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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 05
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Um dia
O capitão Pedro Teixeira com 1000 canoas
entrou águas-arriba no Amazonas
acordando aquela imensidão sem dono (Poema – Raul
Bopp)
1 - A Inteligência simbólica da Natureza
No corrente ano de 2010, celebra-se, por Declaração da
Assembleia Geral das Nações Unidas, “O Ano Internacional da Biodiversidade”.
Visa esta celebração avivar em cada um de nós a obrigação que é de todos de
conservar o mundo vivo que nos rodeia. Dia a dia, estamos a perder a
biodiversidade do mundo em que vivemos ao explorarmos desenfreadamente os
recursos da natureza de um modo que não garante os seus ecossistemas e a
necessária renovação das espécies (1). Diariamente, o nosso procedimento
está a pôr a Terra em perigo, arriscando a própria quietude do Céu, sem nos
convencermos verdadeiramente de que de nada nos serve “salvar a alma se
acabarmos por perder a Terra”, como nos lembra Bruno Latour no Guião usado
para o presente Colóquio “Discursos e Práticas Alquímicas”. |
DIRECÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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REVISTA TRIPLOV |
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Índice de Autores |
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O Contrário do Tempo |
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A.M.Amorim da Costa
Chamamentos da Amazónia,
a Terra Sem Mal, as Amazonas,
a Antropofagia
Ano
Internacional da Biodiversidade |
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IX COLÓQUIO INTERNACIONAL «DISCURSOS E
PRÁTICAS ALQUÍMICAS»
Benedita (Portugal). 29-30 de Maio de 2010 |
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De há muito
considerada um dos pontos nevrálgicos da vida na Terra, com a maior
concentração de água doce e a mais importante floresta tropical, sobre a
Amazónia se concentram os olhares atentos e as preocupações mais
genuínas de quantos querem acorrer ao apelo “salvemos o planeta Terra”,
salvemos a Terra do perigo de extinção que a ameaça.
Sob o foco desses
olhares, a terra das Amazonas, a Amazónia é, muito mais que um mito, um
símbolo. O mito das mulheres guerreiras que habitavam essa floresta
tropical e lhe deram o nome, as Icamiabas, esfuma-se na
lenda da tribo de mulheres que em 1541, atacou as tropas de Francisco
Orellana, quando chegaram ao Mar Dulce, após terem descido o rio Napo, e
que Frei Gaspar de Carvajal, o cronista da expedição, descreve como
“mulheres sem peito, guerreiras, que não aceitavam homem no seu
habitat, muito alvas e altas, com o cabelo muito comprido,
entrançado e enrolado na cabeça, muito membrudas, sempre nuas em pelo,
tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos, fazendo
tanta guerra como dez índios". Neste seu relato, Carvajal refere que
embora tivessem conseguido abater alguns índios que eram comandados por
essas mulheres e até algumas delas, viram-se obrigados a fugir, levando
consigo apenas um índio. Este, mais tarde, ao ser interrogado, declarou
pertencer a uma tribo cujo chefe, senhor de toda a área (o ataque
ocorrera na foz do Rio Nhamundá), era súbdito das mulheres que residiam
no interior. Na qualidade de súbditos, obedeciam e pagavam tributos às
mulheres guerreiras, que eram acompanhadas pelo chefe Conhori. E
respondendo a várias perguntas do comandante, disse que essas mulheres
não eram casadas e que sabia existir setenta aldeias delas. Descreveu as
casas em que moravam como sendo de pedra e com portas e que as aldeias
delas eram bem vigiadas. Disse ainda que elas pariam mesmo sem ser
casadas porque, quando tinham desejo, levavam os homens de tribos
vizinhas à força, ficando com eles até emprenharem. Quando tinham a
criança, se homem, entregavam-no ao pai para que o criasse; se este o
não aceitasse, era morto; com elas ficavam apenas as meninas que eram
educadas conforme as suas tradições guerreiras. Descreveu ainda os seus
hábitos e as suas riquezas, dizendo que elas possuíam muito ouro e prata
(2).
Terra das amazonas, a
Amazónia é “inteligência simbólica da Natureza” e símbolo da própria
biodiversidade. Este concretiza-se no dia a dia, na riqueza única do
planeta, traduzida na maravilhosa diversidade de todas as espécies
vegetais e animais que nela se encontram, num infindável número de
peixes e anfíbios, aves e mamíferos, vertebrados e invertebrados,
árvores de grande porte, arbustos, líquenes e musgos.
O futuro da Terra
passa pela sobrevivência deste símbolo. Conservá-lo é manter o
equilíbrio ecológico que vai permitindo a própria sobrevivência da
biodiversidade que integramos. Ele é – como já foi considerado – “a
menina dos olhos da Humanidade” que em nome do seu próprio bem-estar e
da sua própria existência, a inteligência humana deveria respeitar como
“um santuário intocável” contra o qual é pecado capital atentar. Porém,
na nossa insanidade, tornados carrascos de nós mesmos, consideramo-lo
“um mito romântico” e apodamos de líricos quem ouse defendê-lo. Já há
até quem apregoe o seu fim até ao ano de 2050. Aqueles que consigam
sobreviver até que esse infausto acontecimento caia sobre as suas
cabeças, talvez se possam perguntar então, caso lhes reste lucidez
bastante para o fazer: “porque não nos salvámos quando tivemos
oportunidade?“ (3).
Já se disse que o
cheiro do mato da floresta amazónica lembra o começo do mundo. É o
cheiro presente na sua biodiversidade, o cheiro que se exala da sua
realidade como símbolo e pulmão vital do próprio planeta. No dia em que
o perdermos, teremos perdido o próprio mito de que ele está prenhe, como
lugar repleto de assombros e magia que o uso magico-medicinal dos muitos
alucinógenos que no seu seio crescem, se alimentam e criam e que para
nós constituem, a todo o momento, lancinante apelo de vida e
transformação. O seu próprio nome é o seu primeiro elemento de magia que
apela à nossa transformação alquímica do mesmo modo que o fazem muitos
dos usos e costumes dos povos que lá vivem, e, sobretudo, muitas das
suas crenças e práticas. Aqui evocaremos algumas como um chamamento que
de lá nos chega a toda a hora e que é também ele, renovada fonte de
vida. |
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2. Três chamamentos da Amazónia numa
leitura comum de alquimia |
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Acima referimos a
exploração da Amazónia, a terra das Amazonas, sob o comando de Francisco
Orellana (1490
- ca.1550),
integrado na expedição realizada nos anos de
1540 -
1541
por
Gonzalo Pizarro
(1502-1548), meio irmão do conquistador do Império dos Incas, Francisco
Pizarro (1476-1541), ao longo de todo o
rio Napo,
da nascente para jusante, desde os
Andes
até ao Mar Dulce. Deve-se, porém, ao explorador Português Pedro Teixeira
Aguas Arribas (ca.1585-1641) o registo e a posse de mais de 62 por cento
da Amazónia, incluindo a totalidade da bacia do rio Amazonas, para o
reino de Portugal, durante a expedição que iniciou em Gurupá, a 28 de
Outubro de 1637, tendo percorrido toda a bacia do grande rio até chegar
à cidade de Quito (actual capital do Equador), terminada 26 meses
depois, com chegada a Belém do Pará a 12 de Dezembro de 1639.
