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Como fica patente neste
número especial da Revista TriploV, o que define o magistério de Ana Luísa Janeira é a
sua itinerância. Vários participantes, em título ou em corpo de
texto, falam de viagens, e Celina Lértora usa inclusivamente a expressão
«nomadismo filosófico», com o qual ultrapassa a questão da viagem para
incidir no modo de vida da Ana Luísa. Com efeito, ela não pertence a uma tribo
pensante sedentária, agarrada à secretária e aos livros como os povos
agrários às sementeiras, sim ao tipo de "filósofos" que no século XVIII
abriram as portas da Europa ao conhecimento científico do mundo, então
quase na totalidade inexplorado e desconhecido, apesar de fazer parte de
impérios coloniais - Ásia, América e África. E porque Ana Luísa pratica
e estima esse tipo de filosofia ambulante - chamemos-lhe uma
peripatética no plano do exercício físico - por vezes comentava, com a
minha silenciosa discordância, que o último naturalista (filósofo
natural) português tinha sido o oceanógrafo Luiz Saldanha. Ana Luísa
distinguia-o pela viagem de descoberta, este cientista andou por todos
os mares nos mais diversos submarinos, navios e batiscafos, para além de
mergulhar em escafandro autónomo. É neste espírito «flosófico»,
de descoberta de novos mundos, de alargamento do meu horizonte de
conhecimentos, e também de viagem interior, que tenho acompanhado Ana
Luísa em algumas missões e itinerários, ora curtos, por Portugal, ora
imensos, e mesmo intermináveis, pela América, em especial América do
Sul.
Eu fui aluna de Ana Luísa em cursos vários,
ministrados não só por ela como por outros professores, alguns
razoavelmente assustadores (os professores, sim, e estou a lembrar-me de
um jovem, Dias de nome, se não erro, que dava excelentes aulas sobre
jardins, mas se encontrava em estado psíquico tão vulnerável que certo
dia me deixou em pânico, e de resto acabou por se suicidar), no CICTSUL,
quando o Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da
Universidade de Lisboa tinha sede num grande apartamento em Lisboa,
perto da Casa da Moeda. Entre alegrias e dissabores, zangas e
companheirismo, estive com ela em grandes ações educativas, artísticas,
e com base em investigação científica na área da História da História
Natural (no meu caso), como foram a Festa da Sciencia, que
envolveu desfile de dezenas de personagens históricas pela 7ª Colina, guiadas pelo fio da água de abastecimento a Lisboa (Aqueduto,
Mãe de Água, Patriarcal, com visita ao Aqueduto), uma sessão
de teatro em que fiz alguma dramaturgia, alguma escrita teatral e em que
desempenhei o papel de Baronesa do Castello de Paiva, quase
contracenando com o rei D. Carlos, interpretado pelo Prof. António
Ribeiro, que chegou de coche, acompanhado por banda de música e batalhão
de jovens da Academia Militar, subindo, assim espero, a escadaria da
porta principal do Museu em cima de passadeira vermelha. Espero, enfim,
porque me lembro de a ter ido pedir à igreja de S. Mamede, recebendo do
pároco um não acompanhado de acerbo comentário, estilo: «Minha senhora,
passadeiras vermelhas só nos casamentos, agora já ninguém se casa!».
Tome-se esta resposta como contributo da ficcionista para o
bom sucesso da historiografia. Adiante. Recordo vagamente que a Isabel
Serra, passando por aventura idêntica, conseguiu que alguém
emprestasse a cobiçada passadeira, para as estrelas aterrarem nela sem
sujar os pés na bruma... Para prova do que sem pudor afirmo, mais
recordo que as fatiotas de Bocages, Andrades Corvos, Baronesas, D.
Carlos e restante corpo docente da Polítécnica, em data que olvidei no
século XIX, foram cedidas pelo Teatro de São Carlos. O meu figurino
vinha direto de uma encenação de «Porgy and Bess». Podíamos lá passar
sem passadeira vermelha?!...
Outra grande ação ideada e liderada pela Ana Luísa, que me mobilizou
desde o gozo até ao desespero, foi a «Cultura-Natura», com exposições,
debates, publicações, localizados, como a «Festa da Sciencia», nos museus
da Escola Politécnica, mas que teve expansões por outros pontos do País
e no estrangeiro. Nunca me esquecerei da incursão da Alexandra Escudeiro
e minha pelas áreas restritas, inexploradas e desconhecidas do aeroporto
da Portela, para levantarmos uma apreendida "botica portátil de
Alexandre Rodrigues Ferreira", replicada sem modelo à vista numa
instituição científica brasileira - Instituto Butantan, especializado no
conhecimento de venenos ofídicos e seus antídotos? Se não, foi outra similar.
