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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | 2010 | Número 05
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Queres
ser universal, canta a tua aldeia.
[Tolstoi]
Considerações iniciais
Milton Hatoum
estréia no gênero conto com A cidade ilhada, mantendo a mesma qualidade
estética que consagrou seus três romances: Relato de um certo oriente
(1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) e a novela Órfãos do
Eldorado (2007). A coletânea, lançada recentemente, traz 14 contos, 8
deles já publicados em revistas nacionais e internacionais, reescritos;
outros 6 inéditos, mas quem lê não percebe a costura, não imagina peças
esparsas, escritas em épocas distintas, tão forte é a marca do estilo de
Hatoum, escritor consciente da técnica do conto e do texto literário
como trabalho de linguagem. Não há palavras a mais ou a menos em seu
discurso. Não há hermetismo nem brechas nas entrelinhas. Com domínio da
técnica da superposição, ele constrói histórias paralelas, desdobradas
em frações de tempo diferentes, funde-as sem que o leitor perceba que só
há um final. Seus personagens puxam o fio do passado e
presentificam-no... vivem quase todos a recompor recortes de sua
história, num constante retorno à terra natal e ao que foram outrora. |
DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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REVISTA TRIPLOV |
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Jornal de Poesia |
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AÍLA SAMPAIO
Personagens em trânsito, espaços subjetivos e
intertextos em A Cidade Ilhada, de Milton Hatoum
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Aíla Sampaio |
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Personagens em trânsito |
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Manaus, visitada
por estrangeiros e sempre revisitada pelos nativos que vêm e vão, é
ponto de partida e chegada, na verdade um microcosmo do universo em que
se movimentam os personagens dos contos de “A cidade ilhada”, seres
enraizados, mas permanentemente em trânsito no espaço e no tempo. Rio de
Janeiro, Paris, Palo Alto, Berkeley, Barcelona, Bombaim e a capital
amazonense são cenários móveis, transitórios como as vidas que neles
circulam em torno de uma busca ou para resgatar lembranças. Todos estão
à procura de algo que reconstitua ou justifique sua própria existência.
Os nativos, por
alguma razão, deixam Manaus e tomam destinos vários, seja por razões
políticas: Lázaro e Bárbara (“Bárbara no inverno”); à procura de
trabalho: Porfíria e Miralvo (“Dançarinos da última noite”); em busca de
espaço ou por razões não explicadas, como ocorre com o narrador de
“Varandas de Eva”, “Uma estrangeira da nossa
rua” e “Dois tempos” e com os escritores de “Encontros na península”,
“Manaus, Bambain e Palo Alto” e “Dois poetas da província”, bem como
com o visitante de “Uma carta de Bancroft”. Nenhum, entretanto,
permanece distante por muito tempo; a ideia de retorno está sempre
latente, quando não se configura concretamente.
Os que ficam vivem
exilados em seu próprio mundo desmoronado, tal é o caso do poeta Zéfiro
(“Dois poetas da província”), do comandante Dalberto (“O adeus do
comandante”) e do vigia do teatro (“A ninfa do teatro Amazonas”).
Na outra via,
Manaus é cenário para a história de vários estrangeiros: a família
Doherty (“Uma estrangeira da nossa rua”), que parece viver mudando de
país, o biólogo Kazuki Kurokawa, que realiza o sonho de navegar pelo rio
Negro, onde, tempos depois, o cônsul do Japão em Manaus faz o ritual
para jogar as suas cinzas; o Almirante indiano Rajiv Kumar Sharma
(“Manaus, Bambain e Palo Alto”), o cientista Levedan e sua mulher
Harriet, que o abandona para ficar com um dançarino manauara (“A casa
ilhada”), Armand Verne e Felix Delatour, amigos de Emilie (“A natureza
ri da cultura”). De Barcelona, a catalã Victória Soller viaja para
encontrar seu amante Soares em Portugal (“Encontros na península”), até
desistir de empreender os percursos geográficos e deter-se a voos na
obra do brasileiro Machado de Assis.
Em “A natureza ri
da cultura”, a narradora fala sobre Armand Verne, um dos amigos da sua
avó, “um andarilho que colecionava lendas e mitos da Amazônia. Um homem
que se apropriava da cultura dos nativos para salvá-los” (p.100) e, ao
referir-se à plaqueta escrita por Delatour, outro estrangeiro amigo da
família, intitulada “Voyage sans fin”, dá bem a significação do
personagem-viajante: “A viagem permite a convivência com o outro, e aí
reside a confusão, fusão de origens, perda de alguma coisa, surgimento
de outro olhar. Viajar, pergunta o personagem de Delatour, não é
entregar-se ao ritual (ainda que simbólico) do canibalismo? Todo o
viajante, mesmo o mais esclarecido, corre o risco de julgar o outro.
