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- Vamos apanhar o táxi escuro porque o motorista é
índio – decidiu a Ana Luísa.
Optava pelo cisne negro, e eu não me opus. Era
preciso ajudar os índios, explorados pelas potências colonialistas,
coitados…
O quechua mal falava apesar das perguntas, e a viagem
começou a ser interminável, por uma estrada de pó amarelado que
serpenteava entre favelas. A ideia de uma cidade de barro poeirento,
miserável, era o que me ia ficando. Distraídas pela tagarelice, só demos
conta do assalto depois de amordaçadas e imobilizadas.
As portas iam destrancadas e dentro do táxi cheirava
a couro mal curtido, ou mesmo a ganadaria. O motorista tinha abrandado a
marcha, permitindo que três homens entrassem. Um sentou-se no lugar do
morto, a dirigir as operações com telemóvel. Dois incas jovens entraram
para o banco de trás, um para cada investigadora portuguesa. A écharpe
de tricô da Ana Luísa serviu-lhes para nos taparem a boca e os olhos.
Não deu motivo a troça o facto de a venda ter mais buracos do que lã.
Nem essa porta para a informação podia ser desvendada aos assaltantes,
nem a situação convidava, como agora, à desvalorização do caso pelo
riso. O riso é catártico, mas só a posteriori.
- Tranquilas! – sossegavam os índios. Non queremos
hacerbos daño, solo queremos la plata!
Se ficássemos sossegadas, se não gritássemos, nada de
mal nos aconteceria, mas o meu sequestrador exercia sobre a écharpe uma
pressão desmesurada, e segurava-me o braço com excessiva força.
Sufocava, só mais tarde nos aperceberíamos do mal de altitude, a cidade
de La Paz fica a mais de três mil e seiscentos metros. Qualquer pequeno
esforço, como o de arrastar a mala, ou de nos arrastarmos a nós por uma
rua inclinada, nos põe rapidamente de língua de fora. Os chás de folha
de coca, em todo o lado oferecidos aos viajantes, só ajudam em
imaginação.
Pedi-lhe que aliviasse a pressão sobre os olhos,
estava a magoar-me e não conseguia respirar. Depois de lhe garantir que
não olharia para ele, nem ofereceria resistência, aliviou. Também ele,
como o carro, cheirava a ganadaria.
Andámos quilómetros e quilómetros pela noite de La
Paz, entre o que me parecia ser só casas de barro amarelo a
desfazerem-se em pó, o bandido sentado no lugar do morto agarrado
permanentemente ao telemóvel, até pararmos diante de uma caixa de
multibanco em local abrigado por teto de cimento. Nessa altura já nos
tinham revistado – com muito mais delicadeza que as funcionárias no
aeroporto -, e retirado o que queriam. Dei conta de o meu rapaz me
aliviar do peso do relógio, por me ter elevado o braço como num passe de
dança, fazendo deslizar a mão pelo meu pulso num gesto carinhoso. Só
faltava Tchaikovski para enriquecer o sentimento de participar numa
encenação do Lago dos Cisnes.
- Qual es la llave? – perguntava um dos quechuas.
Tinham-se apoderado dos nossos cartões de crédito, queriam os códigos. E
aí a noite mudou bastante de figura, porque a minha companheira resolveu
portar-se mal, violando as mais clássicas regras de segurança. Primeira:
refilar com os bandidos, teimando que não daria os códigos.
- Dá os códigos, sim, senhora, e não mente! –
intimei.
- Mira que yo podia ser tu abuela! – ralhou ainda a
Ana Luísa, como se falasse com os alunos dela. Com esta segunda violação
das regras, punha-nos em risco de morte. Se sabia que os assaltantes
eram rapazes, com idade para serem netos dela, é porque lhes vinha
observando as feições. Escusado dizer que os bandidos eliminam as
testemunhas do crime. E aquele era crime organizado, conduzido à
distância com telemóvel, significando isto que havia mais criminosos
além dos três do táxi.
- Cale-se, Ana Luísa! – Com esta ordem tomei o
comando das operações de resgate, e dei códigos, nomes, profissões,
objetivo científico da viagem –
- Misiones?! – espantaram-se os
bandidos. – En Bolívia? Pero que misiones?!
Aí estava um tópico de conversa bom para a Ana Luísa,
inócuo, que me permitiu descansar um bocado da tremenda concentração em
que ia. Ela deu uma aula aos nossos sequestradores sobre as missões
jesuíticas da Bolívia, discorrendo sobre San Xavier, San Rafael e Santa
Ana de Velasco, na Gran Chiquitanía, e acredito que tenha chegado ao
ponto de lhes ensinar que os jesuítas não tinham convertido os índios à
força dos sermões, sim seduzindo-os com música. Ainda hoje ali se
realiza um dos maiores festivais internacionais de música barroca, e se
publicam pautas que datam do período da evangelização.
