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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues |
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Maria Teresa Bispo
A PRIMEIRA VIAGEM
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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Com pouca bagagem, vimo-la aproximar-se
tranquila, numa cadência ritmada por mínimas, sem pressas. Passo
a passo observando tudo, mesmo o já conhecido, chega sempre até
nós com um comentário ou uma interrogação que, regra geral, nos
retira do momento pessoal, remetendo-nos para um patamar
excêntrico. Somos sempre surpreendidos pelas palavras e pelos
murmúrios positivos, tão discretos, quanto habituais. Assim é
Ana Luísa Janeira, a mulher que viveu o Maio de 68 em Paris, se
doutorou em Filosofia e resistiu à espessa sombra do Estado
Novo. A figura que pensou e desenvolveu projectos relacionados
com a memória, o coleccionismo e os jesuítas. A investigadora
que criou as Marcas das Ciências e das Técnicas nas Ruas de
Lisboa e o Turismo Científico e Tecnológico em Portugal. |
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Quando a conheci, estranhei. Havia algo nela tão
familiar e acessível, tão seguro e franco e, por outro lado, tão
diferente e inesperado, mesmo singular que as atitudes e as opiniões
clamavam, por isso, uma atenção própria. Apercebi-me, quase logo de
imediato, do imenso mundo que transporta à tona das relações e que
partilhava com a naturalidade dos sagazes cujo saber se sustenta na
humildade sobre o atributo do conhecimento. Relaciona-se com o abstracto
sem qualquer submissão, o exercício do cognitivo pressupõe a inclusão de
todos os saberes, mesmo os menos eruditos, partilhando sem qualquer
restrição o adquirido e as respectivas metodologias científicas. Deste
estar, decorre o rigor; da profusão de todos contributos - que nunca
nega a participações – assegura a diversidade; em Ana Luísa Janeira o
rigor é plural.
Mas verdadeiramente excepcional é a sua capacidade de
despojamento. Uma vez afirmou não ser uma mulher do negócio, nas sim do
ócio, pois precisa de vagar e tranquilidade para pensar. Todos os seus
pensamentos são frequentemente dispostos à mesa, para que todas as
ideias possam florescer e ganhar corpo próprio, passar ao modo de
autonomia. Para que sejam tomadas por outras mãos e possam ser moldadas
livremente. É por isso que a grande maioria dos seus projectos agregam
conjuntos variados de pessoas e de técnicos, ganhando a
pluridisciplinaridade. Sem perverter os princípios autorais, contrariou
a tendência de os inflacionar, naquilo de que se revestem os projectos
conjuntos, com grande e clara dádiva pessoal. Mas não se pense que este
comportamento intelectual é apenas uma atitude casuística e
contextualizada. A Ana Luísa Janeira tem a mania incomodativa de agir
assim em todos os planos da sua vida.
É, como bem sabem os que a conhecem, de uma grande
atenção para com o mundo que a rodeia, tanto o mais próximo na
filosofia, como o mais distante na geografia, sendo uma coleccionadora
inata de histórias e de vivências. Ser de grande profundidade e atenção
tem como hábito relacional oferecer as suas próprias coisas. As que
gosta, as que têm memória, as que são úteis, as que são belas, as que
são exóticas, as que comemoram, as que encerram, as que abrem, as que
lhe ofereceram, as que compra, sendo que qualquer delas elabora o médium
possível que descodifica parte de uma narrativa, que parece estar sempre
viva entre ela e cada um de nós. Nós somos os alunos, os amigos, os
familiares, os colaboradores, os estudiosos, os viajantes, mas também os
vizinhos e todas as pessoas sem nome, mas que ela distingue por uma
face, por um gesto, por uma casualidade entre gentes. Na realidade a Ana
Luísa partilha-se em cada objecto, em cada palavra, em cada pensamento,
em cada projecto, deixando-nos, por vezes, imobilizados, numa hipnose de
irrealidade decorrente da ausência de hábito, sem que o saibamos,
estamos ancorados e disso tomamos consciência quando nos interrompe a
inércia com uma frase do tipo: então não dizem nada?
É frugal, de grande simplicidade e sentido
utilitário. Precisa de muito pouco para viver, como tão bem tem disso
percepção, mas é na dialéctica entre a sua individualidade e o contexto
social consumista que se evidenciam todas as problemáticas entre o
privado e o público, entre o íntimo e o religioso, entre o laico e o
político, entre o docente e o discente, entre o esteta e o mundano. Como
pode fugir de si esta pessoa? Como se evade da própria rotina de pensar?
