REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

VIAGENS COM ANA LUÍSA JANEIRA

PELA AMÉRICA DO SUL

Maria Estela Guedes

 

 

Sessão de homenagem a Ana Luísa Janeira. SAHFC. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
31 de Março de 2011

EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
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Maria Estela Guedes  
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Não era sem perigos, e mesmo sem risco de morte, que os filósofos naturais, no século XVIII, e os exploradores, no seguinte, se aventuravam em territórios desconhecidos. Obstáculos levantados por clima, rios, montanhas, animais, habitantes das regiões violadas por alienígenas, e sobretudo as doenças. O conhecimento adquire-se na confrontação direta com a realidade e Ana Luísa Janeira pratica este método de investigação. Uns filósofos ligam-se mais às palavras e outros ligam-se mais às coisas, para invocar «Les Mots et les Choses», de um autor caro a Ana Luísa, Michel Foucault. Hoje os perigos podem ser outros, mas a sua intensidade é idêntica à de eras volvidas. Hoje, como dantes, quem pretende conhecer o Novo Mundo pode correr perigo de morte. Nós passámos por essa prova ao desembarcarmos na Bolívia. Se não a tivéssemos passado, e com nota alta, não estariamos agora aqui sentadas a apresentar-vos resultados da investigação. É assim que tenho trabalhado com Ana Luísa Janeira: as fontes somos nós e o acontecimento vivido, listas de obras consultadas não figuram neste documento.

Foi à saída do aeroporto de La Paz, pelas 10 horas da noite, em meados de Agosto de 2007. Diz a Ana Luísa que um polícia pediu os documentos a um taxista que conduzia um veículo tipo jipe, escuro. Todos os outros táxis, alinhados na praça para dançarem “O lago dos cisnes”, eram brancos.

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
   
 

- Vamos apanhar o táxi escuro porque o motorista é índio – decidiu a Ana Luísa.

Optava pelo cisne negro, e eu não me opus. Era preciso ajudar os índios, explorados pelas potências colonialistas, coitados…

O quechua mal falava apesar das perguntas, e a viagem começou a ser interminável, por uma estrada de pó amarelado que serpenteava entre favelas. A ideia de uma cidade de barro poeirento, miserável, era o que me ia ficando. Distraídas pela tagarelice, só demos conta do assalto depois de amordaçadas e imobilizadas.

As portas iam destrancadas e dentro do táxi cheirava a couro mal curtido, ou mesmo a ganadaria. O motorista tinha abrandado a marcha, permitindo que três homens entrassem. Um sentou-se no lugar do morto, a dirigir as operações com telemóvel. Dois incas jovens entraram para o banco de trás, um para cada investigadora portuguesa. A écharpe de tricô da Ana Luísa serviu-lhes para nos taparem a boca e os olhos. Não deu motivo a troça o facto de a venda ter mais buracos do que lã. Nem essa porta para a informação podia ser desvendada aos assaltantes, nem a situação convidava, como agora, à desvalorização do caso pelo riso. O riso é catártico, mas só a posteriori.

- Tranquilas! – sossegavam os índios. Non queremos hacerbos daño, solo queremos la plata!

Se ficássemos sossegadas, se não gritássemos, nada de mal nos aconteceria, mas o meu sequestrador exercia sobre a écharpe uma pressão desmesurada, e segurava-me o braço com excessiva força. Sufocava, só mais tarde nos aperceberíamos do mal de altitude, a cidade de La Paz fica a mais de três mil e seiscentos metros. Qualquer pequeno esforço, como o de arrastar a mala, ou de nos arrastarmos a nós por uma rua inclinada, nos põe rapidamente de língua de fora. Os chás de folha de coca, em todo o lado oferecidos aos viajantes, só ajudam em imaginação.

Pedi-lhe que aliviasse a pressão sobre os olhos, estava a magoar-me e não conseguia respirar. Depois de lhe garantir que não olharia para ele, nem ofereceria resistência, aliviou. Também ele, como o carro, cheirava a ganadaria.

