uma vez perdido, procura voltar. Ficcionalmente, nele se encontra a Árvore da Vida, a imortalidade, e a Árvore da Ciência, o conhecimento do bem e do mal (32).

Nessas representações simbólicas e materiais se fortalece e constrói a condição de indivisibilidade da categoria homem-natureza. Em linguagem alquímica, elas são as admiráveis adaptações a que se refere a Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto, o três vezes grande, através das quais todas as coisas nasceram do Uno inicial e nas quais se cumpre todos os dias o milagre da Unidade.

Não deixemos morrer a alma da Amazónia. Só não permitindo que a sua paisagem seja uma paisagem sem alma própria e não permitindo que a sua matéria seja mero reservatório de matérias-primas, conseguiremos manter vivos os elos que nos ligam com os seres e as coisas que partilham connosco o espaço de imortalidade e de conhecimento do bem e do mal, penhor da nossa própria sobrevivência como espécie humana.

 

Notas

 

(1) Linha Directa in Visão, nº 878, 31 Dezembro,2009 a 6 Janeiro 2010, p.6.

(2) Frei Gaspar de Carvajal, Relación del descubrimiento del famoso rio grande que desde su nacimiento hasta el mar descubrió el Capitan Orellana em unión de 56 hombres” publicada no séc. XIX com o título  “Descubrimento del Rio de las Amazonas”.

(3) Mundo Brasil in  Visão, nº 878, 31 Dezembro,2009 a 6 Janeiro 2010, pp 66-71.

(4) Frei Cristobal d´Acuña, Novo Descobrimento do Grande Rio Amazonas e a Viagem de Pedro Teixeira Águas Arribas, 1641, Edição Brasileira.

(5) General Pedro Tejeira, Relazion del General Pedro Teixeira de el rio de las Amazonas para el Senhor Príncipe, Ms. Biblioteca da Ajuda, Livro 51, V-41.

(6) Pedro Pinto, O Último Bandeirante, Lisboa,  A Esfera dos Livros, 2009, pp. 122-133.

(7) Anete Costa Ferreira, A Espedição de Pedro Teixeira, a sua importância para Portugal e o Futuro da Amazónia, Ed. Esquilo, Lisboa, 2000.

(8) Maria Inês Martins Ladeira e Gilberto Azanha. Os índios da Serra do Mar, a presença Mbyá-Guarani em São Paulo. Novo Stella Editorial, São Paulo, 1988.

(9) Aldo Litaiff. As divinas palavras: identidade étnica dos guarani – Mbyá. Ed. da UFSC, Florianópolis,1996.

(10) Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, Liv.Martins Ed., 4ª edição, S.Paulo, 1967, cp. XVII, p. 177, in Camilo Prado, Das Virtudes Tupinambá, TriploV de Artes, Religiões e Ciências, nº 5 (Abril 2010), nota 63.

(11) Hans Staden, Warhaftige Historia und Beschreibung eyner Landtschafft der wilden, nacketen, grimmigen Menschfresser Leuthen in der Newenwelt America gelegen", Marburgo, Ed. Andres Colben, 1557; traduzido em francês:  Johan von Hans Staden, Véritable histoire et description d'un pays habité par des hommes sauvages, nus, féroces et anthropophages: situé dans le Nouveau monde nommé Amérique, avant et depuis la naissance de Jésus-Christ, jusqu'à l'année dernière", Ed. A. Bertrand, 1837; tradução portuguesa : Hans Staden, Duas viagens ao Brasil. Ed. Itatiaia, Universidade de São Paulo, S. Paulo, 1974. 

(12) Hermetis Trismegisti Tabula Smaragdina, in ejus manibus in sepulcro reperta, cum commentatione Hortulani,  in Alchemiae Gebri Arabis Philosophi Solertissimi Libri, cum Reliquis, Nuremberga, 1541.

(13) Miguel Real, O Sal da Terra, Ed. Quidnovi, Literatura Portuguesa, Matosinhos, 2008.

(14) Neste particular, leia-se e analise-se o seu Sermão do Espírito Santo pregado na Igreja da Companhia de Jesus, no Maranhão, em 1657. 

(15) Miguel Real, o. cit. , p.254.

(16) Idem, pp. 189, 216.

(17) Idem, pp. 213-214

(18) Thomas Morus,Utopia, De Optimo  Republicae Statu deque Nova Insula, Louvain, 1517.

(19) Tommaso Campanella, Politicae Civitas, Solis Idea Republicae philosophicae (La cita del Sole), Frankfurt,1623.

(20) Miguel Real, o.cit., pp.217ss.

(21) Idem, pp 261-262     

(22) General Pedro Tejeira, O.ci , fls.25-26.

(23) Luísa de Paiva Boléo, As Lendas das Mulheres Gurreiras in Monografias.com (texto revisto para a Revista Máxima, 18.03.2003), 3-Amazonas, da Grécia para o Novo Mundo

(24) Maria Helena Rocha Pereira, As Amazonas: Destino de um Mito Singular  in Oceanos, nº 42  (Abril/Junho 2000), pp.163-170

(25) Rosane Volpatto,  As Icamiabas e Orellana  (A lenda), in www.rosanevolpatto.trd.br (última consulta em 18.03. 2010)

(26) Hermetis Trismegisti Tabula Smaragdina,  loc. cit., vv. 2-3.

(27) General Pedro Tejeira, Relazion del General Pedro Teixeira de el rio de las Amazonas para el Senhor Príncipe, Ms. Biblioteca da Ajuda, Livro 51, V-41 in Anete Costa Ferreira, o. Cit.., pp.63-70.

(28) Jean de Léry, O. Cit., p.177.

(29) Floristan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambás , Univ. S. Paulo, 1947.

(30) Alberto Mussa, Meu destino é ser onça - Mito tupinambá restaurado, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2009.

(31) Miguel Real, o.cit., pp.224-225

(32) Marcílio de Freitas, Física e Meio Ambiente, O Substrato da Estética na Ciência Contemporânea in Ciência e Cultura, , vol.57 (2005) pp.33-36.

 

 

 

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