REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

TANIA MARA GALLI FONSECA

 

Carta a Ana Luísa Janeira

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Porto Alegre. 23 de janeiro de 2011 

Querida Ana Luisa Janeira, 

Antes que as férias me engolfem,  gostaria de enviar-te algumas palavras pela ocasião da justa homenagem que te será prestada.  Gostaria de juntar-me aos tantos que a homenagearão escrevendo-te  desde minha profunda alma brasileira-gaúcha - (se é que alma possa ter localizações geográficas) -  com a sinceridade que louva teus méritos e  merece ser conhecida e divulgada. Como havia dito a ti, aqui no Brasil, em tua recente estada, seria meu  desejo me fazer presente em Lisboa nessa ocasião. Muitas razões se interpuseram ao meu desejo e por isso escrevo-te para não deixar em branco esse momento de passagem que nos anuncias: o de tua aposentadoria.

A respeito desse momento, do qual não sabemos os efeitos se não o experimentarmos,  devo dizer-te, por experiência própria, que não se trata de um negativo. Ao contrário: sabendo termos estado por longos anos implicadas com a formação de nossos estudantes, agora nos reservamos uma espécie  de liberdade para continuarmos, ao nosso modo, nossa vocação. Sempre gostamos de ter alunos ao nosso redor. Eles nos dão vigor, nos desafiam a pensar novos problemas, nos levam a novos conceitos, nos convidam a novas linguagens  e  enfim, nos renovam, fazem-nos diferir de nós mesmas a cada caso que apresentam. Devemos muito aos nossos alunos no sentido de nos tornarem estranhos a nós mesmos, e,  sobretudo, pelo fato de nos constituirmos como a mão que se lhes estende como apoio à ousadia e às inspirações tão necessárias ao fazer científico e filosófico.

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
   
 

Entretanto, após tanto tempo termos dado a mão a esses alguéns que sequer cabem em nossa memória atual, nos deparamos com nossa própria mão estendida  à espera de outras demandas vindas de fora. Sabemos que ao nos reformarmos, não podemos parar. Já instituímos um modo de existir que não prescinde do outro para alavancar tudo aquilo em que ainda podemos nos tornar. Esse aluno, esse amigo, não pode se afastar de nosso alcance. Venha  ele sob a forma de um colega, sob a forma de um curioso, enfim, esse outro que nos  incita à diferenciação e à afirmação do que ainda não sabemos .  Amigos servem para revirar nossos arquivos de saber. Servem para  a expansão de nossas potências. Seriam uma espécie de inimigos daquilo que já conhecemos  de nós.  Devem estar sempre prontos a, delicadamente, corroer nosso gelo, derreter nossa face , fazendo aparecer aquilo que nos surpreende quando nos olhamos no espelho. Com os amigos verdadeiros, sempre nos surpreendemos com o que estamos nos tornando.  Ah! Como  eu gosto dessa surpresa ! Como a amo e a detesto ao mesmo tempo. Por ela, dou-me conta no gelo em que estou me tornando, por ela dou-me conta da insuficiência de meus atos, por ela me desafio aos devires de minha própria auto-criação. Nessa surpresa, também me recrio e alimento a potência de de minhas singularidades. Um aluno= um caso- um acaso= um ocaso=um renascimento.

Querida Ana Luisa: não seria eu a lhe contar essa história, não fosse o percurso que nos une! Fui sua aluna, dediquei-me a ouvi-la,  meus  alunos também a escutaram, a gravaram, a antrevistaram. De um outro modo especial, foste ainda o laço que me uniu aos meus antepassados vindos de Portugal , e,  de um modo especial, propiciaste-me a melhor hospedagem em Lisboa, em Évora, em Braga, em Montemor, em Coimbra. Contigo, obtive meu estágio pós-doutoral, contigo descobri as riquezas da pesquisa no âmbito do Hospital Psiquiátrico São Pedro, local que desde 2001, se tornou, por tua provocação,  meu campo de pesquisa (www.ufrgs.corpoarteclinica.br e www.eusouvoce.com.br)  E, ainda,  de um modo especial , em família, estivemos em Porto Alegre, em Gramado,  e novamente em Porto Alegre, juntamente com Paulo, Gustavo e Denise.  Não pude ir às Missões- teu curso para sempre repetido porque apaixonado -, mas ainda não desisti. Talvez seja nossa próxima aventura de amizade. Não o fiz, não por falta de amizade. Foram outras as condições que faltaram.

Gostaria de dizer a todos os que te conhecem, que eu tenho a maior alegria em te ter como amiga e colega. Tu, da filosofia, eu da psicologia, conseguimos um diálogo sempre obliquo, em que não achamos concordâncias fáceis e tampouco conversões precisas. Vivemos nossa amizade num acerto constante, numa regulagem que se faz necessária entre amigas que não pretendem subtenter e submeter as idéias uma da outra. Mas quero dizer: sempre a escuto.  Tua fala me é cara, é preciosa pois ela não provém para agradar ou fazer-se amada. Corres sempre riscos com tua fala sincera e, para alguns, até petulante. Vais em frente, dizes o que pensas, o que sentes, ages como tal.  Bah! Mulherzinha de envergadura que não se abate, que cultiva a solidão de seus pensamentos, que estando conosco também é capaz de nos abandonar para que não se  perca na estripulia  das emoções momentâneas.  Tu não és pessoa fria:  ao contrário: és emocional revestida de racionalidade, pessoa que luta consigo para não perder o norte de seus princípios... mas sempre reservas algo em teu coração quente! junto a ti, precisamos saber escutar e também lutar, caso queiramos estar juntas. Nossa amizade é muito especial. Trata-se de um orvalho que recebi no final dos anos 1900, pela mão da querida Anna Carolina Regner, e que agora,  embebida por ele, já me sinto apropriada para falar de seu gosto propriamente.

Querida Ana Luisa: a importância de tua presença em meu percurso é imensa.  Nesse momento, nada mais poderia dizer a  ti e a todos que lerem essa cartinha, que tua influência sobre mim é benfazeja, sempre foi  e o será até que me  esqueça de mim.

 

Um grande abraço, dessa amiga brasileira muito grata, 

Tania Mara Galli Fonseca

 

 

 

Tania Mara Galli Fonseca
Psicóloga, Doutora em Educação, pós-doutora pela Universidade de Lisboa
Pesquisadora do CNPQ/  Professora dos Programas de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional  (www.ufrgs.br/ppgpsi)  e de Informática Educativa (www.pgie.ufrgs.br)

 

 

© Maria Estela Guedes
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