Pode dizer-se que
esta expedição começou quando dois padres e quatro soldados espanhóis
chegaram perdidos a Belém do Pará, com a novidade que o rio Amazonas era
todo ele navegável. De posse desta preciosa informação, o Governador do
Estado do Grão-Pará e Maranhão, pediu a Pedro Teixeira, seu capitão-mor
e militar prestigiado, natural de Cantanhede, no distrito de Coimbra que
emigrado para o Brasil em 1607, havia participado na fundação da cidade
de Belém do Pará e se havia distinguido no combate aos holandeses,
ingleses e franceses, para organizar a referida expedição.
Muito acarinhado
pelos índios locais, os Tupinambás com quem mantinha a melhor das
relações a ponto destes a ele se referirem como o “Curiua-Catu”, o
Homem-Branco, e dominando bem a sua língua, o Tupi, Pedro Teixeira
preparou aquilo que podemos considerar uma “Bandeira” constituída por 70
canoas, sendo 45 delas de grandes dimensões, com vinte remadores cada,
70 soldados portugueses e 1200 índios que levaram consigo as suas
mulheres e filhos.
O relato do que
aconteceu durante essa expedição foi feito por Frei Cristobal d´Acuña no
seu livro Novo Descobrimento do Grande Rio Amazonas e a Viagem de
Pedro Teixeira Águas Arribas (4) e pelo próprio Pedro Teixeira no seu diário de bordo publicado
em 1639, com o título Relazion del General Pedro Teixeira de el rio
de las Amazonas para el Senhor Príncipe (5) (6-7).
Os índios de que
Pedro Teixeira se fez acompanhar conheciam melhor que ninguém aquelas
terras cujo reconhecimento e conquista para a coroa portuguesa a
expedição se propunha fazer, bem como os povos que as habitavam. Mas
havia neles uma motivação adicional e altamente motivante que os levava
a terem-se prontificado com grande entusiasmo para integrarem a
expedição: era a procura da Terra dos seus antepassados, a Terra sem
Mal, que eles acreditavam estar localizada para os lados da nascente
do Grande Rio, um território onde as pessoas não envelheciam. |
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2.1 – A busca da Terra sem Mal |
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No relato da sua
expedição da bacia do Amazonas, Pedro Teixeira faz um levantamento geral
da fauna, da flora, dos minérios e dos costumes que foi vendo no seu
trajecto. Mas não reclama a descoberta da Terra sem Mal. Bem pelo
contrário, anota que à medida que a expedição decorria e essa Terra não
aparecia, os índios que a integravam foram ficando decepcionados e
começaram a enfraquecer, sentindo que a viagem não era aquilo que
pensavam (8).
Nem por isso a sua
crença nessa Terra se apagou. Podia acontecer estarem a procurá-la no
sítio errado. É que essa crença não era só deles; existia também entre
outros povos que habitavam regiões não muito longínquas da sua,
nas terras do Uruguai, do Paraguai, da Argentina e dos Estados do Sul
do Brasil, nomeadamente entre os índios Guarani-Mbyá. Todavia, alguns destes outros
povos procuravam a Terra sem Mal migrando em direcção ao mar e admitindo
várias outras possibilidades
para
a sua localização: depois do mar, nas
alturas celestes ou no centro da terra situado algures em terras do
Paraguai (9-10).
A
busca da Terra sem mal pelos povos de língua Tupi faz parte da
história de um povo em busca da terra onde se fixou para sempre Maíra,
depois de se ter incompatibilizado com seu irmão gémeo Zumé, quando
viviam ainda num mundo onde só havia dia, com a noite adormecida no
fundo das águas. Do ódio que incompatibilizou os dois irmãos nasceu a
guerra incessante entre os descendentes de um e outro, os índios
termiminós (os descendentes de Zumé) e os índios tupinambás (os
descendentes de Maíra). Nela se encontraria a fonte da eterna juventude
do próprio Maíra e de todos os seus descendentes que a ele se
conseguissem juntar para celebrar a sua liberdade total; nela seria
inesgotável a profusão de alimentos e de recursos em geral.
Nos
versos recitados numa das muitas cerimónias com que era celebrado o
ritual de santidade com que a procuravam, o seu chão é “chão de Bravos
onde o rio empurra o mar; onde o pássaro é mais colorido; onde a chuva é
mais molhada… O chão de Bravos onde o verde encontra o azul”.
Segundo a crença Guarani, ela seria “o dique do mar”, simultaneamente um
obstáculo para atingir o território onde moram os seus antepassados e
onde se não envelhece, e o local onde a terra inicialmente se formou.
Migrando em direcção ao mar, também os índios Guarani-Mbyá nunca
encontraram a sua Terra sem Mal, como os Tupinambás a não encontraram
migrando em direcção das nascentes do Grande Rio, o Amazonas. Nem por
isso, algum dia puseram em causa a sua existência: ela era para eles o
espaço sagrado
em que viviam os seus antepassados, em que o tempo seria um também um
tempo sagrado em eterna renovação, do qual ninguém conhece nem a origem,
nem o fim. Uma espécie de paraíso, ela era para eles, na palavra de Jean
de Léry, uma Terra sagrada que norteava a conduta de vida de todos eles
no seio da tribo, buscando viver “dentro das normas consideradas certas
que são as de matarem e comerem muitos inimigos”, para um dia irem
também eles “para além das altas montanhas dançar em lindos jardins com
as almas de seus avós" (11).
Partindo das terras
amazónicas, estes grupos empreenderam um enorme deslocamento
populacional, expandindo o seu território e alcançando, na época da
colonização europeia, uma verdadeira unidade nacional, com aldeias
dispersas por todo o território brasileiro. Em 1557, Hans Staden
descreveu-os como grupos que se caracterizavam por uma grande
mobilidade, pelo seu carácter guerreiro, e exímios canoeiros que
aproveitavam o curso dos maiores rios para as suas viagens pelo que eram
também conhecidos como “Povo das Águas” (12).