Andámos quilómetros e quilómetros pela noite de La Paz, entre o que me parecia ser só casas de barro amarelo a desfazerem-se em pó, o bandido sentado no lugar do morto agarrado permanentemente ao telemóvel, até pararmos diante de uma caixa de multibanco em local abrigado por teto de cimento. Nessa altura já nos tinham revistado – com muito mais delicadeza que as funcionárias no aeroporto -, e retirado o que queriam. Dei conta de o meu rapaz me aliviar do peso do relógio, por me ter elevado o braço como num passe de dança, fazendo deslizar a mão pelo meu pulso num gesto carinhoso. Só faltava Tchaikovski para enriquecer o sentimento de participar numa encenação do Lago dos Cisnes.

- Qual es la llave? – perguntava um dos quechuas. Tinham-se apoderado dos nossos cartões de crédito, queriam os códigos. E aí a noite mudou bastante de figura, porque a minha companheira resolveu portar-se mal, violando as mais clássicas regras de segurança. Primeira: refilar com os bandidos, teimando que não daria os códigos.

- Dá os códigos, sim, senhora, e não mente! – intimei.  

- Mira que yo podia ser tu abuela! – ralhou ainda a Ana Luísa, como se falasse com os alunos dela. Com esta segunda violação das regras, punha-nos em risco de morte. Se sabia que os assaltantes eram rapazes, com idade para serem netos dela, é porque lhes vinha observando as feições. Escusado dizer que os bandidos eliminam as testemunhas do crime. E aquele era crime organizado, conduzido à distância com telemóvel, significando isto que havia mais criminosos além dos três do táxi.

- Cale-se, Ana Luísa! – Com esta ordem tomei o comando das operações de resgate, e dei códigos, nomes, profissões, objetivo científico da viagem –

- Misiones?! – espantaram-se os bandidos. – En Bolívia? Pero que misiones?!

Aí estava um tópico de conversa bom para a Ana Luísa, inócuo, que me permitiu descansar um bocado da tremenda concentração em que ia. Ela deu uma aula aos nossos sequestradores sobre as missões jesuíticas da Bolívia, discorrendo sobre San Xavier, San Rafael e Santa Ana de Velasco, na Gran Chiquitanía, e acredito que tenha chegado ao ponto de lhes ensinar que os jesuítas não tinham convertido os índios à força dos sermões, sim seduzindo-os com música. Ainda hoje ali se realiza um dos maiores festivais internacionais de música barroca, e se publicam pautas que datam do período da evangelização.

Enquanto a Ana Luísa dava a aula, pus-me a viajar pelo interior de mim e descobri o que ignorava. Não me dominava o medo, raramente o senti, apesar de o sequestro ter durado cinco horas. Sentia-me fria, distante do mundo, porque em vigília extrema, concentrada apenas em nós, no escasso perímetro daquele carro. Um estado de alerta que me impedia de cometer erros e me abria caminho para um comportamento que agora, anos passados, reconheço de cumplicidade e mesmo de camaradagem com os bandidos. Só queria que tudo lhes corresse bem, pois disso dependia sairmos com vida daquele táxi.

Eu não andava com muito dinheiro, e nas contas bancárias também nunca abunda. A Ana Luísa perdeu muito mais, e clonaram-lhe um cartão. Foi usado no Brasil, mas o Banco reembolsou-a do furto. Eu tinha dinheiro a menos e cartões a mais. Quando o meu bandido afastou a écharpe para eu ver o cartão amarelo da Universidade de Lisboa, e exigiu o código, fiquei verde, para não dizer «à rasca».

- No hay llave, no hay plata nesse, es solo una identificación! – assegurei, e caí esfalfada no banco, depois do esforço de uma tão comprida frase.

- Juras?! – perguntou o moço, metendo-me entre os dentes a ponta de um punhal.

- Juro – suspirei, ofegante. E tu juras que não nos farás mal?

