REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

JOSÉ CASQUILHO

Mistério do portal da igreja da Conceição Velha

 

Dedico à Ana Luísa Janeira, por ocasião da sua festa, recordando passeios em Teotihuacan e Chichen Itza, e ainda nas medinas de Fez e Mazagão.

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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A primeira paragem foi logo à porta principal da Sé: «Real! Real! Real! Pelo mui alto e mui poderoso rei D. João, nosso senhor» (...). Dali moveram-se até à Porta do Ferro no começo da Padaria. Ficaram quedos e gritaram «Real». Desceram Padaria
abaixo e passando à Porta da Alfândega, antes do Pelourinho,
outra vez se fizeram ouvir as vozes.
António Borges Coelho [I]

Este jogo de oscilações entre as formas e a história é um jogo de oscilações entre estruturas e eventos, entre configurações fisicamente estáveis (e descritíveis objetivamente enquanto formas significantes) e o jogo
mutável dos acontecimentos
que lhes conferem novos significados
.
Umberto Eco [II]

Bien que non perceptible, la valeur esthétique se présente
comme finalité dans la perception
.
Jean Petitot [III]

Junto à Sé, passou por mim um grupo de mulheres como se fugissem de alguma invasão, mas nenhuma delas fez nada para me deter ou me avisar. Seriam andorinhas a fugir do faraó? Não reparei nos rostos e, apesar de tudo o que os bispos possam dizer, o ruído que faz um judeu a fugir à morte não é diferente de um cristão. No exterior da Igreja da Madalena estava um grupo de rapazes empunhando enxadas a alviões. Acabei por dar por mim na Rua Nova de El-Rei, junto à Igreja da Misericórdia. Richard Zimler [IV]

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

 

Tenho em mãos, e assim vos passo, um mistério da igreja da Conceição Velha, ou dos Freires, destruída com o incêndio do terramoto de 1755 em Lisboa [a], e diz-se que era a antiga sinagoga grande, depois reconvertida em templo cristão no tempo do rei Manuel I. Hoje chama-se Conceição Velha à que antes era a Igreja da Misericórdia, na rua da Alfândega perto do Terreiro do Paço, também reconstruída após o terramoto [b], mantendo o magnífico portal onde se enquadra o programa iconográfico da Virgem da Misericórdia, terminando ao alto na cruz da ordem de Cristo centrada entre duas esferas armilares - motivo que faz recordar a janela da sala do Capítulo em Tomar. Sob o tímpano, entrosada entre as duas portas, no eixo de simetria do portal, tem-se representada a Justiça.

 

 

Fig. 1 – Portal da Igreja da Conceição Velha, antiga Igreja da Misericórdia

 

Para nos podermos orientar na pesquisa segue-se na figura 2 um trecho da gravura de Giorgio Braunio datada de 1593, da obra Urbium proecipuaram mundi theatrum quintum; é no entanto possível que a gravura tenha sido desenhada umas décadas antes. Ainda assim considera-se a representação mais minuciosa que existe da Lisboa quinhentista.

 

 

Fig. 2 – Trecho da gravura de Braunio da cidade de Lisboa, segunda metade do sec. XVI

 

Este trecho da gravura é dominado pela presença dominante da Sé ou igreja de Santa Maria Maior (79), bonita construção maciça românica, com acrescentos góticos e reconstruções posteriores, erguida em lugar onde teria existido uma mesquita ao tempo da conquista de Lisboa em 1147, e ainda há notícia de que poderia ter sido o local do tempo de Apolo no fórum romano.

 

 

Fig. 3 - Sé de Lisboa ou igreja de Santa Maria Maior

 

Seguindo da Sé para a esquerda na gravura (direção: poente) temos a igreja de Santo Antonio (122), depois passava-se pela Porta do Ferro (41) sob o Arco da Consolação (121) e encontra-se a igreja de Santa Maria Madalena (81) a que se seguia, na mesma direção, a igreja de Nossa Senhora da Conceição (82). Diz-nos Dejanirah Couto [c] que a judiaria era atravessada por uma artéria principal, a Rua dos Mercadores, que, depois de S. Julião, desembocava na grande sinagoga, e uma lei de 1390 dizia que ao cair da noite os não-judeus tinham de abandonar o bairro, cujas sete portas eram então fechadas. Na parte inferior da gravura, entre as portas da cerca ou muralha números 70 e 71 está um grande edifício com o número 123 no telhado, referenciado como templo da Misericórdia. Esse templo foi mandado construir pela rainha D. Leonor, mulher de João II - a princesa mais rica da Europa do seu tempo [d]-, na primeira metade do século XVI [e], e a fundação das misericórdias é obra que até hoje persiste com imenso património, não só em Portugal. A rainha Leonor era uma mulher poderosa, conseguiu fazer rei de Portugal seu irmão Manuel, duque de Beja, e adotou como símbolo pessoal o camaroeiro.