Em 1549, o Padre
Manuel da Nóbrega na descrição que fez de uma cerimónia a que os tupis
chamavam “caraimonhaga” e que celebravam como um momento de santidade,
mas que ele tinha como um fenómeno diabólico, referiu-se à Terra sem Mal
como o vindouro "paraíso tupi". De facto, logo desde os primeiros
contactos que os colonizadores do mundo Ocidental tiveram com índios da
Amazónia e os ouviram falar dessa Terra e dos rituais duma santidade
imaculada que deviam ser cumpridos na sua procura, logo a associaram com
o nunca encontrado Paraíso terrestre do
povo bíblico. Para os místicos que procuram a transformação do Homem em
Deus, acreditar na sua existência e partir à sua procura, é acreditar no
estado inicial do começo do mundo em que vivemos, esse estado inicial da
Terra em que segundo o registo da Tábua de Esmeralda, se cumpriu “o
milagre da unidade”, esse estado da Terra em que, no princípio de todos
os princípios, todas as coisas estiveram e vieram do uno por intrínseca
adaptação, um estado em que “o que está em baixo é como o que está em
cima e o que está em cima é como o que está em baixo" (13)
onde somente o dia existia e a noite jazia adormecida no fundo das
águas.
Depois de chegados a terras brasileiras, os Jesuítas promoveram as suas
missões pelas terras do interior, à busca dos povos índios para os
integrar na Santa Igreja e na Coroa de Portugal, criando as famigeradas
Reduções de evangelização
dos índios.
Às missões em Olinda e S.Luiz, com os Padres Fernando Pinto e Luís
Figueira, seguiu-se a missão ao vastíssimo território do rio Amazonas.
Nesta participou o Padre António Vieira.
No
seu romance “O Sal da Terra”, Miguel Real (14),
referindo-se à participação de Vieira nesta missão, sempre acompanhado do seu
protegido e companheiro de infância, o Índio Tupi Mundé, encontramos
pitorescas referências à Terra sem Mal, experienciadas nos
contactos directos que teve com as diferentes tribos da região. Citamos,
numa leitura salteada. Em 1656, a expedição penetrou na Serra de
Ibiapaba. Na sua maravilhosa eloquência, Vieira deixou-nos as mais
preciosas observações sobre os povos que aí encontrou (15).
Destacamos as suas observações sobre o próprio rio das Amazonas e as
línguas que na região se falavam e anotamos a grande importância com que
se refere ao mito de Zumé, o Pai da Terra sem Mal que ouviu da
boca de muitos. Compara o rio Amazonas a Babel pela muita variedade de
línguas que ali havia, fazendo notar que “houve quem tivesse chamado ao
rio das Amazonas o rio Babel; mas vem-lhe tão curto o nome Babel, como o
de rio. Vem-lhe curto o nome de rio porque o rio das Amazonas da cidade
de Belém para cima já lhe têm contado mais de três mil léguas e ainda se
lhe não sabe o princípio. Por isso os naturais lhe chamam Pará, e os
portugueses lhe chamam Grão-Pará ou Maranhão, que tudo quer dizer mar e
mar-grande. E vem-lhe curto também o nome Babel porque na Torre de Babel
houve somente setenta e duas línguas e as que se falam nas terras do rio
das Amazonas são tantas e tão diversas que se lhe não sabe o nome, nem o
número" (16).
Confrontado com o mito de Zumé, Vieira não se cansou de afirmar que “o
sangue e o suor dos Índios que habitavam essas terras eram o ouro e a
prata do rio Amazonas” e , por isso mesmo, elas eram “as terras do nada
onde se pode ter tudo”, porque o nada é o pouco, o pouco que é o
suficiente”, “onde o pouco era muito e o muito era pouco”, “a terra sem
proveito algum onde, por isso mesmo se pode ser feliz“, onde “o vizinho
nunca ambicionará o que temos, porque mais não temos do que ele tem” e
onde não deveria entrar quem trouxesse ódio em seu coração" (17).
Entre
Cumã e Gurupi, no Estado do mesmo nome, descobriu Vieira uma aldeia
reinol onde viviam os descendentes de alguns náufragos dos barcos de
João de Barros, os Marques e os Martins, os povoadores do litoral de
Belém. A eles se refere Vieira observando tratar-se de duas famílias
naturais de Oleiros, perto de Castelo Branco, que “depois de secos e
restaurados, saciada a fome com carne fresca de caranguejo, se tinham
embrenhado no sertão junto com uma carrada de negros salva do mesmo
naufrágio, presumindo que caminhavam para Sião e Catão de que tinham
ouvido falar na caravela, ao tempo em que os Descobridores criam que a
América era a Índia, e lá ao fundo, ao virar da esquina, gorada sempre
por outra que se lhe seguia, estaria a cidade de Eldorado, visitada por
Marco Polo”, com “telhados de ouro, varandas de prata e paredes de
marfim”. Embrenhados na selva, aprendido o tupi dos índios que a
habitava, perceberam que esta era a Terra sem Mal, “uma vasta
campina, de milho e abóbora, abundante de fruta, muita mandioca, um
vasto feijoal e terra prenhe de caça, atravessada por um ribeirão manso,
onde se pescava à mão, onde os velhos morriam em paz e os seus
antepassados tinham vivido felizes, sem outras tribos para guerrear”.
Ela era a “Terra do Paraíso, como lhe chamavam os pajés (= os chefes
religiosos), a Terra do Ouro, da Vida serena, onde sem cessar podiam
tocar música, brincar com os filhos, assar peixe no espeto, bater o
pilão, pintar a cabaça, cozer o pão de mandioca, adormecer na rede com
mulher…, a Terra da Harmonia”14.
Os
Marques e os Martins que a haviam fundado, deram a esta sua cidade o
nome de Castelo Branco, a cidade da Metrópole de que provinham. Pela
harmonia que nela reinava, pela organização social que nela existia,
onde tudo era dividido equitativamente por todas as famílias, e em que
ninguém se sentia menos nem mais que os outros, onde não eram precisos
julgados pois nela não havia rixas, nem conflitos, ao visitá-la, Vieira
considerou-a o primeiro povoado branco anunciador do Quinto Império, e
também ele vislumbrou nela a Terra sem Mal dos Índios Tupis. A conselho
do seu protegido Mundé, mandou que na portada de cada casa dessa cidade
se gravassem as letras C.M.B., Christus Mansionem Beneductam, a
mansão abençoada por Cristo, lembrando também que era a terra dos três
Reis Magos (Caspar, de acordo com a grafia de Gaspar desses
tempos, Melchior e Baltazar). A união das três raças do
mundo, numa só (18).
