REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Abril | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

MARIA ESTELA GUEDES

 

Itinerários «flosóficos»

Preâmbulo a umas notas de viagens com Ana Luísa pela América do Sul

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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No próximo dia 31 de Março, a Professora Ana Luísa Janeira, aposentada desde Setembro de 2010, receberá uma homenagem na Universidade de Lisboa (1). Como ela tem colegas e amigos em toda a parte do mundo, alguns viram-se impossibilitados de participar in praesentia. Felizmente, sobretudo para o TriploV, hoje já não existem distâncias que impeçam ninguém de participar virtualmente, de modo que organizámos este número especial da Revista para alargar o espaço de confraternização intelectual com a nossa professora, colega e amiga. Tal como o dito popular garante dos coelhos e do cajado, assim Ana Luísa é homenageada também pelo TriploV, e o Triplov recebe em troca um lote de boas comunicações para enriquecimento do seu capital científico e literário.

 
 
 
   
   
 
 

 

Ana Luísa Janeira, no bar-livraria mais chique de Ouro Preto.
Foto: Maria Estela Guedes

 

Como fica patente neste número especial da Revista TriploV, o que define o magistério de Ana Luísa Janeira é a sua itinerância. Vários participantes, em título ou em corpo de texto, falam de viagens, e Celina Lértora usa inclusivamente a expressão «nomadismo filosófico», com o qual ultrapassa a questão da viagem para incidir no modo de vida da Ana Luísa. Com efeito, ela não pertence a uma tribo pensante sedentária, agarrada à secretária e aos livros como os povos agrários às sementeiras, sim ao tipo de "filósofos" que no século XVIII abriram as portas da Europa ao conhecimento científico do mundo, então quase na totalidade inexplorado e desconhecido, apesar de fazer parte de impérios coloniais - Ásia, América e África. E porque Ana Luísa pratica e estima esse tipo de filosofia ambulante - chamemos-lhe uma peripatética no plano do exercício físico - por vezes comentava, com a minha silenciosa discordância, que o último naturalista (filósofo natural) português tinha sido o oceanógrafo Luiz Saldanha. Ana Luísa distinguia-o pela viagem de descoberta, este cientista andou por todos os mares nos mais diversos submarinos, navios e batiscafos, para além de mergulhar em escafandro autónomo.

É neste espírito «flosófico», de descoberta de novos mundos, de alargamento do meu horizonte de conhecimentos, e também de viagem interior, que tenho acompanhado Ana Luísa em algumas missões e itinerários, ora curtos, por Portugal, ora imensos, e mesmo intermináveis, pela América, em especial América do Sul.

Eu fui aluna de Ana Luísa em cursos vários, ministrados não só por ela como por outros professores, alguns razoavelmente assustadores (os professores, sim, e estou a lembrar-me de um jovem, Dias de nome, se não erro, que dava excelentes aulas sobre jardins, mas se encontrava em estado psíquico tão vulnerável que certo dia me deixou em pânico, e de resto acabou por se suicidar), no CICTSUL, quando o Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa tinha sede num grande apartamento em Lisboa, perto da Casa da Moeda. Entre alegrias e dissabores, zangas e companheirismo, estive com ela em grandes ações educativas, artísticas, e com base em investigação científica na área da História da História Natural (no meu caso), como foram a Festa da Sciencia, que envolveu desfile de dezenas de personagens históricas pela 7ª Colina, guiadas pelo fio da água de abastecimento a Lisboa (Aqueduto, Mãe de Água, Patriarcal, com visita ao Aqueduto), uma sessão de teatro em que fiz alguma dramaturgia, alguma escrita teatral e em que desempenhei o papel de Baronesa do Castello de Paiva, quase contracenando com o rei D. Carlos, interpretado pelo Prof. António Ribeiro, que chegou de coche, acompanhado por banda de música e batalhão de jovens da Academia Militar, subindo, assim espero, a escadaria da porta principal do Museu em cima de passadeira vermelha. Espero, enfim, porque me lembro de a ter ido pedir à igreja de S. Mamede, recebendo do pároco um não acompanhado de acerbo comentário, estilo: «Minha senhora, passadeiras vermelhas só nos casamentos, agora já ninguém se casa!». Tome-se esta resposta como contributo da ficcionista para o bom sucesso da historiografia. Adiante. Recordo vagamente que a Isabel Serra, passando por aventura idêntica, conseguiu que alguém  emprestasse a cobiçada passadeira, para as estrelas aterrarem nela sem sujar os pés na bruma... Para prova do que sem pudor afirmo, mais recordo que as fatiotas de Bocages, Andrades Corvos, Baronesas, D. Carlos e restante corpo docente da Polítécnica, em data que olvidei no século XIX, foram cedidas pelo Teatro de São Carlos. O meu figurino vinha direto de uma encenação de «Porgy and Bess». Podíamos lá passar sem passadeira vermelha?!...

