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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues |
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JOSÉ CASQUILHO
Mistério do portal da igreja
da Conceição Velha
Dedico à Ana Luísa Janeira, por ocasião da sua
festa, recordando passeios em Teotihuacan e Chichen Itza, e
ainda nas medinas de Fez e Mazagão. |
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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A primeira paragem foi logo à porta
principal da Sé: «Real! Real! Real! Pelo mui alto e mui poderoso rei
D. João, nosso senhor» (...). Dali moveram-se até à Porta do Ferro
no começo da Padaria. Ficaram quedos e gritaram «Real». Desceram
Padaria
abaixo e passando à Porta da Alfândega, antes do Pelourinho,
outra vez se fizeram ouvir as vozes.
António Borges Coelho [I]
Este jogo de oscilações entre as
formas e a história é um jogo de oscilações entre estruturas e
eventos, entre configurações fisicamente estáveis (e descritíveis
objetivamente enquanto formas significantes) e o jogo
mutável dos acontecimentos
que lhes conferem novos significados.
Umberto Eco [II]
Bien que non
perceptible, la valeur esthétique se présente
comme finalité dans la perception.
Jean Petitot [III]
Junto à Sé, passou por mim um
grupo de mulheres como se fugissem de alguma invasão, mas nenhuma
delas fez nada para me deter ou me avisar. Seriam andorinhas a fugir
do faraó? Não reparei nos rostos e, apesar de tudo o que os bispos
possam dizer, o ruído que faz um judeu a fugir à morte não é
diferente de um cristão. No exterior da Igreja da Madalena estava um
grupo de rapazes empunhando enxadas a alviões. Acabei por dar por
mim na Rua Nova de El-Rei, junto à Igreja da Misericórdia.
Richard Zimler [IV] |
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Tenho em mãos, e assim vos passo, um mistério da
igreja da Conceição Velha, ou dos Freires, destruída com o incêndio do
terramoto de 1755 em Lisboa [a], e diz-se que era a antiga sinagoga
grande, depois reconvertida em templo cristão no tempo do rei Manuel I.
Hoje chama-se Conceição Velha à que antes era a Igreja da Misericórdia,
na rua da Alfândega perto do Terreiro do Paço, também reconstruída após
o terramoto [b], mantendo o magnífico portal onde se enquadra o programa
iconográfico da Virgem da Misericórdia, terminando ao alto na cruz da
ordem de Cristo centrada entre duas esferas armilares - motivo que faz
recordar a janela da sala do Capítulo em Tomar. Sob o tímpano, entrosada
entre as duas portas, no eixo de simetria do portal, tem-se representada
a Justiça. |
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Fig. 1 – Portal da Igreja da Conceição
Velha, antiga Igreja da Misericórdia |
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Para nos podermos orientar na pesquisa segue-se na
figura 2 um trecho da gravura de Giorgio Braunio datada de 1593, da obra
Urbium proecipuaram mundi theatrum quintum; é no entanto possível que a
gravura tenha sido desenhada umas décadas antes. Ainda assim
considera-se a representação mais minuciosa que existe da Lisboa
quinhentista. |
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Fig. 2 – Trecho da gravura de Braunio
da cidade de Lisboa, segunda metade do sec. XVI |
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Este trecho da gravura é dominado pela presença
dominante da Sé ou igreja de Santa Maria Maior (79), bonita construção
maciça românica, com acrescentos góticos e reconstruções posteriores,
erguida em lugar onde teria existido uma mesquita ao tempo da conquista
de Lisboa em 1147, e ainda há notícia de que poderia ter sido o local do
tempo de Apolo no fórum romano. |
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Fig. 3 - Sé
de Lisboa ou igreja de Santa Maria Maior |
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Seguindo da Sé para a esquerda na gravura (direção:
poente) temos a igreja de Santo Antonio (122), depois passava-se pela
Porta do Ferro (41) sob o Arco da Consolação (121) e encontra-se a
igreja de Santa Maria Madalena (81) a que se seguia, na mesma direção, a
igreja de Nossa Senhora da Conceição (82). Diz-nos Dejanirah Couto [c]
que a judiaria era atravessada por uma artéria principal, a Rua dos
Mercadores, que, depois de S. Julião, desembocava na grande sinagoga, e
uma lei de 1390 dizia que ao cair da noite os não-judeus tinham de
abandonar o bairro, cujas sete portas eram então fechadas. Na parte
inferior da gravura, entre as portas da cerca ou muralha números 70 e 71
está um grande edifício com o número 123 no telhado, referenciado como
templo da Misericórdia. Esse templo foi mandado construir pela rainha D.