Centro matricial do Quinto Império, este Castelo Branco era a cidade
celebrada pelas Utopias dos séculos XVI e XVII, de Thomas Morus (19)
e Tommaso Campanela (19),
com a grande diferença de ser uma cidade “com um lugar real” no mundo
dos humanos, enquanto a cidade que Rafael Hitlodeu teve o privilégio e a
dita de encontrar no novo mundo, descrita na obra de Thomas Morus, ou a
Cidade do Sol descrita pelo almirante genovês na obra de Tommaso
Campanela, são cidades “sem lugar”, no reino da utopia. Ela era para
Vieira, a Cidade do Futuro.
Infelizmente, a crueldade da história diz-nos que poucos anos passados
sobre os anos de terra sem males da Castelo Branco dos Marques e
Martins em terras do Amazonas, os novos povoadores europeus
estabelecidos nas suas vizinhanças, gananciosos e medíocres,
escravizadores de índios, viessem a acusar o povo desta cidade como
milenarista e herético, decretando a divisão das roças e terminassem com
o sistema igualitário que na cidade reinava. O Governador do Estado,
escutado o Conselho, ordenou que Castelo Branco do Maranhão fosse como
todas as demais terras: tivesse meirinho, juiz, almoxarife, carcereiro,
etc… Quando tal aconteceu, um grupo de resistente deixou a cidade,
fez-se ao rio Amazonas, desembarcou na Ilha Joanes, dirigiu-se para o
seu interior e nela criou um povoado com o nome de Salva Terra de Magos,
onde tentara dar continuação ao espírito que os animava na sua original
Castelo Branco, num apelo à união das raças figuradas pelo destino comum
dos três Reis Magos (20).
No seu visionamento, a cidade de Castelo Branco das terras do
Amazonas, era para o Padre António Vieira a figuração do Quinto
Império entre os Tupis, e simultaneamente a figuração do Paraíso
Cristão anunciado pelos missionários. Ao dominar cada vez mais as
línguas dos índios Tupis, ele acreditava e julgava-se convicto de
que muitas tribos tupis tinham incorporado o aparecimento dos
sacerdotes jesuítas nas suas crenças ancestrais patentes na história
que entre eles se contava sobre o “Pai-Zumé”, o grande chefe que em
tempos idos passara pelo seu território. Nele efectuara Zumé
inúmeros milagres e trouxera a prosperidade ao seu povo. Depois,
partira, prometendo que voltaria um dia para levar definitivamente o
povo Tupi para a Terra sem Mal. Para o Padre António Vieira,
esta crença era não só a figuração do Quinto Império entre os Tupis,
como também a figuração do Paraíso cristão anunciado pelos
missionários. E mais: o mito de Zumé era para ele, António Vieira, a
garantia da passagem pelas Índias Ocidentais do Apóstolo Tomé.
Depois de ter evangelizado as Índias Orientais, S. Tomé teria
atravessado o mar-oceano cavalgando uma onda gigante e permanente,
ou voando nas asas de um anjo. Tupã, o deus em que os Tupis
acreditavam, não seria senão uma reminiscência do verdadeiro deus
cristão, o deus do Céu e do Trovão de que S. Tomé havia falado aos
seus antepassados. E o espírito anham
de que falavam os mesmos Tupis, mais não seria que o demónio,
a legião de espíritos malignos alojados nas entranhas da selva que
perseguiam quantos nela se embrenhassem, únicos responsáveis dos
males que lhes poderiam acontecer, uma perna partida, uma doença
inesperada, uma seca passageira, uma zanga com os vizinhos…
Esta seria a origem única de qualquer mal que pudesse acontecer na
terra em que viviam. Sem qualquer noção de pecado individual, nenhum
dos males que pudesse acontecer na tribo seria devido a qualquer
membro da mesma. Após a morte, todos eles seriam levados para a
Terra onde viviam os seus antepassados, onde os espíritos maus não
tinham qualquer possibilidade de acção e que seria, essa sim, a
verdadeira Terra sem Mal (21).
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2.2 – O mito das
Amazonas |
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No relato da sua
expedição da bacia do Amazonas, Pedro Teixeira refere que tanto na ida
como na vinda da sua exploração nunca se cruzou com as amazonas
descritas pelo Frei Gaspar Carvajal no relato que fez da expedição de
Francisco de Orellana que atrás referimos. Não deixa, todavia, de anotar
que lhe chegaram muitas notícias delas, indo ao ponto de dizer que os
seus homens poderiam ter estado a “seis jornadas” do sítio em que elas
se encontravam, constituído por 300 aldeias ou mais, com “quinhentos ou
oitocentos casais” cada, num local em que se acabaria o uso das flechas
furadas e perigosas” do tipo daquelas que eram usadas pelos povos com
que se encontrara mais do sul”(22).
Quer dizer, embora se não tenha cruzado com as Amazonas, Pedro Teixeira
não só não descarta a sua existência nas paragens por onde andou, como
afirma acreditar que elas por ali existiam, acreditando ter estado muito
perto do lugar onde viveriam. Deste modo, o Relato que faz da sua
Expedição da Amazónia mantém vivo o destino desse “Mito Singular” que ao
longo dos tempos, dominou o universo mitológico de gregos e romanos,
donde terá espalhado para Oriente e Ocidente, para os povos do Norte e
para os do Sul, por terras da Ásia e da África. Com a descoberta do Novo
Mundo, depressa nele se implantou e radicou
Colombo,
no regresso da sua primeira viagem às Américas, ao aportar a uma das
ilhas das Caraíbas, diz ter sido atacado por uma tribo guerreira, que o
recebeu com grande hostilidade. Sobre esse inesperado encontro escreveu
a Luís de Santangel, homem de confiança dos Reis Católicos, nestes
termos: «… é a primeira ilha que se encontra, para quem vai de Espanha
rumo às Índias e onde não há nenhum homem. Estas mulheres não se ocupam
de qualquer actividade feminina, só executam exercícios com o arco e
flechas fabricados com canas e cobrem-se de lâminas de
cobre
que possuem em abundância». Por sua vez, o italiano Filipo Pigafetta
(1491-1534), remetendo-se a um relato que lhe fizera um dos pilotos que
acompanhou o navegador Fernão de Magalhães, refere a existência duma
ilha só com mulheres, a ilha de Ocoloro, nas vizinhanças de
Java (Ásia). Eram mulheres que se dedicavam à guerra e que
«dando à
luz algum filho, o matavam se fosse macho e o conservavam
consigo só quando fosse mulher. E tão esquivas se mostravam à
conversação amorosa que, se algum homem ousasse desembarcar na sua ilha,
pelejavam por tirar-lhe a vida»(23).
No nosso mundo
Ocidental, o primeiro relato deste mito aparece-nos num registo de
Heródoto, subsequentemente também registado por Diodoro Sículo (II,
45.3), Estrabão (III.53.3) e Apolodoro (II.3.2). De acordo com a
tradição referida por estes registos, dos usos e costumes destas
mulheres guerreiras fazia parte a prática corrente e generalizada a
mutilação do seio direito para não embaraçar o manejo que faziam do
arco. Daí o seu nome de amazonas [do grego an (= não) e mazós (=seios)].