Outra grande ação ideada e liderada pela Ana Luísa, que me mobilizou desde o gozo até ao desespero, foi a «Cultura-Natura», com exposições, debates, publicações, localizados, como a «Festa da Sciencia», nos museus da Escola Politécnica, mas que teve expansões por outros pontos do País e no estrangeiro. Nunca me esquecerei da incursão da Alexandra Escudeiro e minha pelas áreas restritas, inexploradas e desconhecidas do aeroporto da Portela, para levantarmos uma apreendida "botica portátil de Alexandre Rodrigues Ferreira", replicada sem modelo à vista numa instituição científica brasileira - Instituto Butantan, especializado no conhecimento de venenos ofídicos e seus antídotos? Se não, foi outra similar.

Desta resenha breve fica talvez patente um traço de estilo ligado à itinerância filosófica, o risco (ou riso?) das fronteiras. A Professora Ana Luísa Janeira é das pessoas que mais apaixonadamente vejo defenderem a Academia, mas ela não é um Presidente da Academia das Ciências de Lisboa chamado Júlio Dantas (escritor que prezo, em especial nesse volume notável em que nos ensina como namoravam os jovens no século XVIII - o namoro de estaca é o meu modelo predileto) atacável em manifesto por algum órfico artista de nome José de Almada Negreiros, em cima de uma mesa da Brasileira, ao Chiado. A académica Ana Luísa Janeira, com ações como a Festa da Sciencia e a CulturaNatura, tem mais o perfil do próprio colega de Fernando Pessoa, esse Almada que foi pintor, escritor, dançarino, etc., «narciso do Egypto, poeta futurista e tudo», capaz de se erguer nas suas tamanquinhas e perorar sobre Fazeres-Saberes e Saberes-Fazeres em cima da mesa da Brasileira do Chiado, do Porto ou de outra qualquer capital do mundo. Não é ela a personagem da foto que assino, a representar um spot publicitário em que revela as virtudes do produto com que pinta o cabelo de vermelho? Não está em cima da mesa, mas nem por isso deixa de ser parceira de José de Almada Negreiros, «poeta futurista, Narciso do Egypto e tudo». Que me perdoem a falta de rigor da citação, escrevo de cor. Já porém a foto retrata a postura filosófica sem gralhas nem qualquer deslize de memória.

Deve ter sido difícil à Academia conviver com uma académica tão anti-académica como Ana Luísa. Ela não obedece ovinamente a modelos, nem transmite o modelo académico na sua acéfala «reprodução infinita das imagens», para me embelezar com um pouco de pó de arroz de Walter Benjamin. O seu estilo intercomunicador e interdisciplinar, de outra parte, coloca-a na fronteira de todos os saberes e de todos os fazeres. Ora o fazer arte, se tem raiz genuína, é sempre anti-académico, viola sempre as normas, desobedece a modelos, porque a arte inova, descobre, inventa e cria, gestos todos eles de transgressão e violação dos limites de modelos de pensar.

Bem sei que o termo «flosóficos», no título da minha digressão literária, causa perplexidade, por duas razões: há sinais nele de se tratar de uma citação, e é; o termo, de outra parte, não deve figurar ainda nos dicionários, portanto é desconhecido. «Itinerário flosófico» é o título do relatório da missão de João da Silva Feijó a Cabo Verde (2). A pseudo-gralha implica uma tremenda subversão, sim, e um risco muito grande, pois o naturalista escrevia para o ministro Martinho de Mello e Castro. Feijó, o filósofo natural, não só foi ameaçado de morte como podia ter morrido de fome, de acidente ou de paludismo, nessas ilhas em que a crise e as doenças matavam regularmente mais de metade da população. Sobreviveu, tal como nós, decerto por um tremendo golpe de sorte. A missão foi sobretudo botânica, donde o «flosófico», como «florestal» ou «florístico», na sua ironia de cortar à faca, tem para nós, hoje, muita graça.

Ana Luísa Janeira, que visitou o horto botânico de Lineu, em Uppsala, na Suécia, e tantos outros espalhados pelo mundo, que tanto sobre eles escreveu, partilha com os filósofos naturais uma grande sensibilidade aos jardins. E com eles partilha também aquela tendência subversiva subjacente ao desejo de revolução, que usa, na inaplicabilidade da pólvora, as armas flosóficas.

Correm-se riscos na itinerância. Fique um relato deles para o dia 31 de março, nessa altura revelarei à Academia até onde pode ir a aventura e a descoberta (de nós e de outros) pela América do Sul, na companhia de Ana Luísa Janeira.

   
  (1) Programa no TriploV, em:

http://novaserie.revista.triplov.com/ana_luisa_janeira/sahfc/index.html

(2) «Feijó, naturalista brasileiro em Cabo Verde no século XVIII», por Maria Estela Guedes e Luís M. Arruda, e transcrições do «Itinerário Flosófico», em:http://www.triplov.com/hist_fil_ciencia/feijo/index.html

   
  Maria Estela Guedes
Casa dos Banhos, 15 de Março de 2011
 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Britiande, Portugal)
Foto: Ed. Guimarães

ALGUNS LIVROS
. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros Editora, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, Escrituras Editora, 2010. ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins (Gradiva, 2010). TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

   
 

 

© Maria Estela Guedes
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