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Porto Alegre. 23 de janeiro de
2011
Querida Ana Luisa Janeira,
Antes que as férias me
engolfem, gostaria de enviar-te algumas palavras pela ocasião da
justa homenagem que te será prestada. Gostaria de juntar-me aos
tantos que a homenagearão escrevendo-te desde minha profunda alma
brasileira-gaúcha - (se é que alma possa ter localizações
geográficas) - com a sinceridade que louva teus méritos e merece
ser conhecida e divulgada. Como havia dito a ti, aqui no Brasil, em
tua recente estada, seria meu desejo me fazer presente em Lisboa
nessa ocasião. Muitas razões se interpuseram ao meu desejo e por
isso escrevo-te para não deixar em branco esse momento de passagem
que nos anuncias: o de tua aposentadoria.
A respeito desse momento, do
qual não sabemos os efeitos se não o experimentarmos, devo
dizer-te, por experiência própria, que não se trata de um negativo.
Ao contrário: sabendo termos estado por longos anos implicadas com a
formação de nossos estudantes, agora nos reservamos uma espécie de
liberdade para continuarmos, ao nosso modo, nossa vocação. Sempre
gostamos de ter alunos ao nosso redor. Eles nos dão vigor, nos
desafiam a pensar novos problemas, nos levam a novos conceitos, nos
convidam a novas linguagens e enfim, nos renovam, fazem-nos
diferir de nós mesmas a cada caso que apresentam. Devemos muito aos
nossos alunos no sentido de nos tornarem estranhos a nós mesmos, e,
sobretudo, pelo fato de nos constituirmos como a mão que se lhes
estende como apoio à ousadia e às inspirações tão necessárias ao
fazer científico e filosófico. |
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Entretanto, após tanto tempo
termos dado a mão a esses alguéns que sequer cabem em nossa memória
atual, nos deparamos com nossa própria mão estendida à espera de outras
demandas vindas de fora. Sabemos que ao nos reformarmos, não podemos
parar. Já instituímos um modo de existir que não prescinde do outro para
alavancar tudo aquilo em que ainda podemos nos tornar. Esse aluno, esse
amigo, não pode se afastar de nosso alcance. Venha ele sob a forma de
um colega, sob a forma de um curioso, enfim, esse outro que nos incita
à diferenciação e à afirmação do que ainda não sabemos . Amigos servem
para revirar nossos arquivos de saber. Servem para a expansão de nossas
potências. Seriam uma espécie de inimigos daquilo que já conhecemos de
nós. Devem estar sempre prontos a, delicadamente, corroer nosso gelo,
derreter nossa face , fazendo aparecer aquilo que nos surpreende quando
nos olhamos no espelho. Com os amigos verdadeiros, sempre nos
surpreendemos com o que estamos nos tornando. Ah! Como eu gosto dessa
surpresa ! Como a amo e a detesto ao mesmo tempo. Por ela, dou-me conta
no gelo em que estou me tornando, por ela dou-me conta da insuficiência
de meus atos, por ela me desafio aos devires de minha própria
auto-criação. Nessa surpresa, também me recrio e alimento a potência de
de minhas singularidades. Um aluno= um caso- um acaso= um ocaso=um
renascimento.
Querida Ana Luisa: não seria eu a
lhe contar essa história, não fosse o percurso que nos une! Fui sua
aluna, dediquei-me a ouvi-la, meus alunos também a escutaram, a
gravaram, a antrevistaram. De um outro modo especial, foste ainda o laço
que me uniu aos meus antepassados vindos de Portugal , e, de um modo
especial, propiciaste-me a melhor hospedagem em Lisboa, em Évora, em
Braga, em Montemor, em Coimbra. Contigo, obtive meu estágio pós-doutoral,
contigo descobri as riquezas da pesquisa no âmbito do Hospital
Psiquiátrico São Pedro, local que desde 2001, se tornou, por tua
provocação, meu campo de pesquisa (www.ufrgs.corpoarteclinica.br
e
www.eusouvoce.com.br) E, ainda, de um modo especial , em família,
estivemos em Porto Alegre, em Gramado, e novamente em Porto Alegre,
juntamente com Paulo, Gustavo e Denise. Não pude ir às Missões- teu
curso para sempre repetido porque apaixonado -, mas ainda não desisti.
Talvez seja nossa próxima aventura de amizade. Não o fiz, não por falta
de amizade. Foram outras as condições que faltaram.
Gostaria de dizer a todos os que
te conhecem, que eu tenho a maior alegria em te ter como amiga e colega.
Tu, da filosofia, eu da psicologia, conseguimos um diálogo sempre
obliquo, em que não achamos concordâncias fáceis e tampouco conversões
precisas. Vivemos nossa amizade num acerto constante, numa regulagem que
se faz necessária entre amigas que não pretendem subtenter e submeter as
idéias uma da outra. Mas quero dizer: sempre a escuto. Tua fala me é
cara, é preciosa pois ela não provém para agradar ou fazer-se amada.
Corres sempre riscos com tua fala sincera e, para alguns, até petulante.
Vais em frente, dizes o que pensas, o que sentes, ages como tal. Bah!
Mulherzinha de envergadura que não se abate, que cultiva a solidão de
seus pensamentos, que estando conosco também é capaz de nos abandonar
para que não se perca na estripulia das emoções momentâneas. Tu não
és pessoa fria: ao contrário: és emocional revestida de racionalidade,
pessoa que luta consigo para não perder o norte de seus princípios...
mas sempre reservas algo em teu coração quente! junto a ti, precisamos
saber escutar e também lutar, caso queiramos estar juntas. Nossa amizade
é muito especial. Trata-se de um orvalho que recebi no final dos anos
1900, pela mão da querida Anna Carolina Regner, e que agora, embebida
por ele, já me sinto apropriada para falar de seu gosto propriamente.
Querida Ana Luisa: a importância
de tua presença em meu percurso é imensa. Nesse momento, nada mais
poderia dizer a ti e a todos que lerem essa cartinha, que tua
influência sobre mim é benfazeja, sempre foi e o será até que me
esqueça de mim.
Um grande abraço, dessa amiga
brasileira muito grata,
Tania Mara Galli Fonseca |