Leonor, mulher de João II - a princesa mais rica da Europa do seu tempo
[d]-, na primeira metade do século XVI [e], e a fundação das
misericórdias é obra que até hoje persiste com imenso património, não só
em Portugal. A rainha Leonor era uma mulher poderosa, conseguiu fazer
rei de Portugal seu irmão Manuel, duque de Beja, e adotou como símbolo
pessoal o camaroeiro.
O programa narrativo, ou a retórica da imagem
expressa no tímpano do portal da igreja (fig. 4) é eloquente: sob a
figura do feminino sacralizado, dois anjos tenentes seguram a capa que
protege os poderes terrenos, masculinos, submetidos ou tutelados. |
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Fig. 4 –
tímpano da igreja da Conceição Velha, ex-Misericórdia |
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Recordando Eco [f], a semiose é o processo pelo qual
os indivíduos empíricos comunicam, e os processos de comunicação são
tornados possíveis pelos sistemas de significação, e isto não é um
asserto metafísico: é uma assunção metodológica. Umberto Eco ainda
classifica o tímpano como elemento conotando uma função segunda,
simbólica, dentro dos códigos semânticos arquitetônicos [g]. Atente-se
que um ícone continua sendo um ícone mesmo quando – como observava
Peirce – se refere a um objeto inventado, fictício [h], e ainda que um
conjunto de singularidades corresponde a cada série de uma estrutura, e
inversamente, cada singularidade é fonte de uma série que se estende em
uma direção determinada até à vizinhança de uma outra singularidade [i].
Finalmente, atenda-se a que um sistema não é um retrato epistémico do
real mas antes uma construção lógica [j].
Um programa narrativo não é apenas ideológico, pode
mesmo dizer-se que este que é político: do lado esquerdo estão
representados os dignitários eclesiásticos, com o papa Leão X à frente,
cardeais e bispos, enquanto que do outro lado está o poder temporal: o
imperador antecede Manuel de Portugal e outros. Com eixo de simetria
definido entre a figura da Justiça e a cruz da ordem de Cristo ergue-se
um programa de enunciação e legitimação dos poderes constituídos numa
boa parte do mundo europeu desse tempo, imposto como católico e
universal. Ao eixo vertical da ascensão é necessário contrapor um eixo
horizontal de leitura para obter o programa narrativo. A linguagem
arquitetônica não é serial, linear, sendo realmente tridimensional a
máxima redução que podemos fazer é planar: exige pelo menos duas
direções concorrentes e os elementos e sintagmas de pedra são pois
articuláveis de várias maneiras.
Mas se este é o portal da igreja atualmente designada
da Conceição Velha, há notícia de que o portal da antiga igreja desse
nome é o que está hoje na porta da igreja de (Santa Maria) Madalena [k],
representada pelo número 81 da gravura de Braunio e que está na figura
5. É uma igreja que foi mandada construir por Afonso Henriques após a
tomada da cidade, perto de uma das portas da cerca moura, havendo ainda
notícia de que nesse lugar, ou perto, poderia ter estado o antigo templo
romano dedicado a Cibele. No entanto foi objeto de muitas intervenções e
reconstruções, nomeadamente no reinado de Maria I. |
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Fig. 5 –
Portal da igreja da Madalena |
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O portal está de tal forma perfeito e bem conservado
que é difícil imaginar que tenha sobrevindo assim ao terramoto e ao
incêndio na primitiva igreja da Conceição dos Freires, melhor seria, mas
antes será mais provável que se trate de uma obra neomanuelina
posterior, quiça imitando ou incorporando elementos do portal original
da igreja da Conceição, num enquadramento neoclássico. Repete-se o
padrão das duas esferas armilares, dois mundos, separados na cúspide
central por uma estrutura octogonal formando um vértice, como se fosse
uma torrinha ou charola, com flores, imersa num pentágono cuspóide. Terá
uma função segunda, simbólica, mas também uma função primeira, de
suporte estrutural. |
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Fig. 6 –
Vértice do portal da Madalena |
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O portal da igreja de Nossa Senhora dos Remédios em
Alfama, antiga ermida do Espírito Santo, é manuelino, com um eixo de
simetria onde sucedem em ordem ascendente: a pomba, a coroa e a cruz,
atributos simbólicos do culto do Espírito Santo [l]. Aí se misturam
arcos e cúspides fazendo recordar o portal da Madalena, e os elementos
laterais simétricos são agora vegetalistas, florais. |
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Fig. 7 – portal da igreja dos Remédios
em Alfama |
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Comparando com o portal românico da Sé, é como se os
arcos sobranceiros deste último se tivessem dobrado ou cruzado naquilo
que se pode interpretar como sendo uma modalidade de desdobramento
universal em geometria diferencial - no âmbito dos modelos matemáticos
da morfogênese - três cúspides ligadas, como no caso da borboleta por
exemplo [m]. Tal poderá não ser estranho ao que Arnold menciona:
qualquer singularidade de uma aplicação diferenciável de uma superfície
espacial num plano, após pequenas perturbações, gera dobras e cúspides,
e essas são as unicas singularidades estruturalmente estáveis [n], as
que persistem. Jean Petitot refere a deixis, também se poderia dizer a
dixis, como um sistema de indicadores. O termo deixis, no sentido lato
da linguagem, comporta múltiplas valências de sentido ligadas à
etimologia [ver o].