Consciente ou não, intencional ou superficial, tal julgamento quase
sempre deforma o rosto alheio, e esse rosto deformado espelha os
horrores do estrangeiro. Nesse convívio com o estranho, o narrador
privilegia o olhar: o desejo de possuir e ser possuído, a entrega e a
rejeição, o temor de se perder no outro”. (P.101). Delatour desaparece
após subir o rio Negro até a fronteira da Colômbia. Já o cientista
Levedan, pesquisador renomado de espécies de peixes, retorna a Zurique
sem a mulher Harriet, que se apaixona por um dançarino (“A casa ilhada”)
e fica morando em Manaus, num bangalô sobre as águas, a casa ilhada,
onde Levedan, anos depois volta, para uma visita misteriosa. |
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Os Intertextos |
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A errância dos personagens, física e
existencial, atinge contornos estéticos quando se dá dos romaces
para o conto e, até, de conto para conto. Essa intertextualidade
homoautoral, ou seja, a utilização de recorrências espaciais,
temáticas e de personagens, além de dá unidade ao projeto
ficcional de Hatoum, dá ao leitor a impressão de que esses
personagens têm existência real, não são meros seres de papel
escondidos atrás das palavras quando se conclui a leitura da
obra. Lavo (Olavo), narrador de Cinzas do Norte, é também
narrador de três dos contos da coletânea: “Varandas
de Eva”, “Uma estrangeira da nossa rua” e “Dois tempos”.
Em nenhum deles está o seu nome, mas ele pode ser identificado
facilmente por quem leu o romance, porque aparece com as mesmas
características, inclusive tendo ao lado os tios Ran (Ranulfo) e
Mira (Ramira), também ‘trasplantados’ do romance, com os mesmos
traços e a mesma postura. Nas três narrativas, tem-se enredos
cíclicos, com predominância do discurso indireto-livre; o
personagem está voltando a Manaus e lá rememora passagens de sua
vida. |
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Milton Hatoum |
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Em “Varandas de
Eva”, o narrador (Lavo), adulto, recorda o passado e a primeira visita
que fez ao bordel da cidade, financiada pelo tio, na companhia dos
amigos Minotauro, Gerinélson e Tarso. Este último, o mais pobre do
grupo, acaba evadindo quando já na entrada da casa vermelha. Só anos
depois, o amigo descobre o motivo: a mãe dele (Tarso) era uma das
prostitutas, exatamente a moça com quem ele (Lavo) dormiu e por quem
tanto procurou em vão. Essa revelação, no entanto, é sugerida pelo
narrador, “cuja memória abre brechas para recompor aquela noite” ao
ouvir a ‘voz meiga e firme’ da moça do balneário. Um indício, somente,
coloca o fato no plano da sugestão, tirando a certeza do leitor: “Por
assombro, ou magia, o rosto dela era o mesmo, não envelhecera” (p.14), o
que nos faz supor que o tempo da memória pode equivocar-se, haja vista a
impossibilidade física de as feições não se modificarem com a passagem
do tempo cronológico.
No conto “Uma
estrangeira da nossa rua”, é o mesmo personagem que, ao retornar de São
Paulo à sua cidade, encontra a casa azul, o bangalô que ficava defronte
a do seu tio, em ruínas. Lembra-se de Lyris e sua família estrangeira,
que “vivia em outro mundo”. Reaparecem o seu tio, com as mesmas
características de solteirão conquistador, “apenas mais tosco e bruto,
andava nu pela casa”, e, Mira, sua tia, dona de casa sempre à espera. Ao
rememorar a paixão de sua juventude por Lyris, o narrador conclui que o
fracasso no amor “não é atributo apenas da juventude”, como a registrar
que em sua trajetória à maturidade continua a experimentar dissabores no
plano sentimental (p22).
No conto “Dois
tempos”, também ele narra seu retorno a Manaus, seu encontro com a amiga
Aiana que o interpela para perguntar se lembra da professora Tarazibula
Steinway. Ele recorda as aulas de piano que frequentavam juntos, há
muitos, anos e o concerto a que assistiu, junto com o tio: a platéia
quase vazia, mas a pianista tocando gloriosa. Volta à realidade quando,
levado pela amiga, se vê no velório da professora, onde encontra,
desolado, o seu tio Ran.