Como pensa filosofia e como pensa ciência? Como se propaga uma forma de
estar tão sóbria?
Como poderei eu escrever com critério e justiça sobre
um figura tão invulgar e transbordante? Tentando não me esquecer dos
pontos mais caracterizadores surge inevitável abordar um aparente
paradoxo e de que a Ana Luísa é titular. Por um lado é efectivamente uma
mulher de consensos. Por outro, é controversa? Sim, sim, também. E às
vezes muito. É controversa na forma de estar e de fazer. Nas opiniões e
sobretudo nas interrogações. É controversa na tolerância, sempre maior.
É controversa na predisposição, sempre livre. É controversa nas
consequências, pois a exiguidade de necessidades ditam uma mulher que
nada tem a perder, por isso frontal e destemida. Estas pessoas têm a
particularidade de nos habitarem, por influência de um modelo que
mansamente nos invade, aniquilando a indiferença perante nós próprios e
favorecendo a construção de ideias e ideais.
Na casa da Ana Luísa encontramos diversos
povoamentos, mas nenhuma colónia. Há uma imagética aromática de outras
paragens e de muitos livros. Pequenos e grandes objectos foram, em
tempo, deitados ao vento, repousam no agora sem qualquer protagonismo,
mas cada um tem um relato particular que esclarece qualquer segmento da
vida da nossa amiga. Com timidez quase os ouvimos segredar entre
prateleiras, com postais e fotografias, nos desenhos e nos mapas, à
frente de livros e cadernos, disfarçados por panos e leques. Ah, como
ela está longe de todos os piscares de olho de que somos alvo. Tremendo
o apelo à nossa curiosidade.
Que se pode dizer de casa de alguém que não é mais
que uma extensão do mundo, parcelado é certo, mas totalmente disponível,
aberto não apenas à contemplação, mas sedutor de todas as questões que
vamos elaborando com recato atrevido. As respostas chegam borbulhantes
mas serenas, contadas ao ritmo do calor intenso, para que possamos
saborear reflectidamente. Pensamos sempre: que privilégio! E instala-se
aquela sensação inigualável de estarmos perante alguém que não abarcamos
por completo. Estar à conversa com a Ana Luísa é um estágio na condição
humana. |
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Tal como no silêncio das planícies alentejanas, com
um horizonte aberto e amplo, mas igualmente inexpugnável pelo mistério e
imensidão, sentimos uma irresistível vontade de ceder a uma breve pausa
e admirar a noite estrelada que os prédios altos da cidade já traziam
esquecida. Foi nessas paragens de saudade e sem sombra que a nossa amiga
foi parar, lá para os lados de Montemor-Novo. Dividiu-se entre o ruído
frenético desta Lisboa cultural e a harmonia do Alentejo que nos espera
recostada entre os dourados veranis e os verdes pintalgados de frio. Foi
lá, certamente, que Ana Luísa pode pensar, pois por cá, só se consegue
fazer. O barulho das multidões, dos carros e de todas as coisas
afugentam qualquer tentativa de cogitações, todavia, a cadência redonda
de sons que já se esbateram adormece-nos e os automatismos tornam-se tão
fluentes, quanto eficazes. Assim, dirige-se à intensa Lisboa, para dar
aulas, para manter os projectos a andar, reunir aqui e acolá. Quando
exausta, verifica pontualmente que está na hora da camioneta, a mesma de
sempre, da ida e da vinda, aquela que constitui a quarentena entre os
dois lugares, entre a cidade e a planície, entre a azáfama e a quietude.
Ana Luísa Janeira, creio eu, não tem uma natureza
sedentária. À laia de confidência atrevo-me, não apenas, a afirmar que é
uma nómada, mas também que é uma nómada recolectora. Sente-se bem com um
bilhete na sacola – prática, de boa dimensão e com o essencial – a
expectativa do diferente e a possibilidade de aprender. Aprender coisas
e pessoas, apreender as pessoas nas coisas. Parece-me ser esta a razão
do dourado da sua casa e de tantas prateleiras. Viajar é-lhe mesmo muito
confortável, talvez até um imperativo. Mesmo agora enquanto escrevo
estas linhas a Ana Luísa encontra-se na Índia. Não me parece ser
fundamental descrever as suas viagens, mas é um impreterível recordar
como entre as Américas, a Latina ou a do Norte, entre a Europa e a Ásia,
a nossa amiga inspira a identidade do lugar e confronta-a com a da sua
origem; como isso favorece a tolerância e o bom senso; também a ciência
enquanto predisposto ético, mas sobretudo a cidadania que se realiza na
participação entre deveres e direitos.