O programa narrativo, ou a retórica da imagem expressa no tímpano do portal da igreja (fig. 4) é eloquente: sob a figura do feminino sacralizado, dois anjos tenentes seguram a capa que protege os poderes terrenos, masculinos, submetidos ou tutelados.

 

 

Fig. 4 – tímpano da igreja da Conceição Velha, ex-Misericórdia

 

Recordando Eco [f], a semiose é o processo pelo qual os indivíduos empíricos comunicam, e os processos de comunicação são tornados possíveis pelos sistemas de significação, e isto não é um asserto metafísico: é uma assunção metodológica. Umberto Eco ainda classifica o tímpano como elemento conotando uma função segunda, simbólica, dentro dos códigos semânticos arquitetônicos [g]. Atente-se que um ícone continua sendo um ícone mesmo quando – como observava Peirce – se refere a um objeto inventado, fictício [h], e ainda que um conjunto de singularidades corresponde a cada série de uma estrutura, e inversamente, cada singularidade é fonte de uma série que se estende em uma direção determinada até à vizinhança de uma outra singularidade [i]. Finalmente, atenda-se a que um sistema não é um retrato epistémico do real mas antes uma construção lógica [j].

Um programa narrativo não é apenas ideológico, pode mesmo dizer-se que este que é político: do lado esquerdo estão representados os dignitários eclesiásticos, com o papa Leão X à frente, cardeais e bispos, enquanto que do outro lado está o poder temporal: o imperador antecede Manuel de Portugal e outros. Com eixo de simetria definido entre a figura da Justiça e a cruz da ordem de Cristo ergue-se um programa de enunciação e legitimação dos poderes constituídos numa boa parte do mundo europeu desse tempo, imposto como católico e universal. Ao eixo vertical da ascensão é necessário contrapor um eixo horizontal de leitura para obter o programa narrativo. A linguagem arquitetônica não é serial, linear, sendo realmente tridimensional a máxima redução que podemos fazer é planar: exige pelo menos duas direções concorrentes e os elementos e sintagmas de pedra são pois articuláveis de várias maneiras.

Mas se este é o portal da igreja atualmente designada da Conceição Velha, há notícia de que o portal da antiga igreja desse nome é o que está hoje na porta da igreja de (Santa Maria) Madalena [k], representada pelo número 81 da gravura de Braunio e que está na figura 5. É uma igreja que foi mandada construir por Afonso Henriques após a tomada da cidade, perto de uma das portas da cerca moura, havendo ainda notícia de que nesse lugar, ou perto, poderia ter estado o antigo templo romano dedicado a Cibele. No entanto foi objeto de muitas intervenções e reconstruções, nomeadamente no reinado de Maria I.

 

 

Fig. 5 – Portal da igreja da Madalena

 

O portal está de tal forma perfeito e bem conservado que é difícil imaginar que tenha sobrevindo assim ao terramoto e ao incêndio na primitiva igreja da Conceição dos Freires, melhor seria, mas antes será mais provável que se trate de uma obra neomanuelina posterior, quiça imitando ou incorporando elementos do portal original da igreja da Conceição, num enquadramento neoclássico. Repete-se o padrão das duas esferas armilares, dois mundos, separados na cúspide central por uma estrutura octogonal formando um vértice, como se fosse uma torrinha ou charola, com flores, imersa num pentágono cuspóide. Terá uma função segunda, simbólica, mas também uma função primeira, de suporte estrutural.

 

 

Fig. 6 – Vértice do portal da Madalena

 

O portal da igreja de Nossa Senhora dos Remédios em Alfama, antiga ermida do Espírito Santo, é manuelino, com um eixo de simetria onde sucedem em ordem ascendente: a pomba, a coroa e a cruz, atributos simbólicos do culto do Espírito Santo [l]. Aí se misturam arcos e cúspides fazendo recordar o portal da Madalena, e os elementos laterais simétricos são agora vegetalistas, florais.