Enquanto a Ana Luísa dava a aula, pus-me a viajar
pelo interior de mim e descobri o que ignorava. Não me dominava o medo,
raramente o senti, apesar de o sequestro ter durado cinco horas.
Sentia-me fria, distante do mundo, porque em vigília extrema,
concentrada apenas em nós, no escasso perímetro daquele carro. Um estado
de alerta que me impedia de cometer erros e me abria caminho para um
comportamento que agora, anos passados, reconheço de cumplicidade e
mesmo de camaradagem com os bandidos. Só queria que tudo lhes corresse
bem, pois disso dependia sairmos com vida daquele táxi.
Eu não andava com muito dinheiro, e nas contas
bancárias também nunca abunda. A Ana Luísa perdeu muito mais, e
clonaram-lhe um cartão. Foi usado no Brasil, mas o Banco reembolsou-a do
furto. Eu tinha dinheiro a menos e cartões a mais. Quando o meu bandido
afastou a écharpe para eu ver o cartão amarelo da Universidade de
Lisboa, e exigiu o código, fiquei verde, para não dizer «à rasca».
- No hay llave, no hay plata nesse, es solo una
identificación! – assegurei, e caí esfalfada no banco, depois do esforço
de uma tão comprida frase.
- Juras?! – perguntou o moço, metendo-me entre os
dentes a ponta de um punhal.
- Juro – suspirei, ofegante. E tu juras que não nos
farás mal?
- Si, por supuesto, no queremos
hacerbos daño! Solo queremos la plata.
Tinha-se estabelecido entre nós um elo de ligação
firmado num código de honra simples, segundo o qual, se nós ficássemos
quietas e caladas, e se não mentíssemos, eles não nos fariam mal. Por
isso não insistiram na obtenção do inexistente código de um cartão que
só usava para entrar livremente no Jardim Botânico.
- E devolves os nossos documentos? – perguntei,
receando que costumassem dar algum destino criminoso aos passaportes.
O rapaz irritou-se com a minha suspeita e respondeu,
ríspido, num castelhano que não consegui aprender totalmente nessa
noite:
- Para que queremos nosotros os vossos documentos?!
Calei-me, não fosse escapar-me da boca mais alguma
gaffe que pudesse ferir-lhe as suscetibilidades.
Sentia vontade de fazer chichi. Tinha aguentado horas
e horas e já ia em sofrimento. Estava o carro parado à beira de terceira
ou quarta caixa de multibanco, o bandido do telemóvel sempre a
conferenciar nele, e a mandar perguntar que horas eram em Portugal – E
que horas são aqui? – contra-interrogou a Ana Luísa. Contas feitas, por
ela e não por outrem, assentou em que eram cinco horas da manhã em
Lisboa. Queriam saber, explicou mais tarde, se valia a pena reterem-nos
até às nove horas de Portugal para levantarem o montante permitido no
que seria o dia seguinte. A Ana Luísa, se não fosse filósofa, devia ser
banqueira! Aqueles elementos do crime organizado iam deixar-nos em paz,
receosos de incidentes imprevisíveis num sequestro demasiado prolongado.
Para me fazer sofrer, depois de me ter forçado a
reclamar, já que de chichis nada entendera, que precisava de mijar, sem
obter com o vernáculo nenhuma esperança de lavabos, o meu bandido abre a
porta e, agarrado a ela, mija sonoramente para um piso cimentado. Rangi
os dentes de despeito e espreitei por entre os abertos da écharpe:
estávamos numa rotunda deserta, mal rodeada por casas pobres, de adobe
cru, com um muro que parecia dar para o campo. Encostada ao muro,
esperava por nós, latejando sob o clarão azulado de uma daquelas luzes
giratórias usadas no tejadilho dos carros da polícia, uma carrinha
escura muito esfolada, sem nada escrito que a permitisse identificar.
Íamos com escolta, e nem menos se esperaria do nosso estatuto de
investigadoras do CICTSUL!
Fiada na honra e nos códigos dela subjacentes a
exigências de juramento, pedi ao meu rapaz:
- Vocês não nos vão deixar no meio de uma cidade
desconhecida, de noite, sem dinheiro para táxi… Precisamos de alguma
plata, por favor!
Despejaram-nos como a dois sacos de lixo debaixo de
uma ponte, num lugar poeirento e mal cheiroso, as malas meio rebentadas
mas de conteúdo arrumado, forçando-nos sempre a mantermo-nos de costas
para eles.