Nesta época global o que importa é articular as
idiossincrasias sem que delas queiramos prescindir. É fazê-lo com a
ingenuidade da descoberta e da contemplação. Mas de igual modo, com a
maturidade do empenho e da distinção, entre as cedências possíveis e as
lutas incontornáveis. Cada viagem da Ana Luísa Janeira é um tombo no
mundo e no pensamento. É uma revisitação à humanidade, em que cada
objecto recolhido não se impõe como uma relíquia que se ostenta, mas tão
somente como um testemunho de diversidade cultural, técnica e até
científica. A nossa amiga possui aquela característica quase ingénua que
lhe permite saborear todos os momentos, antecipá-los de muitos modos,
descobrindo-os sempre com a mesma veemência e com a mesma curiosidade. |
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A Ana Luísa permanece aqui como em qualquer outro
lugar, inteira e disposta a partilhar o entusiasmo e a dúvida.
Observamo-la como a pessoa íntegra e equilibrada que sabe escutar.
Distinguimos com facilidade todos os contornos de um despojamento que
cultivou na vida e em todas as rotas que a levaram de um lugar para o
outro. Também lhe sentimos o entusiasmo jovial e o interesse
despretensioso, mas que a cultura académica contagia de métodos de
análise e reflexão. Encanta-nos, sobretudo, o seu viver sem pressa e o
seu olhar crítico, que emite sem alarido enquanto maneja uma chávena de
chá. Atrai-nos esta sua predisposição para levantar voo, sem temer
destinos, nem constrangimentos, chegando sempre ganhadora de práticas.
Tomara que cada um de nós, à semelhança da Ana Luísa
Janeira, pudesse encetar quaisquer jornadas como únicas e exclusivas,
vivenciar cada experiência como essencial e sermos capazes de
disponibilizar uma entrega tão total, quanto inesquecível, transformando
os desafios em viagens, revelando-as uma a uma como sendo sempre a
primeira.
Maria Teresa Bispo |
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Maria Teresa Bispo (Portugal)
Licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa; Mestre em Arte, Património e Restauro
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Bolseira da Fundação
Calouste de Gulbenkian; Formadora para a área do Património Artístico e
Cultural das Cidades e para a área do Voluntariado Cultural; Técnica
Superior Assessora do Departamento de Património Cultural da Câmara
Municipal de Lisboa; Coordenação da Colecção "Lisboa, Arte e Património"
da Câmara Municipal de Lisboa; Coordenação de trabalhos de conservação e
restauro em Arte Pública e Património de que se destacam o Teatro
Municipal S. Luiz, Teatro Nacional D. Maria II, D. Pedro IV e Fonte do
Neptuno; entre os últimos trabalhos publicados refere-se "Sobre Arte
Pública, Lisboa e os seus Cultos", Associação de Arqueólogos
Portugueses, 2000; em co-autoria, "Estatuária e Escultura Urbana de
Lisboa: Roteiro", Câmara Municipal de Lisboa, 2005; "O Lugar do Plinto:
Nexo. Propósito e Devir" in ARTIS - Revista do Instituto de História da
Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 5, 2006 e "Escultura Urbana e
Esfera Pública: Esquisso para uma Dialéctica da Ambiguidade" in FORUM
SOCIOLÓGICO, nº 15/16, 2006; entre outras, participou com as seguintes
comunicações "Arte Pública e Património: Dialéctica entre Substância e
Praxis", Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005"; em
co-autoria "A Singularidade do Lugar Comum: Algumas Acções de Divulgação
de Arte Pública", Casa da Cerca, 2006 e "Entre o Movimento e o
Estabilizado: O Paradigma da Rotunda" ISCTE no âmbito do FICYUrb, Junho
2007. Na lírica publicou "Pedaços de Ontem", Eurosigno, 1992 e alguns
poemas em antologia. Prefaciou diversas obras dedicadas ao tema da
Surdez |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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