De
acordo com esse relato, o início da sua história é situado na batalha de
Termodonte, como no-lo diz a Professora Maria Helena Rocha Pereira no
trabalho que já referenciamos: durante a batalha em causa, os Gregos
saíram vitoriosos e conseguiram captar vivas algumas das mulheres
guerreiras que contra eles se tinham batido, fazendo-as entrar nos seus
navios para a exibirem e bem conhecer quando chegassem a suas casas.
Pouco avisados e desprevenidos, já no mar alto, foram surpreendidos por
um ataque surpresa com que elas os atacaram e dizimaram. Porém,
ignorantes da arte de navegar, as guerreiras vitoriosas ficaram à mercê
dos ventos e das ondas, tendo aportado, por acaso num sítio pertencente
aos Citas, a quem começaram a saquear e a apoderar-se dos seus cavalos.
Estes, desconhecedores de tal raça, dos seus trajes e língua, julgaram
tratar-se de jovens imberbes que tentaram dominar travando com eles luta
feroz. Só quando no fim do combate arrastaram consigo os cadáveres
daquelas que tinham conseguido abater, verificaram tratar-se de
mulheres: Em vez de tentarem dizimá-las por completo, enviaram alguns
dos seus jovens acampar nas proximidades dos locais onde elas se
refugiavam, com ordens expressas de as não molestarem em nada, na
intenção de as conquistarem para a sua causa e com elas procriarem para
que da “união com tão extraordinárias donzelas lhes nascesse
descendência que a eles próprios engrandecesse”. Não conseguiram
estabelecer relações permanente com elas, mas apenas algumas relações
esporádicas, pois nenhuma delas aceitou deixar os seus acampamentos para
ir viver com a família e nos acampamentos deles. Habituadas a ocuparem
todo o seu tempo a lançarem setas e dardos, a montarem a cavalo e a
fazer guerra a quantos tentassem intrometer-se nos seus acampamentos,
tudo quanto conseguiram delas foi que fossem viver para longe da terra
que haviam saqueado, conservando consigo apenas as filhas e entregando o
filhos-rapazes aos pais ou, se estes os não aceitassem, tirando-lhes a
vida. E de futuro só aceitariam os contactos necessários para
conservarem a espécie, com o mesmo compromisso quanto aos
filhos-rapazes. E foi esta a história que delas se perpetuou. Os escultores e
pintores imortalizaram-nas e o mais célebre conjunto escultórico é o
friso do mausoléu de Halicarnasso onde são perpetuadas lutando contra
Hércules (24).
Este “mito singular”
no seio da Amazónia, com a importância acrescida de estar na origem do
nome da região, remete-nos para a história dos exploradores da selva
amazónica que nela se embrenharam, e muitos nela se perderam, que
juntaram à aventura de autênticos argonautas seduzidos por velos de ouro
que existiriam ao longo de todo o rio que a banhava como o referira, em
1542, Francisco Orellana que o descrevera como “um imenso rio num
território povoado de Amazonas e regido por um grande príncipe que todas
as manhãs era recoberto de pó de ouro”, a aventura de encantamento
místico de cavaleiros andantes seduzidos por essas mulheres valentes,
Formosas e fascinantes, as Amazonas.
Ao ouvirem falar da
existência de mulheres guerreiras nos territórios cuja exploração e
levantamento topográfico lhes fora pedido, não surpreende que os
bandeirantes que se embrenharam na densa floresta da bacia do grande rio
da selva amazónica, cheia de enigmas, magias e medos, partissem
platonicamente fascinados pela imagem das mulheres guerreiras da
Antiguidade Grega. Na selva cerrada, toda ela povoada de sombras e
mistérios, de espíritos e duendes, o mito das Amazonas guiava-os e era
por eles alimentado como um mito carregado de esoterismo. E é
absolutamente natural que persista ainda hoje no seio dessa mesma selva
o que nos permite invocá-lo aqui como mais um chamamento que da Amazónia
e da cultura dos índios que a habitam nos chega, dia a dia.
Conhecidas também como as Icamiabas, na mitologia dos
índios Tupinambás, estas mulheres guerreiras da selva amazónica eram as
Cunha-teco-ima, as mulheres à margem da lei ou sem lei, o princípio
maternal da natureza. Isoladas do contacto permanente com o sexo
masculino, elas celebravam, em certas épocas do ano, as suas vitórias
sobre o mesmo, reunidas junto do seu lago sagrado a que chamavam o “Yaci-Uarua”,
o Espelho da Lua. Durante a noite, com a lua a reflectir-se no espelho
da água, mergulhavam num ritual de purificação e limpeza, para se
tornarem deusas da Lua, clamando pela Grande Mãe das Pedras Verdes. Das
mãos desta acabariam por receber a sua Pedra Verde que se tornaria nos
seus amuletos vivos, o seu talismã
propiciatório de protecção material e espiritual que pendurado ao
pescoço, as acompanharia para toda a parte. Nele esculpiam estranhos
símbolos e com ele se feriam para colherem gotas de sangue em que
concretizariam seus desejos de vida e com que presenteariam aqueles que
seriam os futuros pais de seus filhos. O seu grande poder estaria
sempre associado às margens de um rio ou lago numa noite de lua cheia
(25).
Propiciatório de protecção material e espiritual, esse seu talismã
torna-se também a fonte da sua força e da vida da sua própria
comunidade. No dizer de Carvajal, cada
uma delas “fazia tanta guerra como dez índios”. Por força desse mesmo
talismã, ao saírem das águas do Espelho da Lua, continuando embora
escondidas dos homens, cada uma delas, sem se haver tornado no
Hermafrodita que carrega em si, num e mesmo ser, o princípio total da
vida, simultaneamente princípio masculino e feminino, estava apta para
forçar a conjugação necessária à sobrevivência do género. O Espelho da
Lua dera-lhe o dom necessário para forçar a sua reportagem ao Sol
vivificante.
Também aqui, ao assistirmos ao ritual das Icamiabas, as
mulheres guerreiras da Amazónia nas águas do Espelho da Lua, podemos
reviver a alquimia da Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegisto,
explicitando um pouco mais a concretização do milagre da unidade de
quando todas as coisas estavam no Uno de que nasceram por adaptação: o
Sol é o seu pai; a Lua, a mãe; o vento trouxe-as no ventre; a Terra é a
sua ama. Aqui está o pai de todo o telesma do mundo inteiro" (26).