- Toma para o táxi! – e senti na mão a esmola de um
maço de bolívares. À Ana Luísa, meteram-lhe na mão os cartões bancários,
passaportes e outros documentos.
- Mandem-nos um táxi! – pedi, totalmente convertida,
em afeto, raciocínio e discurso, ao modelo de comportamento criminoso. –
Chamem um táxi, estamos muito cansadas!
- Toma tus lentes! – ainda mais aquela, o moço
metia-me os óculos de leitura na mão, antes de se pisgar dentro do carro
negro na tenebrosa noite de La Paz. – Toma tus lentes! – Em que filme
aparecem gangsters assim, dedicados, quase amorosos, preocupados com o
bem-estar das vítimas?
O carro negro a cheirar a ganadaria afastou-se e nós
para ali ficámos, debaixo da ponte, dois sacos de lixo a tentarem
reelevar-se à dignidade de duas investigadoras da Universidade de
Lisboa, votadas ao projeto de estudo das reduções jesuíticas da América
do Sul.
- Vou fazer chichi, Ana Luísa, não aguento mais! –
gemi, baixando calças, calcinhas, e não sei se fraldas – não, as fraldas
protagonizaram outras aventuras, posteriormente, em Santa Cruz de la
Sierra, quando os paramédicos tiveram de arrancar da cama a Ana Luísa,
paralisada por uma lumbalgia, e também na viagem de autocarro de Puno
até Copacabana, nas margens do Lago Titicaca, nas altitudes andinas.
- Eu já fiz - balbuciou a Ana Luísa.
- Já fez?! – surpreendi-me, porque não tinha dado por
nada. – E onde?!... Pois eu não consigo fazer, estou bloqueada –
desisti, começando a sentir a auto-estima a cair pelas pernas abaixo.
Pegámos nas malas, sacudimos a roupa daquela poeira
de deserto urbano e dirigimo-nos para umas casas, ao longe, num bairro
afavelado. Toquei a campainhas de apartamentos com luz, gritei da rua
por ajuda, sem obter qualquer resposta. Não se via vivalma, nem sombra
de gente atrás das vidraças das janelas. Socorro nenhum surgiu, silêncio
mortal, e nós sem bússola que nos orientasse para o lado da salvação.
Ah, mas os salvadores existem! Os nossos índios eram
carinhosos e civilizados, não tinham ficado insensíveis aos nossos
pedidos! Não, o meu rapaz não nos abandonou num descampado como a dois
sacos de lixo. Ao fundo da rua, vogando na perpendicular como um cisne
em palco, branco e vagaroso, o alto pescoço olhando para todos os lados,
à nossa procura, lá planava o táxi.
- Táxi! Táxi! – gritei, com o pouco fôlego que me
restava. O imaculado cisne fez uma pirueta em câmara lenta, mudou de
rumo e dirigiu-se para nós. Calado, o motorista saiu do carro, pegou nas
malas e arrumou-as na bagageira. Com voz sumida, demos o nome do hotel.
Silêncio discreto quanto a inquirir o que faziam duas turistas, de
noite, cambaleantes, sujas, amarrotadas de corpo e alma, num bairro
pobre de La Paz.
Também este, Ana Luísa, para não sentir curiosidade,
para andar de serviço noite funda, pelas favelas da capital, também este
pertencia ao bando! Uma quadrilha liderada por agentes da Polícia.
Passaram, sobre os incidentes relatados, mais de três
anos, e só no domingo passado, 27 de março de 2011, a Ana Luísa e eu os
comentámos com algum vagar, assentando em que silêncio e riso, ao
desvalorizarem os factos, mantinham íntegro o valor do método de
investigação. Por isso a viagem alcançou o objetivo, a região
missioneira da Gran Chiquitanía, e continuou até Cuzco, onde dissuadimos
duas ladras de rua de nos levarem a carteira, e daí passámos a Machu
Picchu, na orla da floresta amazónica de altitude, nos Andes. No ano
passado percorremos Minas Gerais, desde os sinistros lugares do garimpo
até aos paraísos ecológicos de Inhotim e do Jardim Botânico de Ouro
Preto, criação recente de duas amigas e colegas, colaboradoras do CICTSUL, Anna Parsons e Eliane Camargo. O nosso próximo projeto de
investigação, para o ano, se nos garantirem um mínimo de segurança, e se
Portugal não sucumbir à crise, será a Guiné-Bissau. Os Bissau-guineenses
são pacíficos e carinhosos, mas o país está nas mãos dos
narcotraficantes sul-americanos, o que envolve perigos vários, como
acabei justamente de mostrar. |