Esses três contos,
recortes de momentos da vida do narrador, poderiam perfeitamente ser
capítulos de um romance, pois, embora tenham existência independente,
dialogam entre si, ampliando já o diálogo que mantêm com o romance
Cinzas do Norte. O concerto da professora Steinway que o narrador conta
ter visto com o tio, no conto “Dois tempos”, é referido por ele em “Uma
estrangeira da nossa rua”, quando relata um dos seus raros encontros com
sua vizinha Lyris.
Essa técnica da
intratextualidade, bem utilizada por Machado de Assis, está também
presente em “A natureza ri da cultura”, cuja narradora é a mesma de
Relato de um certo oriente, na mesma situação de rotorno à casa da avó
Emilie.
As influências de
Hatoum são nítidas e até declaradas. Leitor de Tchekov, assume a
assimilação do estilo, a maneira de tensionar o tempo todo os
personagens, as situações e os conflitos. Júlio Pimentel Pinto, em
resenha sobre esse novo livro, viu mais: “embora os ecos de Guimarães
Rosa, Machado de Assis ou Borges não sejam propriamente surpreendentes,
eles agora parecem mais explícitos. Borges especialmente parece
acompanhar cada linha do conto-título ou de “A natureza ri da cultura”.
Machado, por exemplo, ilumina a pista de “Dançarinos na última noite”. E
Cortázar, que ainda não havia aparecido, ressoa por trás da melhor
narrativa: “Bárbara no inverno”.
Além do diálogo
com os estilos, ele intertextualiza, também, obras e histórias, como
ocorre no conto “Uma carta de Bancroft”, em que o narrador colocar a
última passagem da vida do escritor Euclides da Cunha, em forma de sonho
premonitório do próprio Euclides, personagem. Mais claramente é o
intertexto do conto “Encontro na Península”, escrito para um simpósio
internacional sobre Machado de Assis no Masp, para o qual Hatoum foi
convidado a fazer uma saudação ao Machado, e, em vez de fazer algo
solene, leu o conto, que ele mesmo define como “machadiano", pois é
cheio de referências à obra dele.
No conto, um
escritor inédito, morando em Barcelona, arranja emprego para dar aulas
de português a uma viúva catalã obstinada em conhecer a obra de Machado
de Assis. Ela procura identificar, nos contos ou nos romances dele, um
personagem idêntico ao seu cínico ex-amante português, que desfazia o
valor do escritor carioca para elevar o de Eça de Queirós. Enquanto se
desdobram as duas histórias: a do professor/escritor com a viúva
Victória nas aulas e a dos amantes Victória e Soares, este casado com
uma senhora bem mais velha, Hatoum ‘brinca’ com o estilo machadiano e
constrói, em Soares, um personagem típico do bruxo. E o leitor fica tão
intrigado como Victória Soller: de que obra de Machado saiu o Soares? |
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O jogo verdade X ficção |
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Seria ingenuidade
imaginar que Hatoum escreveu contos autobiográficos porque são narrados,
preferencialmente, na 1ª pessoa. O narrador-personagem não é
necessariamente o autor. Todo texto em 1ª pessoa tende, naturalmente, a
parecer um relato memorialístico. E o é. Na verdade, são as memórias do
narrador, ser fictício, a quem o criador empresta sua visão de mundo,
vivências, traços seus, que deixam de ser reais para constituirem a
suprarrealidade. Antônio Cândido (1976 p.26) diz, a esse respeito, que
“na ficção narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um
narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado”.
O fato de Hatoum
circunscrever suas narrativas ao universo de uma cultura que é a sua de
origem dá essa idéia de autobiografia e talvez isso seja intencional,
mas não quer dizer que seus personagens sejam ele. Seus personagens
“atingem uma validade universal que em nada diminui a sua concepção
individual” (CÂNDIDO, 1976 p.46). Se observarmos, todos os enredos
surgem inicialmente de uma lembrança do narrador. A realidade passa a
ser manipulada por um resgate do passado – tempo que tem mais força
realizadora que o presente - e que François Mauriac considera o grande
arsenal de onde o narrador extrai os elementos da invenção, o que
confere “ambiguidade às personagens, pois elas não correspondem a
pessoas vivas, mas nasce delas”. De fato, Hatoum faz o que diz Mauriac:
avulta a fixação do espaço, dos ambientes familiares, mas “no que toca
às personagens, reproduz apenas os elementos circunstanciais (maneira,
profissão etc); o essencial é sempre inventado” (apud CÂNDIDO, 1976
p.67).