- Si, por supuesto, no queremos hacerbos daño! Solo queremos la plata.

Tinha-se estabelecido entre nós um elo de ligação firmado num código de honra simples, segundo o qual, se nós ficássemos quietas e caladas, e se não mentíssemos, eles não nos fariam mal. Por isso não insistiram na obtenção do inexistente código de um cartão que só usava para entrar livremente no Jardim Botânico.

- E devolves os nossos documentos? – perguntei, receando que costumassem dar algum destino criminoso aos passaportes.

O rapaz irritou-se com a minha suspeita e respondeu, ríspido, num castelhano que não consegui aprender totalmente nessa noite:

- Para que queremos nosotros os vossos documentos?!

Calei-me, não fosse escapar-me da boca mais alguma gaffe que pudesse ferir-lhe as suscetibilidades.

Sentia vontade de fazer chichi. Tinha aguentado horas e horas e já ia em sofrimento. Estava o carro parado à beira de terceira ou quarta caixa de multibanco, o bandido do telemóvel sempre a conferenciar nele, e a mandar perguntar que horas eram em Portugal – E que horas são aqui? – contra-interrogou a Ana Luísa. Contas feitas, por ela e não por outrem, assentou em que eram cinco horas da manhã em Lisboa. Queriam saber, explicou mais tarde, se valia a pena reterem-nos até às nove horas de Portugal para levantarem o montante permitido no que seria o dia seguinte. A Ana Luísa, se não fosse filósofa, devia ser banqueira! Aqueles elementos do crime organizado iam deixar-nos em paz, receosos de incidentes imprevisíveis num sequestro demasiado prolongado.

Para me fazer sofrer, depois de me ter forçado a reclamar, já que de chichis nada entendera, que precisava de mijar, sem obter com o vernáculo nenhuma esperança de lavabos, o meu bandido abre a porta e, agarrado a ela, mija sonoramente para um piso cimentado. Rangi os dentes de despeito e espreitei por entre os abertos da écharpe: estávamos numa rotunda deserta, mal rodeada por casas pobres, de adobe cru, com um muro que parecia dar para o campo. Encostada ao muro, esperava por nós, latejando sob o clarão azulado de uma daquelas luzes giratórias usadas no tejadilho dos carros da polícia, uma carrinha escura muito esfolada, sem nada escrito que a permitisse identificar. Íamos com escolta, e nem menos se esperaria do nosso estatuto de investigadoras do CICTSUL!

Fiada na honra e nos códigos dela subjacentes a exigências de juramento, pedi ao meu rapaz:

- Vocês não nos vão deixar no meio de uma cidade desconhecida, de noite, sem dinheiro para táxi… Precisamos de alguma plata, por favor!

Despejaram-nos como a dois sacos de lixo debaixo de uma ponte, num lugar poeirento e mal cheiroso, as malas meio rebentadas mas de conteúdo arrumado, forçando-nos sempre a mantermo-nos de costas para eles.

- Toma para o táxi! – e senti na mão a esmola de um maço de bolívares. À Ana Luísa, meteram-lhe na mão os cartões bancários, passaportes e outros documentos.

- Mandem-nos um táxi! – pedi, totalmente convertida, em afeto, raciocínio e discurso, ao modelo de comportamento criminoso. – Chamem um táxi, estamos muito cansadas!

- Toma tus lentes! – ainda mais aquela, o moço metia-me os óculos de leitura na mão, antes de se pisgar dentro do carro negro na tenebrosa noite de La Paz. – Toma tus lentes! – Em que filme aparecem gangsters assim, dedicados, quase amorosos, preocupados com o bem-estar das vítimas?

O carro negro a cheirar a ganadaria afastou-se e nós para ali ficámos, debaixo da ponte, dois sacos de lixo a tentarem reelevar-se à dignidade de duas investigadoras da Universidade de Lisboa, votadas ao projeto de estudo das reduções jesuíticas da América do Sul.