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2.3 – A antropofagia
nas tribos de índios da Amazónia |
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No relato da sua
expedição da bacia do Amazonas, Pedro Teixeira ao referir-se aos
costumes dos índios com que foi contactando refere-se, por mais de uma
vez, às sua práticas antropófagas. Depois de terem passado num lugar a
que deram o nome de Rio do Ouro por haver “nos seus habitantes grandes
quantidades deste metal feitas em adornos que traziam nas orelhas e nos
narizes”, chegaram à aldeia dos Omaguas que “usam as cabeças chatas;
ocuparam o rio em longitude cerca de cem léguas e terão mais ou menos
quatrocentas aldeias; é gente muito antropófaga, sendo suposto que todos
os do rio o sejam e se comem uns aos outros…”(27).
Mais que pura
carnificina e uma forma de degradação das gentes que a praticavam, a
antropofagia de muitos destes índios da zona amazónica, era, na
generalidade das situações, um ritual de apropriação de saber e de
força, dois atributos de afirmação humana que ninguém se poderia arrogar
por mera concessão hereditária. Era, como já acima o referimos citando
Jean de Léry, o cumprimento das “normas consideradas certas, que são as
de matarem e comerem muitos inimigo”(28).
Assim o mostram muitas das práticas rituais que a acompanhava. Integrada
num rito de santidade como o rito em que se alicerçava a sua procura da
Terra sem Mal, para os índios Tupinambás, a antropofagia era também ela
celebrada como um rito, conhecido como o rito Ibirapema. É pois redutor
olhá-la apenas com os olhos da nossa cultura de Ocidentais confinada ao
seu aspecto de canibalismo e selvajaria, com toda a crueldade que
naturalmente lhe associamos. Sem dela fazer a mínima apologia, impõe-se
olhá-la também no seu poder de transformação e regeneração do Homem pelo
homem, na busca de novos poderes e maior aproximação ao poder do que
está para além de si-mesmo, numa maior comunhão com aqueles que já
partiram e se tornaram os senhores que do Além vão determinando o
destino dos que por cá continuam.
Em tese de Mestrado
defendida na Faculdade de Filosofia da Universidade de S.Paulo, em 1947,
sobre A Organização Social dos Tupinambás, Floristan Fernandes
descreve alguns dos aspectos rituais da antropofagia praticada por estes
índios (29).
Outro tanto o faz
Alberto Mussa no seu livro Meu Destino é Ser Onça(30),
retomando relatos do Frade André Thevet, de Hans Staden e do Padre
Anchieta.
Aqui apontaremos
alguns aspectos do rito que praticavam e que deixam claro que os
Tupinambás não praticavam o canibalismo como mera forma de alimentação. De
acordo com suas crenças, somente deviam ser comidos os guerreiros
aprisionados em combate e que, na hora da morte, não se acovardassem.
Depois da captura dos guerreiros que iriam ser comidos, deveria
proceder-se a toda uma preparação dos que seriam executados para
servirem de alimento humano. Esta preparação passava, muitas vezes e em
muitos casos, pela obrigação de ser dada em casamento ao prisioneiro que
ia ser executado, uma das jovens da aldeia. Só depois de ele ter
consumado todo o rito matrimonial com ela poderia ser executado para ser
comido. No primeiro dia de execução, os homens que participavam na
cerimónia deveriam ter o corpo pintado com jenipapo e coberto de penas
vermelhas. Um grupo de mulheres da tribo era escolhido para passar a
noite ao lado da vítima, entoando gritos de vingança, ao mesmo tempo que
a mulher dele (a mulher com quem vivia, caso tivesse sido possível
capturá-la com ele, ou, então, a mulher que a própria tribo lhe dera
depois de capturado) chorava e dele se despedia. Na execução, o matador
deveria imitar o ataque de uma ave de rapina, acometendo sobre a vítima
numa série de golpes até a derrubar. O último dos golpes, o fatal,
deveria ser na nuca.
Só depois de
morto, o corpo seria retalhado e comido pelos elementos da tribo. Ao
executor não era dado o direito de comer qualquer porção do executado.
Após a execução, ele deveria afastar-se e apresentar-se diante de toda a
tribo só dias depois, após terminadas as cerimónias em que o executado
tinha sido comido. Deveria apresentar-se com um novo nome e marcado com
incisões feitas usando um dente de cotia, um roedor semelhante ao
coelho, para não ser tido mais como um executor de morte, mas como um
homem novo por cujo feito a aldeia como um todo recebera a coragem e a
força do guerreiro canibalizado. Pelo
inimigo que fora devorado na sequência da execução feita por um dos seus
membros, a tribo libertara-se de mais uma força do mal que a ameaçava.
Alimentar-se da carne dos seus inimigos apanhados nas guerras que a
tribo com eles travava, em cerimónia que durava dias e envolvia toda a
tribo, inclusive mulheres e crianças, era uma das maneiras mais honradas
que os Tupinambás tinham de alcançar a Terra sem Mal. Como outros
povos primitivos, os Tupinambás não desejavam a morte natural, mas antes
uma morte ritual. Na antropofagia concretizavam esse seu desejo; a
vingança do canibalismo sobre os seus adversários tornava sagrada a
violência do homem contra o homem.
Na sua citada obra
Organização Social dos Tupinambás, Floristan Fernandes realça o
carácter de rito de eleição que a tribo atribuía aos actos de
canibalismo que os seus membros praticavam.
Eles escolhiam os seus líderes com base em requisitos bem claros, o
primeiro dos quais era o poder da força. Ao bom guerreiro era dado poder
de liderança. Em alguns casos, este poder poderia ser conquistado pelos
pajés, os sábios, ou pelos homens mais velhos, isto é, num caso e
noutro, por aqueles que tinham o saber, nunca por mera concessão
hereditária, cabendo-lhes assegura a autoridade e o domínio sobre os
demais, como requisitos necessários à sobrevivência quotidiana do grupo.
Comer os guerreiros que conseguiam vencer era um meio de conquistarem
esse mesmo poder. Preparando-se para puderem um dia vir a receber tal
poder, desde meninos recebiam pequenos arcos e flechas, pois isso iria
garantir que eles se tornassem bons guerreiros e caçadores. E na morte
eram sepultados em posição fetal pois esta era, segundo as suas crenças,
a melhor maneira de se alcançar a “terra sem males”.
Todos sabemos que esta crença e atitude destes índios
amazónicos relativamente à antropofagia não é caso único entre as muitas
e muitas crenças do nosso mundo. E o misticismo que lhe subjaz não é,
ainda hoje, caso único no número de instituições que temos como
inaceitáveis. E não precisamos de ir muito longe. Olhando à nossa volta
que outra leitura fazer na crença cristã, traduzida em alguns dos seus
grupos mais numerosos, nomeadamente entre os Católicos que têm no
sacramento da Eucaristia um dos seus ritos fundamentais, “do comer o pão
e beber o vinho tornados o Corpo e Sangue de Cristo”, o Deus feito
Homem? Nele têm o penhor da salvação, a transformação do Homem em Deus!