As narrativas
carregam um sentido de verdade muito intenso e isso é possível porque há
um jogo verdade X ficção que enreda o leitor. Hatoum gosta do personagem
escritor, de reproduzir os cenários de sua terra, mas seu trabalho
criador não se restringe à memória, ele a combina com sua capacidade
observadora e inventiva, combina-as “sob a égide de suas concepções
intelectuais e morais” e nem ele, certamente, saberia dizer em que
proporção utiliza cada um, pois, como assegura Cândido (!976 p.74) “esse
trabalho se passa em boa parte nas esferas do inconsciente e aflora à
consciência sob formas que podem iludir”.
No conto “Uma
carta de Bancroft”, o narrador consegue criar uma acentuada ilusão da
verdade: “Encontrar esse carta inédita em Bancroft, com a caligrafia
nervosa de Euclides, é quase um milagre... só vim a Bancroft para ler
uma carta amazônica do autor d’Os sertões” (“Uma carta de Bancroft” p.
26). A suposta carta de Euclides da Cunha ao amigo Alberto Rangel,
segundo o relato, conta, entre outras coisas, um sonho em que um militar
é morto pelo amante da esposa, um dado biográfico de Euclides. Como para
dar ainda mais uma conotação de verdade, o conto termina com a seguinte
observação: “Sabemos, enfim, que não há menção dessa carta na vasta
correspondência de Euclides da Cunha. Em 1946, ela foi adquirida por um
certo Charles P. Dutton num alfarrabista de Belém e doada três décadas
depois Biblioteca de Bancroft, em Berkeley”. Por que não há menção dessa
carta na vasta correspondência de Euclides da Cunha? O que o narrador
quer dizer com essa observação? Aí está o jogo: não consta, por que está
na Biblioteca de Bancroft ou... não consta, simplesmente, por que a
carta não existe, é uma criação do ficcionista.
Em “A natureza ri
da cultura”, a narradora fala sobre Delatour, e diz que o narrador da
história da plaqueta escrita por ele, com o título “Voyage sans fin”,
quando fala no porto De Cancale, na Bretanha, de onde parte o
personagem-viajante do livro, inventa uma linguagem que ela, a leitora,
não consegue entender: “Lembra a voz de um louco vociferando em vária
línguas”. Após o término do conto, há uma nota de rodapé com o seguinte
esclarecimento: “Nessa passagem do texto de Delatour, a linguista Odette
Lecure encontrou referências dialetais usadas por índios e caboclos do
Amazonas.” (p.102). Então a tal plaqueta existe e foi consultada por uma
linguista; então Delator e a narradora, que estudou francês com ele,
também existiu de verdade? Hatoum é consciente desse jogo e dos seus
efeitos, não foi à toa que disse, numa entrevista: “Há, pois,
essa fluidez, essa vontade de mentir: é o menti vrai de que fala Vargas
Llosa em seus ensaios”.
De fato, Felix
Delatour existe. Informa-nos o crítico José Castello: “é um professor
bretão, circunspecto e quase albino que vive escondido em um sobrado de
Manaus. Ele sofre de uma trágica doença que praticamente o imobiliza: o
gigantismo. Sobrevive, em seu abafado exílio, ministrando aulas de
francês. Em sua sala, despida de qualquer lembrança do passado europeu,
há apenas uma mesa de madeira e duas cadeiras de vime. Do lado de fora,
com suas ondas de calor e nuvens de mosquitos e sempre indiferente aos
requintes da língua, está a Amazônia”. Então Delatour não desapareceu
pelo rio Negro? É também real a plaqueta “Voyage sans fin”, cuja
referência bibliográfica está em nota-de-rodapé no conto? Ou essas são
outras artimanhas narrativas para acirrar a ambivalência verdade X
ficção?
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A subjetividade dos espaços |
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O espaço
predominante na obra não é físico, não é Manaus, a cidade localizada
geograficamente no norte do Brasil, embora haja notações explícitas do
nome dos lugares, é o passado constantemente evocado. É o espaço da
memória. Para Bachelard, nós nos conhecemos mais no espaço que no
tempo, "nos espaços de estabilidade do ser, de um ser que não quer
passar no tempo". Ao querermos "suspender o vôo do tempo", servimo-nos
do espaço, que "em seus mil alvéolos, retém o tempo comprimido" (BACHELARD,
1974 p. 362).