- Vou fazer chichi, Ana Luísa, não aguento mais! – gemi, baixando calças, calcinhas, e não sei se fraldas – não, as fraldas protagonizaram outras aventuras, posteriormente, em Santa Cruz de la Sierra, quando os paramédicos tiveram de arrancar da cama a Ana Luísa, paralisada por uma lumbalgia, e também na viagem de autocarro de Puno até Copacabana, nas margens do Lago Titicaca, nas altitudes andinas.

- Eu já fiz - balbuciou a Ana Luísa.

- Já fez?! – surpreendi-me, porque não tinha dado por nada. – E onde?!... Pois eu não consigo fazer, estou bloqueada – desisti, começando a sentir a auto-estima a cair pelas pernas abaixo.

Pegámos nas malas, sacudimos a roupa daquela poeira de deserto urbano e dirigimo-nos para umas casas, ao longe, num bairro afavelado. Toquei a campainhas de apartamentos com luz, gritei da rua por ajuda, sem obter qualquer resposta. Não se via vivalma, nem sombra de gente atrás das vidraças das janelas. Socorro nenhum surgiu, silêncio mortal, e nós sem bússola que nos orientasse para o lado da salvação.

Ah, mas os salvadores existem! Os nossos índios eram carinhosos e civilizados, não tinham ficado insensíveis aos nossos pedidos! Não, o meu rapaz não nos abandonou num descampado como a dois sacos de lixo. Ao fundo da rua, vogando na perpendicular como um cisne em palco, branco e vagaroso, o alto pescoço olhando para todos os lados, à nossa procura, lá planava o táxi.

- Táxi! Táxi! – gritei, com o pouco fôlego que me restava. O imaculado cisne fez uma pirueta em câmara lenta, mudou de rumo e dirigiu-se para nós. Calado, o motorista saiu do carro, pegou nas malas e arrumou-as na bagageira. Com voz sumida, demos o nome do hotel. Silêncio discreto quanto a inquirir o que faziam duas turistas, de noite, cambaleantes, sujas, amarrotadas de corpo e alma, num bairro pobre de La Paz.

Também este, Ana Luísa, para não sentir curiosidade, para andar de serviço noite funda, pelas favelas da capital, também este pertencia ao bando! Uma quadrilha liderada por agentes da Polícia.

Passaram, sobre os incidentes relatados, mais de três anos, e só no domingo passado, 27 de março de 2011, a Ana Luísa e eu os comentámos com algum vagar, assentando em que silêncio e riso, ao desvalorizarem os factos, mantinham íntegro o valor do método de investigação. Por isso a viagem alcançou o objetivo, a região missioneira da Gran Chiquitanía, e continuou até Cuzco, onde dissuadimos duas ladras de rua de nos levarem a carteira, e daí passámos a Machu Picchu, na orla da floresta amazónica de altitude, nos Andes. No ano passado percorremos Minas Gerais, desde os sinistros lugares do garimpo até aos paraísos ecológicos de Inhotim e do Jardim Botânico de Ouro Preto, criação recente de duas amigas e colegas, colaboradoras do CICTSUL, Anna Parsons e Eliane Camargo. O nosso próximo projeto de investigação, para o ano, se nos garantirem um mínimo de segurança, e se Portugal não sucumbir à crise, será a Guiné-Bissau. Os Bissau-guineenses são pacíficos e carinhosos, mas o país está nas mãos dos narcotraficantes sul-americanos, o que envolve perigos vários, como acabei justamente de mostrar.

   
 
 

UNIVERSIDADE DE LISBOA . FACULDADE DE CIÊNCIAS
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
SESSÃO DE HOMENAGEM À PROF.ª ANA LUÍSA JANEIRA

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Britiande, Portugal)
Foto: Ed. Guimarães

ALGUNS LIVROS
. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros Editora, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, Escrituras Editora, 2010. ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins (Gradiva, 2010). TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

   
 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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