Desta resenha breve fica talvez patente um traço de estilo ligado à
itinerância filosófica, o risco (ou riso?) das fronteiras. A Professora
Ana Luísa Janeira é das pessoas que mais apaixonadamente vejo defenderem a
Academia, mas ela não é um Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
chamado Júlio Dantas (escritor que prezo, em especial nesse volume
notável em que nos ensina como namoravam os jovens no século XVIII - o
namoro de estaca é o meu modelo predileto)
atacável em manifesto por algum órfico artista de nome José de Almada
Negreiros, em cima de uma mesa da Brasileira, ao Chiado. A académica Ana
Luísa Janeira, com ações como a Festa da Sciencia e a CulturaNatura, tem
mais o perfil do próprio colega de Fernando Pessoa, esse Almada que foi
pintor, escritor, dançarino, etc., «narciso do Egypto, poeta futurista e
tudo», capaz de se erguer
nas suas tamanquinhas e perorar sobre Fazeres-Saberes e Saberes-Fazeres
em cima da mesa da Brasileira do Chiado, do Porto ou de outra qualquer
capital do mundo. Não é ela a personagem da foto que assino, a
representar um spot publicitário em que revela as virtudes do produto
com que pinta o cabelo de vermelho? Não está em cima da mesa, mas nem
por isso deixa de ser parceira de José de Almada Negreiros, «poeta
futurista, Narciso do Egypto e tudo». Que me perdoem a falta de rigor da
citação, escrevo de cor. Já porém a foto retrata a postura filosófica
sem gralhas nem qualquer deslize de memória. Deve ter sido difícil à Academia
conviver com uma académica tão anti-académica como Ana Luísa. Ela não
obedece ovinamente a modelos, nem transmite o modelo académico na sua
acéfala «reprodução infinita das imagens», para me embelezar com um
pouco de pó de arroz de Walter Benjamin. O seu
estilo intercomunicador e interdisciplinar, de outra parte, coloca-a na fronteira de
todos os saberes e de todos os fazeres. Ora o fazer arte, se tem raiz
genuína, é sempre anti-académico, viola sempre as normas, desobedece a
modelos, porque a arte
inova, descobre, inventa e cria, gestos todos eles de transgressão e violação dos limites
de modelos de pensar. Bem sei que o termo «flosóficos»,
no título da minha digressão literária, causa perplexidade, por duas razões: há
sinais nele de se tratar de uma citação, e é; o termo, de outra parte, não
deve figurar ainda nos dicionários, portanto é desconhecido. «Itinerário flosófico» é o título do
relatório da missão de João da Silva Feijó a Cabo Verde
(2). A pseudo-gralha implica uma tremenda
subversão, sim, e um risco muito grande, pois o naturalista escrevia para o ministro
Martinho de Mello e Castro. Feijó, o filósofo natural, não só foi
ameaçado de morte como podia ter morrido de fome, de acidente ou de
paludismo, nessas ilhas em que a crise e as doenças matavam regularmente
mais de metade da população. Sobreviveu, tal como nós, decerto por um
tremendo golpe de sorte. A missão foi sobretudo botânica, donde o «flosófico», como
«florestal» ou «florístico», na sua ironia de cortar à faca, tem para
nós, hoje, muita graça.
Ana Luísa Janeira, que visitou o horto botânico de
Lineu, em Uppsala, na Suécia, e tantos outros espalhados pelo mundo, que
tanto sobre eles escreveu, partilha com os filósofos naturais uma grande
sensibilidade aos jardins. E com eles partilha também aquela tendência
subversiva subjacente ao desejo de revolução, que usa, na
inaplicabilidade da pólvora, as armas flosóficas.
Correm-se riscos na itinerância. Fique um relato
deles para o dia 31 de março, nessa altura revelarei à Academia até onde
pode ir a aventura e a descoberta (de nós e de outros) pela América do
Sul, na companhia de Ana Luísa Janeira. |
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Maria Estela Guedes (1947, Britiande, Portugal)
Foto: Ed. Guimarães
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros Editora, 2010; "A obra ao rubro
de Herberto Helder", São Paulo, Escrituras Editora, 2010.
ALGUNS COLECTIVOS. "Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de
Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom
homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O
reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual.
Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”.
Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Dicionário Histórico das
Ordens e Instituições Afins (Gradiva, 2010). TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |