REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

Maria Teresa Bispo

A PRIMEIRA VIAGEM

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Com pouca bagagem, vimo-la aproximar-se tranquila, numa cadência ritmada por mínimas, sem pressas. Passo a passo observando tudo, mesmo o já conhecido, chega sempre até nós com um comentário ou uma interrogação que, regra geral, nos retira do momento pessoal, remetendo-nos para um patamar excêntrico. Somos sempre surpreendidos pelas palavras e pelos murmúrios positivos, tão discretos, quanto habituais. Assim é Ana Luísa Janeira, a mulher que viveu o Maio de 68 em Paris, se doutorou em Filosofia e resistiu à espessa sombra do Estado Novo. A figura que pensou e desenvolveu projectos relacionados com a memória, o coleccionismo e os jesuítas. A investigadora que criou as Marcas das Ciências e das Técnicas nas Ruas de Lisboa e o Turismo Científico e Tecnológico em Portugal.

 

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Quando a conheci, estranhei. Havia algo nela tão familiar e acessível, tão seguro e franco e, por outro lado, tão diferente e inesperado, mesmo singular que as atitudes e as opiniões clamavam, por isso, uma atenção própria. Apercebi-me, quase logo de imediato, do imenso mundo que transporta à tona das relações e que partilhava com a naturalidade dos sagazes cujo saber se sustenta na humildade sobre o atributo do conhecimento. Relaciona-se com o abstracto sem qualquer submissão, o exercício do cognitivo pressupõe a inclusão de todos os saberes, mesmo os menos eruditos, partilhando sem qualquer restrição o adquirido e as respectivas metodologias científicas. Deste estar, decorre o rigor; da profusão de todos contributos - que nunca nega a participações – assegura a diversidade; em Ana Luísa Janeira o rigor é plural.

Mas verdadeiramente excepcional é a sua capacidade de despojamento. Uma vez afirmou não ser uma mulher do negócio, nas sim do ócio, pois precisa de vagar e tranquilidade para pensar. Todos os seus pensamentos são frequentemente dispostos à mesa, para que todas as ideias possam florescer e ganhar corpo próprio, passar ao modo de autonomia. Para que sejam tomadas por outras mãos e possam ser moldadas livremente. É por isso que a grande maioria dos seus projectos agregam conjuntos variados de pessoas e de técnicos, ganhando a pluridisciplinaridade. Sem perverter os princípios autorais, contrariou a tendência de os inflacionar, naquilo de que se revestem os projectos conjuntos, com grande e clara dádiva pessoal. Mas não se pense que este comportamento intelectual é apenas uma atitude casuística e contextualizada. A Ana Luísa Janeira tem a mania incomodativa de agir assim em todos os planos da sua vida.

É, como bem sabem os que a conhecem, de uma grande atenção para com o mundo que a rodeia, tanto o mais próximo na filosofia, como o mais distante na geografia, sendo uma coleccionadora inata de histórias e de vivências. Ser de grande profundidade e atenção tem como hábito relacional oferecer as suas próprias coisas. As que gosta, as que têm memória, as que são úteis, as que são belas, as que são exóticas, as que comemoram, as que encerram, as que abrem, as que lhe ofereceram, as que compra, sendo que qualquer delas elabora o médium possível que descodifica parte de uma narrativa, que parece estar sempre viva entre ela e cada um de nós. Nós somos os alunos, os amigos, os familiares, os colaboradores, os estudiosos, os viajantes, mas também os vizinhos e todas as pessoas sem nome, mas que ela distingue por uma face, por um gesto, por uma casualidade entre gentes. Na realidade a Ana Luísa partilha-se em cada objecto, em cada palavra, em cada pensamento, em cada projecto, deixando-nos, por vezes, imobilizados, numa hipnose de irrealidade decorrente da ausência de hábito, sem que o saibamos, estamos ancorados e disso tomamos consciência quando nos interrompe a inércia com uma frase do tipo: então não dizem nada?

É frugal, de grande simplicidade e sentido utilitário. Precisa de muito pouco para viver, como tão bem tem disso percepção, mas é na dialéctica entre a sua individualidade e o contexto social consumista que se evidenciam todas as problemáticas entre o privado e o público, entre o íntimo e o religioso, entre o laico e o político, entre o docente e o discente, entre o esteta e o mundano. Como pode fugir de si esta pessoa? Como se evade da própria rotina de pensar? Como pensa filosofia e como pensa ciência? Como se propaga uma forma de estar tão sóbria?

Como poderei eu escrever com critério e justiça sobre um figura tão invulgar e transbordante? Tentando não me esquecer dos pontos mais caracterizadores surge inevitável abordar um aparente paradoxo e de que a Ana Luísa é titular. Por um lado é efectivamente uma mulher de consensos. Por outro, é controversa? Sim, sim, também. E às vezes muito. É controversa na forma de estar e de fazer. Nas opiniões e sobretudo nas interrogações. É controversa na tolerância, sempre maior. É controversa na predisposição, sempre livre. É controversa nas consequências, pois a exiguidade de necessidades ditam uma mulher que nada tem a perder, por isso frontal e destemida. Estas pessoas têm a particularidade de nos habitarem, por influência de um modelo que mansamente nos invade, aniquilando a indiferença perante nós próprios e favorecendo a construção de ideias e ideais.

Na casa da Ana Luísa encontramos diversos povoamentos, mas nenhuma colónia. Há uma imagética aromática de outras paragens e de muitos livros. Pequenos e grandes objectos foram, em tempo, deitados ao vento, repousam no agora sem qualquer protagonismo, mas cada um tem um relato particular que esclarece qualquer segmento da vida da nossa amiga. Com timidez quase os ouvimos segredar entre prateleiras, com postais e fotografias, nos desenhos e nos mapas, à frente de livros e cadernos, disfarçados por panos e leques. Ah, como ela está longe de todos os piscares de olho de que somos alvo. Tremendo o apelo à nossa curiosidade.

Que se pode dizer de casa de alguém que não é mais que uma extensão do mundo, parcelado é certo, mas totalmente disponível, aberto não apenas à contemplação, mas sedutor de todas as questões que vamos elaborando com recato atrevido. As respostas chegam borbulhantes mas serenas, contadas ao ritmo do calor intenso, para que possamos saborear reflectidamente. Pensamos sempre: que privilégio! E instala-se aquela sensação inigualável de estarmos perante alguém que não abarcamos por completo. Estar à conversa com a Ana Luísa é um estágio na condição humana.

 

 

Tal como no silêncio das planícies alentejanas, com um horizonte aberto e amplo, mas igualmente inexpugnável pelo mistério e imensidão, sentimos uma irresistível vontade de ceder a uma breve pausa e admirar a noite estrelada que os prédios altos da cidade já traziam esquecida. Foi nessas paragens de saudade e sem sombra que a nossa amiga foi parar, lá para os lados de Montemor-Novo. Dividiu-se entre o ruído frenético desta Lisboa cultural e a harmonia do Alentejo que nos espera recostada entre os dourados veranis e os verdes pintalgados de frio. Foi lá, certamente, que Ana Luísa pode pensar, pois por cá, só se consegue fazer. O barulho das multidões, dos carros e de todas as coisas afugentam qualquer tentativa de cogitações, todavia, a cadência redonda de sons que já se esbateram adormece-nos e os automatismos tornam-se tão fluentes, quanto eficazes. Assim, dirige-se à intensa Lisboa, para dar aulas, para manter os projectos a andar, reunir aqui e acolá. Quando exausta, verifica pontualmente que está na hora da camioneta, a mesma de sempre, da ida e da vinda, aquela que constitui a quarentena entre os dois lugares, entre a cidade e a planície, entre a azáfama e a quietude.

Ana Luísa Janeira, creio eu, não tem uma natureza sedentária. À laia de confidência atrevo-me, não apenas, a afirmar que é uma nómada, mas também que é uma nómada recolectora. Sente-se bem com um bilhete na sacola – prática, de boa dimensão e com o essencial – a expectativa do diferente e a possibilidade de aprender. Aprender coisas e pessoas, apreender as pessoas nas coisas. Parece-me ser esta a razão do dourado da sua casa e de tantas prateleiras. Viajar é-lhe mesmo muito confortável, talvez até um imperativo. Mesmo agora enquanto escrevo estas linhas a Ana Luísa encontra-se na Índia. Não me parece ser fundamental descrever as suas viagens, mas é um impreterível recordar como entre as Américas, a Latina ou a do Norte, entre a Europa e a Ásia, a nossa amiga inspira a identidade do lugar e confronta-a com a da sua origem; como isso favorece a tolerância e o bom senso; também a ciência enquanto predisposto ético, mas sobretudo a cidadania que se realiza na participação entre deveres e direitos.

Nesta época global o que importa é articular as idiossincrasias sem que delas queiramos prescindir. É fazê-lo com a ingenuidade da descoberta e da contemplação. Mas de igual modo, com a maturidade do empenho e da distinção, entre as cedências possíveis e as lutas incontornáveis. Cada viagem da Ana Luísa Janeira é um tombo no mundo e no pensamento. É uma revisitação à humanidade, em que cada objecto recolhido não se impõe como uma relíquia que se ostenta, mas tão somente como um testemunho de diversidade cultural, técnica e até científica. A nossa amiga possui aquela característica quase ingénua que lhe permite saborear todos os momentos, antecipá-los de muitos modos, descobrindo-os sempre com a mesma veemência e com a mesma curiosidade.

 
 

A Ana Luísa permanece aqui como em qualquer outro lugar, inteira e disposta a partilhar o entusiasmo e a dúvida. Observamo-la como a pessoa íntegra e equilibrada que sabe escutar. Distinguimos com facilidade todos os contornos de um despojamento que cultivou na vida e em todas as rotas que a levaram de um lugar para o outro. Também lhe sentimos o entusiasmo jovial e o interesse despretensioso, mas que a cultura académica contagia de métodos de análise e reflexão. Encanta-nos, sobretudo, o seu viver sem pressa e o seu olhar crítico, que emite sem alarido enquanto maneja uma chávena de chá. Atrai-nos esta sua predisposição para levantar voo, sem temer destinos, nem constrangimentos, chegando sempre ganhadora de práticas.

Tomara que cada um de nós, à semelhança da Ana Luísa Janeira, pudesse encetar quaisquer jornadas como únicas e exclusivas, vivenciar cada experiência como essencial e sermos capazes de disponibilizar uma entrega tão total, quanto inesquecível, transformando os desafios em viagens, revelando-as uma a uma como sendo sempre a primeira.

Maria Teresa Bispo

 

 

 

Maria Teresa Bispo (Portugal)
Licenciada em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Mestre em Arte, Património e Restauro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Bolseira da Fundação Calouste de Gulbenkian; Formadora para a área do Património Artístico e Cultural das Cidades e para a área do Voluntariado Cultural; Técnica Superior Assessora do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa; Coordenação da Colecção "Lisboa, Arte e Património" da Câmara Municipal de Lisboa; Coordenação de trabalhos de conservação e restauro em Arte Pública e Património de que se destacam o Teatro Municipal S. Luiz, Teatro Nacional D. Maria II, D. Pedro IV e Fonte do Neptuno; entre os últimos trabalhos publicados refere-se "Sobre Arte Pública, Lisboa e os seus Cultos", Associação de Arqueólogos Portugueses, 2000; em co-autoria, "Estatuária e Escultura Urbana de Lisboa: Roteiro", Câmara Municipal de Lisboa, 2005; "O Lugar do Plinto: Nexo. Propósito e Devir" in ARTIS - Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, nº 5, 2006 e "Escultura Urbana e Esfera Pública: Esquisso para uma Dialéctica da Ambiguidade" in FORUM SOCIOLÓGICO, nº 15/16, 2006; entre outras, participou com as seguintes comunicações "Arte Pública e Património: Dialéctica entre Substância e Praxis", Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2005"; em co-autoria "A Singularidade do Lugar Comum: Algumas Acções de Divulgação de Arte Pública", Casa da Cerca, 2006 e "Entre o Movimento e o Estabilizado: O Paradigma da Rotunda" ISCTE no âmbito do FICYUrb, Junho 2007. Na lírica publicou "Pedaços de Ontem", Eurosigno, 1992 e alguns poemas em antologia. Prefaciou diversas obras dedicadas ao tema da Surdez

 

 

© Maria Estela Guedes
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