E não ousamos rotular de antropófagos os crentes que convictamente
praticam este rito! E lembramos aqui, uma vez mais, o Padre António
Vieira.
Confrontado com o canibalismo do povo Tupi, Vieira ouvira
várias justificações para a prática do mesmo. Diziam-lhe tratar-se de
uma prática decorrente da sua actividade de caçadores: “caçar
significava, não raro,que algum dos caçadores fosse ferido; a ferida
gangrenava e a gangrena matava. Comia-se então a carne do inimigo, não
deixando duplicar a hipótese dos ferimentos. O mesmo se aplicando no
caso dos ferimentos sofridos durante as lutas com as tribos rivais:
comia-se a carne do inimigo que já fora preso; dava força e conferia
prestígio. Este era tão importante que na maioria das tribos, o jovem
Tupi só podia escolher mulher depois de ter aprisionado um inimigo,
fraco ou forte, não importava, como prova de ser já suficientemente
corajoso para proteger a mulher e a tribo. Depois de o fazer, devia
ostentar um dente do inimigo como pingente do colar, como sinal do seu
feito. Em conversa com Mundé, o índio Tupi seu protegido e companheiro,
Vieira dizia tratar-se de justificações que não faziam qualquer sentido.
À queima-roupa, Mundé retorquiu-lhe: mas, padre Vieira, também o senhor
come carne e bebe sangue humanos… Percebendo onde Munhé queria chegar, o
padre Vieira, de imediato lhe respondeu: “a hóstia consagrada e o vinho
abençoado são um milagre espiritual, não são corpo e sangue de homem,
mas de Cristo, Filho de Deus, realidade transcendente, não física nem
sensível”. Mais uma vez, é deliciosa a justificação que avançou para o
que considerava a total disparidade entre o comer a carne de humanos e o
comer da carne de Cristo no rito da Eucaristia: “é muito diferente; é
como comer carne crua ou cozida; crua, somos bichos; cozida, somos
homens. Com o pão da hóstia, de homens transfiguramo-nos em Deus; com a
carne dos homens continuamos homens”(31). |
|
3. Conclusão |
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Os muitos chamamentos que da Amazónia nos chegam, na voz
das muitas lendas e mitos que a povoam dos quais os três que aqui
referimos – a Terra-sem-mal, as Amazonas e a Antropofagia – não se
esgotam em si próprios; são, sim, outras tantas possibilidades
paradigmáticas para as ciências da Natureza e as relações humanas. Cada
um deles pode e deve ser ouvido como uma vivência dessa escatologia
ecológica de que nos fala o guião deste IX Encontro Internacional de
Discursos e Práticas Alquímicas, referida como “discurso sobre o fim dos
modos de vida antigos”. Ao invocá-los, impõe-se-nos tentar compreender
melhor os tempos em que vivemos e preparar melhor o futuro que se inicia
em cada instante que vivemos, conscientes – como o refere o mesmo Guião
- de que “o fim dos tempos somos nós que o impomos a nós mesmos, nos
papéis de vítima inocente, pecador malfeitor ou anjo exterminador”.
No confronto natureza-cultura que neles perpassa, ressalta
a necessidade de reinventarmos constantemente a condição humana, a
verdadeira fonte da cultura e a matriz geradora do progresso e dum
desenvolvimento plasmado nos processos da natureza. Neles perpassa o
carácter vivo da Terra. A vida pulula e jorra por todos os cantos da
vasta selva amazónica, nos muitos milhares de espécies de animais e
plantas, muitas das quais ainda não conseguimos identificar, e muitas
das quais poderemos nunca ter a ocasião de identificar porque corremos o
risco de serem eliminadas antes que tenhamos a oportunidade de o fazer.
A reinvenção dos
mitos da imortalidade e do mundo-paraíso que perpassa em todos esses
elementos leva-nos, porventura, de volta ao organicismo da ciência da
Antiguidade Clássica, numa atitude em que a cosmologia andava de mãos
dadas com o astrologia e a filosofia natural de mãos dadas com a magia e
a alquimia. Com o racionalismo determinista da ciência da Idade Moderna,
a divisão da natureza entre o mundo dos vivos e o mundo dos não-vivos
constituiu-se ponto-chave da construção científica, relevando o
organicismo para plano subalterno e absolutamente secundário. Não foi só
o geocentrismo que deu lugar ao heliocentrismo. A Terra, o Sol, todos os
demais corpos do Universo e tudo quanto neles existe, são pequenos
pontos, senão perdidos, praticamente desapercebidos na imensidade do
espaço-tempo.
Nem por isso, a Terra
onde o Homem existe e vive, perdeu o seu carácter de Terra-Mãe para quem
nos remetem os chamamentos contínuos que da Amazónia nos chegam. Com
suas lendas, mistérios e magia, eles remetem-nos para Gaia, a
deusa da
Terra,
numa concepção holística e sistémica sobre os processos da natureza.
Nascida depois do Caos em que o Universo primeiro existiu, ela é o
grande super-organismo vivo, o elemento primordial e latente da
potencialidade geradora da vida, que em si encerra toda a força da vida
de cada um de nós. Dela nasceu Cronos, o tempo que dela separou o
próprio pai, Urano, separando assim o Céu da Terra; dela nasceram
os Andróginos que surgiam do chão em todos os quadrantes e tudo
fizeram para escalar o Olimpo com a intenção de destruir o próprio deus
e a ele se substituírem. Foi também ela quem produziu, escondida no meio
de toda a luxuriante vegetação que cobria o mundo, a planta que ao ser
comida poderia dar imortalidade. Uma planta que necessitava de luz para
crescer; essa planta que Zeus, apagada a luz das estrelas e escondido
nos véus de Nix, a deusa da noite, encontrou e destruiu, atraindo
sobre si a fúria eterna da deusa que a criara.
Esta mesma fúria da
deusa da Terra recairá legitimamente sobre cada um de nós, sempre que
fecharmos nossos ouvidos aos múltiplos chamamentos que todos os dias nos
chegam do interior da selva amazónica. Na sua conjuntura, eles são um
apelo contínuo, vivo e lancinante, à crescente reafirmação duma ecologia
que envolve representações simbólicas e materiais, fundida com o destino
do Homem. Na matriz da cultura judaico-cristã que informa o chamado
Mundo Ocidental, cada dia menos Ocidental e mais Universal, essas
representações simbólicas e materiais que constituem a dimensão
ficcional da ecologia encontram-se fundidas nos processos ecológicos que
projectam a Amazónia como grande signo da modernidade, com a génesis ou
origem do Mundo centrada no Paraíso Terrestre, o estado de bem-estar e
perfeição em que o Homem viveu inicialmente e a que, uma vez perdido,
procura voltar. Ficcionalmente, nele se encontra a Árvore da Vida, a
imortalidade, e a Árvore da Ciência, o conhecimento do bem e do mal
(32).