É assim que se
comportam os personagens dos contos de “A cidade ilhada”, vivendo o mito
do eterno retorno, numa tentativa de encontrar no passado a estabilidade
que o presente não garante. Eles estão sempre recusando o ‘tempo
histórico’ e voltando à nostalgia do tempo de suas origens, da infância,
quando ‘eram felizes e não sabiam’. O próprio Hatoum já disse que “a
tentativa de um retorno à terra natal só é possível através da
linguagem: ‘instância poética da recordação que comemora’. ‘A lembrança,
afirma o filósofo Benedito Nunes, cria a proximidade com as coisas,
chamando-as à presença, desvelando-as na linguagem’”. Ele, Hatoum, crer
ser esta a viagem mais fecunda: “o movimento da palavra poética rumo à
origem”.
Os lugares, tão
constantemente evocados, constituem espaços subjetivos carregados de
valores. A maioria dos personagens não vive uma situação estável, ao
contrário, vive deslocamentos: para o rio Negro, para o lago de Ubim ,
Paris, São Paulo, Rio, Bancroft, Berkeley, Barcelona, em situação de
viagem, movimento, vivendo a possibilidade de expansão do pensamento e
do olhar, modificando a percepção de espaço e tempo, confirmando o que
diz Delatour, em “A natureza ri da cultura”: “a viagem, além de tornar o
ser humano mais silenciosa, depura o olhar” (p.100).
Embora ‘soltos’
pelo mundo, os personagens de “A cidade ilhada”, com exceção dos
estrangeiros, são, como já falamos anteriormente, seres enraizados, de
modo que experimentam o deslocamento geográfico, o distanciamento da
terra de origem, mas dela não se afastam propriamente, como bem traduzem
as palavras do narrador de “Uma carta de Bancroft” (p. 26) “... para
onde vou, Manaus me persegue, como se a realidade da outra América,
mesmo quando não é solicitada, se intrometesse na espiral do
devaneio...”. As experiências fora do espaço de origem, que é
subjetivamente “o estar no mundo”, são necessidades de expansão do ser.
É, ainda, Bachelard quem diz que “é pelo espaço, é no espaço que
encontramos os belos fósseis de duração concretizados por longas
permanências”. Entretanto as viagens surgem como um forma de lembrar que
“o mundo se apresenta com uma nova face cada vez que mudamos a nossa
perspectiva sobre ele”. (DUARTE Jr., 1984, p.11).
Esse olhar para
fora de casa, o movimento de evadir-se da própria terra, ocorre para que
possa haver o retorno, pois o inconsciente permanece nos locais. As
lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem
espacializadas (BACHELARD, 1974). Manaus é, pois, um lugar subjetivo de
partida e chegada, nunca de permanência, a não ser como espaço de
memória, de apego ao que foi e não mais pode ser, mas fica para sempre,
como traduzem os versos de Álvaro de Campos: “O que eu sou hoje é terem
vendido a casa, / É terem morrido todos,/ É estar eu sobrevivente a
mim-mesmo/ como um fósforo frio...” |
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA |
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BACHELARD, Gastón. A poética do espaço.
Tradução de Antonio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São
Paulo: Abril Cultural, 1974 (Col. Os Pensadores).
CÂNDIDO ET AL. A personagem de ficção.
São Paulo: Perspectiva, 1976.
CASTELLO, José. ‘Benedito Nunes ensina o
caminho de volta’. In: Jornal da Poesia
http://www.revista.agulha.nom.br/castel06.html . Acesso em
19/03/2009.
DUARTE, F., Jr. O que é realidade? São
Paulo: Brasiliense, 1984.
ELIADE, Mircea. Cosmos e História: O mito do Eterno Retorno.
Princeton, 1954.
HATOUM, Mílton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
___. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
___. Relato de um certo oriente. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. |
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Aíla Sampaio
(Brasil, 1965).
Cearense, nascida na região do Cariri,
graduada em Letras, com especialização em Língua portuguesa e mestrado
em Literatura. Publicou dois livros de poemas: Desesperadamente nua
(1987) e Amálgama (1991), e encontram-se no prelo De olhos entreabertos
(poemas) e Os fantásticos mistérios de Lygia (ensaio), que deverão ser
lançados ainda este ano. Exerce o magistério desde 1995 e, atualmente, é
professora da Universidade de Fortaleza - UNIFOR, onde coordena o Curso
de Letras e é editora da Revista de Humanidades. Escreve poemas, contos,
crônicas e, sobretudo, resenhas e ensaios, que vem publicando
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
Rua Direita, 131
5100-344 Britiande
PORTUGAL |
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