 

 

Fig. 7 – portal da igreja dos Remédios em Alfama

 

Comparando com o portal românico da Sé, é como se os arcos sobranceiros deste último se tivessem dobrado ou cruzado naquilo que se pode interpretar como sendo uma modalidade de desdobramento universal em geometria diferencial - no âmbito dos modelos matemáticos da morfogênese - três cúspides ligadas, como no caso da borboleta por exemplo [m]. Tal poderá não ser estranho ao que Arnold menciona: qualquer singularidade de uma aplicação diferenciável de uma superfície espacial num plano, após pequenas perturbações, gera dobras e cúspides, e essas são as unicas singularidades estruturalmente estáveis [n], as que persistem. Jean Petitot refere a deixis, também se poderia dizer a dixis, como um sistema de indicadores. O termo deixis, no sentido lato da linguagem, comporta múltiplas valências de sentido ligadas à etimologia [ver o].

As duas esferas armilares estão presentes também na Crónica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão, escrita no século XVI, a próposito da qual se analisou o desdobramento geográfico da cidade de Lisboa na época manuelina, esboçado numa cúspide onde se distinguem modalidades de vivência e simetrias [ver p]. Nessa iluminura, o eixo de simetria apontado a Sul vai do castelo para o escudo de armas do rei de Portugal, representado com oito castelos amparado por anjos tenentes. Brandt distingue entre signos naturais, convencionais, e intencionais, sendo estes últimos os que se negoceiam entre indivíduos no processo de comunicação [q]. Em síntese, mesmo ficando por saber se o portal da Madalena é o da antiga Conceição dos Freires, pode então dizer-se que da clausura dos arcos românicos emerge o arco ogival gótico ascendente, bifurca em portas duplas, e se expande em várias direções, formando uma deixis de cúspides e arcos, associadas a esferas e outros elementos, simbolizando mundos.

 

 

  Notas
 

[I] António Borges Coelho, Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista, Editorial Caminho, Lisboa, 2006, p: 18

[II] Umberto Eco, A Estrutura Ausente (7ª ed.), Perspectiva Editora SA, São Paulo, 2007 p: 210

[III] Jean Petitot, Morphologie et Esthétique, Maisonneuve & Larose, Paris, 2004, p :102

[IV] Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, Quetzal Editores, Lisboa, 1996, p: 72/3

[a] António Borges Coelho, Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista, Editorial Caminho, Lisboa, 2006, p: 10

[b] http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=317

[c] Dejanirah Couto, História de Lisboa, editora Gótica, Lisboa, 2003, pag: 87/8

[d] http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonor_de_Viseu,_Rainha_de_Portugal

[e] Ana Cristina Lourenço, Helena Pinto Janeiro, Lisboa – freguesia da Sé, Contexto Editora  Lda, Lisboa, 1992, p:11

[f] Umberto Eco, Tratado Geral de Semiótica (4ª ed). Perspectiva Editora SA, São Paulo, 2007, pag: 257

[g] Umberto Eco, A Estrutura Ausente (7ª ed), Perspectiva Editora SA, São Paulo, 2007, pag: 221

[h] Elizabeth Walther-Bense, A Teoria Geral dos Signos, Editora Perspectiva, São Paulo, 2000, p: 15

[i] Gilles Deleuze, Lógica do Sentido (4ª ed.), Editora Perspectiva, São Paulo, 2006, p: 55

[j] José Augusto Mourão e Maria Augusta Babo, Semiótica – Genealogias e Cartografias, MinervaCoimbra, Coimbra, 2007, p: 214

[k] Lisboa Quinhentista – a imagem e a vida da cidade (catálogo de exposição, coord: Irisalva Moita), Museu da Cidade, ed. CML, 1983, p:55

[l] José Pinto Casquilho, Esteios da lusofonia - Do culto do Espírito Santo. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, nº 7, 2010, http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_07/jose_casquilho/index.html

[m] José Pinto Casquilho, Morfogénese: borboleta cauda de andorinha, Triplov, 2009,  http://www.triplov.com/casquilho/2009/Morfogenese/index.html

[n] Vladimir I. Arnold, Catastrophe Theory (2nd ed.), Springer-Verlag, Berlin, 1986, p:5

[o] Roberto Acízelo de Sousa. Deixis, E-Dicionário de Termos Literários, (coord: Carlos Ceia),

http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=712&Itemid=2

[p] Isabel Marcos, Urban Universals, Semiosis and Catastrophes – René Thom’s Semiotic Heritage, (W. Widen & Per Aage Brandt, eds.), Peter Lang, Bern, v. 10: 101-126, 2010.

[q] Per Aage Brandt, Prégnances et catastrophes, Semiosis and Catastrophes – René Thom’s Semiotic Heritage, (W. Widen & Per Aage Brandt, eds.), Peter Lang, Bern, v. 10: 167-182, 2010.

 

 

 

José Pinto Casquilho.
Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL),
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
(CECL/UNL).
josecasquilho@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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