Nessas representações
simbólicas e materiais se fortalece e constrói a condição de
indivisibilidade da categoria homem-natureza. Em linguagem alquímica,
elas são as admiráveis adaptações a que se refere a Tábua de
Esmeralda de Hermes Trismegisto, o três vezes grande, através das
quais todas as coisas nasceram do Uno inicial e nas quais se cumpre
todos os dias o milagre da Unidade.
Não deixemos morrer a
alma da Amazónia. Só não permitindo que a sua paisagem seja uma paisagem
sem alma própria e não permitindo que a sua matéria seja mero
reservatório de matérias-primas, conseguiremos manter vivos os elos que
nos ligam com os seres e as coisas que partilham connosco o espaço de
imortalidade e de conhecimento do bem e do mal, penhor da nossa própria
sobrevivência como espécie humana. |
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Notas |
|
(1) Linha Directa in Visão, nº 878, 31 Dezembro,2009 a 6
Janeiro 2010, p.6.
(2) Frei Gaspar de Carvajal,
Relación del descubrimiento del famoso rio grande que desde su
nacimiento hasta el mar descubrió el Capitan Orellana em unión
de 56 hombres” publicada no séc. XIX com o título “Descubrimento
del Rio de las Amazonas”.
(3) Mundo Brasil in
Visão, nº 878, 31 Dezembro,2009 a 6 Janeiro 2010, pp 66-71.
(4) Frei Cristobal d´Acuña, Novo Descobrimento do
Grande Rio Amazonas e a Viagem de Pedro Teixeira Águas Arribas,
1641, Edição Brasileira.
(5) General Pedro Tejeira, Relazion del General
Pedro Teixeira de el rio de las Amazonas para el Senhor Príncipe, Ms.
Biblioteca da Ajuda, Livro 51, V-41.
(6) Pedro Pinto, O Último Bandeirante, Lisboa, A
Esfera dos Livros, 2009, pp. 122-133.
(7) Anete Costa Ferreira, A Espedição de Pedro Teixeira, a sua importância para
Portugal e o Futuro da Amazónia, Ed. Esquilo, Lisboa, 2000.
(8)
Maria Inês Martins Ladeira e Gilberto Azanha. Os índios da Serra
do Mar, a presença Mbyá-Guarani em São Paulo. Novo Stella
Editorial, São Paulo, 1988.
(9)
Aldo Litaiff. As
divinas palavras: identidade étnica dos guarani – Mbyá. Ed. da
UFSC, Florianópolis,1996.
(10)
Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, Liv.Martins
Ed., 4ª edição, S.Paulo, 1967, cp. XVII, p. 177, in Camilo
Prado, Das Virtudes Tupinambá, TriploV de Artes, Religiões e
Ciências, nº 5 (Abril 2010), nota 63.
(11) Hans Staden,
Warhaftige Historia und Beschreibung eyner Landtschafft der
wilden, nacketen, grimmigen Menschfresser Leuthen in
der Newenwelt America
gelegen",
Marburgo,
Ed. Andres Colben,
1557;
traduzido em francês: Johan von Hans Staden, Véritable histoire
et description d'un pays habité par des hommes sauvages, nus,
féroces et anthropophages: situé dans le Nouveau monde nommé
Amérique, avant et depuis la naissance de Jésus-Christ, jusqu'à
l'année dernière", Ed. A. Bertrand,
1837;
tradução portuguesa : Hans Staden, Duas viagens ao Brasil.
Ed. Itatiaia, Universidade de São Paulo, S. Paulo, 1974.
(12)
Hermetis Trismegisti Tabula Smaragdina, in ejus manibus in sepulcro
reperta, cum commentatione Hortulani, in
Alchemiae Gebri Arabis Philosophi Solertissimi Libri, cum
Reliquis, Nuremberga, 1541.
(13)
Miguel Real, O Sal da Terra, Ed. Quidnovi, Literatura
Portuguesa, Matosinhos, 2008.
(14) Neste particular,
leia-se e analise-se o seu Sermão do Espírito Santo pregado
na Igreja da Companhia de Jesus, no Maranhão, em 1657.
(15) Miguel Real, o. cit. ,
p.254.
(16)
Idem, pp. 189, 216.
(17)
Idem, pp. 213-214
(18) Thomas Morus,Utopia,
De Optimo Republicae Statu deque Nova Insula, Louvain, 1517.
(19) Tommaso Campanella,
Politicae Civitas, Solis Idea Republicae philosophicae (La cita del
Sole), Frankfurt,1623.
(20) Miguel Real, o.cit.,
pp.217ss.
(21) Idem,
pp 261-262
(22) General Pedro Tejeira, O.ci ,
fls.25-26.
(23) Luísa
de Paiva Boléo, As Lendas das Mulheres Gurreiras in
Monografias.com (texto revisto para a Revista Máxima,
18.03.2003), 3-Amazonas, da Grécia para o Novo Mundo
(24)
Maria Helena Rocha Pereira, As
Amazonas: Destino de um Mito Singular in
Oceanos, nº 42 (Abril/Junho 2000), pp.163-170
(25)
Rosane Volpatto, As Icamiabas e Orellana (A lenda), in
www.rosanevolpatto.trd.br (última consulta em 18.03.
2010)
(26)
Hermetis Trismegisti Tabula
Smaragdina, loc. cit., vv. 2-3.
(27) General Pedro Tejeira, Relazion del General Pedro
Teixeira de el rio de las Amazonas para el Senhor Príncipe, Ms.
Biblioteca da Ajuda, Livro 51, V-41 in Anete Costa Ferreira, o. Cit..,
pp.63-70. (28)
Jean de Léry, O. Cit., p.177.
(29) Floristan Fernandes, A Organização Social dos Tupinambás ,
Univ. S. Paulo, 1947. (30) Alberto
Mussa, Meu destino é ser onça - Mito tupinambá restaurado, Ed. Record, Rio de
Janeiro, 2009. (31)
Miguel Real, o.cit., pp.224-225 (32) Marcílio
de Freitas, Física e Meio Ambiente, O Substrato da Estética na
Ciência Contemporânea in Ciência e Cultura, , vol.57 (2005)
pp.33-36. |
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Dept. de Química – Universidade de Coimbra
3004-535 Coimbra Portugal
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