As duas esferas armilares estão presentes também na
Crónica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão, escrita no século XVI,
a próposito da qual se analisou o desdobramento geográfico da cidade de
Lisboa na época manuelina, esboçado numa cúspide onde se distinguem
modalidades de vivência e simetrias [ver p]. Nessa iluminura, o eixo de
simetria apontado a Sul vai do castelo para o escudo de armas do rei de
Portugal, representado com oito castelos amparado por anjos tenentes.
Brandt distingue entre signos naturais, convencionais, e intencionais,
sendo estes últimos os que se negoceiam entre indivíduos no processo de
comunicação [q]. Em síntese, mesmo ficando por saber se o portal da
Madalena é o da antiga Conceição dos Freires, pode então dizer-se que da
clausura dos arcos românicos emerge o arco ogival gótico ascendente,
bifurca em portas duplas, e se expande em várias direções, formando uma
deixis de cúspides e arcos, associadas a esferas e outros elementos,
simbolizando mundos. |
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Notas |
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[I]
António Borges Coelho, Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista, Editorial
Caminho, Lisboa, 2006, p: 18
[II] Umberto Eco, A
Estrutura Ausente (7ª ed.), Perspectiva Editora SA, São Paulo, 2007 p:
210
[III]
Jean Petitot, Morphologie et Esthétique, Maisonneuve & Larose, Paris,
2004, p :102
[IV] Richard Zimler,
O Último Cabalista de Lisboa, Quetzal Editores, Lisboa, 1996, p: 72/3
[a] António Borges
Coelho, Ruas e Gentes na Lisboa Quinhentista, Editorial Caminho, Lisboa,
2006, p: 10
[b]
http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=317
[c] Dejanirah Couto,
História de Lisboa, editora Gótica, Lisboa, 2003, pag: 87/8
[d]
http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonor_de_Viseu,_Rainha_de_Portugal
[e] Ana Cristina
Lourenço, Helena Pinto Janeiro, Lisboa – freguesia da Sé, Contexto
Editora Lda, Lisboa, 1992, p:11
[f] Umberto Eco,
Tratado Geral de Semiótica (4ª ed). Perspectiva Editora SA, São Paulo,
2007, pag: 257
[g] Umberto Eco, A
Estrutura Ausente (7ª ed), Perspectiva Editora SA, São Paulo, 2007, pag:
221
[h] Elizabeth
Walther-Bense, A Teoria Geral dos Signos, Editora Perspectiva, São
Paulo, 2000, p: 15
[i] Gilles Deleuze,
Lógica do Sentido (4ª ed.), Editora Perspectiva, São Paulo, 2006, p: 55
[j] José Augusto
Mourão e Maria Augusta Babo, Semiótica – Genealogias e Cartografias,
MinervaCoimbra, Coimbra, 2007, p: 214
[k] Lisboa
Quinhentista – a imagem e a vida da cidade (catálogo de exposição,
coord: Irisalva Moita), Museu da Cidade, ed. CML, 1983, p:55
[l] José Pinto
Casquilho, Esteios da lusofonia - Do culto do Espírito Santo. Revista
Triplov de Artes, Religiões e Ciências, nº 7, 2010,
http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_07/jose_casquilho/index.html
[m] José Pinto
Casquilho, Morfogénese: borboleta cauda de andorinha, Triplov, 2009, http://www.triplov.com/casquilho/2009/Morfogenese/index.html
[n] Vladimir I. Arnold, Catastrophe Theory (2nd ed.), Springer-Verlag,
Berlin, 1986, p:5
[o] Roberto Acízelo
de Sousa. Deixis, E-Dicionário de Termos Literários, (coord: Carlos
Ceia),
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=712&Itemid=2
[p] Isabel Marcos, Urban Universals, Semiosis and Catastrophes – René
Thom’s Semiotic Heritage, (W. Widen & Per Aage Brandt, eds.), Peter
Lang, Bern, v. 10: 101-126, 2010.
[q] Per Aage Brandt, Prégnances et catastrophes, Semiosis and
Catastrophes – René Thom’s Semiotic Heritage, (W. Widen & Per Aage
Brandt, eds.), Peter Lang, Bern, v. 10: 167-182, 2010. |
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José Pinto
Casquilho.
Centro de Ecologia Aplicada Baeta Neves (CEABN/UTL),
Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens
(CECL/UNL).
josecasquilho@gmail.com
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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