REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

 

Ana Luísa Janeira

– saberes, percursos

            

EDITOR | TRIPLOV  
ISSN 2182-147X  
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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“Deixemos vestígios. Não há outro modo de fazer.
Depois, há a invisibilidade que opera.”

(Maria Gabriela Llansol)

“Seule la métis courbe
permet à l’épistéme d’aller droit” (Bruno Latour)

 
 
 
   
   
   
 
 

I

Não posso dizer que conheço todo o percurso intelectual da Ana Luísa. Entrei, em determinado momento, até por efeitos de vizinhança, no mundo em que ela já há muito trabalhava. No seu curriculum, apareço já, a seu convite, como Membro do Grupo Ciências, Técnicas e Valores (CTV) (1990-1995) e do Grupo Ciências, Técnicas e Saberes (CTS) (1993-1995). O nosso convívio prolonga-se, logo a seguir, e sendo a Ana a co-fundadora e a primeira Coordenadora do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (1995-1999), no momento mais ou menos defunto. Que pode ligar uma investigadora do Departamento de Química da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (1980-2007), a Coordenadora, em Portugal, da Red de Intercambios de la Historia y la Epistemo­logia de las Ciencias Químicas e Biológicas, México, D.C. a alguém que como eu, venho das Humanidades? Certo, há a filosofia pelo meio, há as Ciências e os Saberes; há a Cultura Científica e a Cibercultura (2003-2007); há a História das Ciências, a Filosofia das Ciências, a Sociologia e a Ética das Ciências e das Técnicas (1976-2003), há uma mesma simpatia por uma “ecologia ética”, e veio mais tarde o estudo dos laboratórios e um congresso sobre Os Jardins do Mundo. O que já é de monta. A Ana é sobretudo uma agregadora, uma mediadora de inúmeros projectos que tiveram os seus frutos no tempo. Pelo meio havia os convívios, as festas – ai aquela festa da Ciência! -, as viagens – ai aquela gélida viagem a Nova Iorque Boston! – os muitos colóquios ou as simples trocas de conhecimento no Grupo Ciências, Técnicas e Saberes (CTS), bem mais férteis que todas as discussões que envolviam os projectos da FCT e a sua diabólica engenharia financeira. A sua passagem por Montemor-o-Novo deixou vestígios indeléveis: quem não lembra o colóquio sobre a Ciência, a sua envolvência com alunos e colegas com o projecto Inovação, tradição, globalização, ligado à Herdade do Feixo do Meio, de que resultou, entre outras iniciativas, o Workshop “Pensar o Montado”, sem esquecer o projecto “Tradição – saberes e fazeres”, ligado às vivências, às formas de viver, de pensar e de habitar da terra. E teríamos de falar das viagens com destino nas ciências (http://www.cienciaeviagem.no.sapo.pt), exemplos passados e actuais provando como a experiência e a vivência da viagem tem influenciado e continua a influenciar a criatividade científica. De facto, não cabe de todo à Ana Luísa a figura oitocentista do flâneur que vagueia sem destino pelas coisas e pelo mundo. Para esta passadora de fronteiras, a fronteira não é apenas um limite geográfico, mas um cruzamento de saberes, uma demanda epistemológica, um projecto. O projecto das marcas é a sua última, no tempo, grande paixão, que continua a liderar com a tenacidade que lhe conhecemos. Uma das suas virtudes é a obstinação. A quem se chama obstinado? Àquele que continua a fazer o que faz mesmo quando tudo parece demonstrar que não o pode fazer. No plano cognitivo esta atitude exprime-se deste modo: “Não podemos mais fazer isso”, mas continuamos a fazê-lo, contra ventos e marés. A obstinação traduz-se modalmente assim: “não posso, mas faço-o”. Como se vê, a modalidade dominante é aqui a do querer. O obstinado sabe que, no plano cognitivo tal é impossível, sabe que no plano do desejo quer o impossível. Catarina de Sena não tinha outro verbo a que se arrimar: “Io voglio”.

 

II

Atrevo-me a pensar o trabalho da Ana Luísa como um todo. Não há no seu percurso más divisões, tais como natura vs cultura como categorias semanticamente separadas. Tudo no seu percurso faz rede. Ora, que é uma rede? Uma rede é aquilo a que Ilya Prigogine e Isabelle Stengers chamam uma estrutura dissipativa, que simultaneamente gera estabilidade local e mantém uma homeostase interna em condições de equilíbrio só possível graças às trocas maciças de energia com o mundo exterior[1].

 

Conhecer foi sempre, essencialmente, organizar o inorgânico e reorganizar o orgânico. A origem do conhecimento é também a da ordem, quer dizer da classificação simbólica. Para ter um símbolo precisamos de uma totalidade. Não podemos opor cultura e natura como progresso e regressão. O progresso da cultura supõe o respeito pela natureza. E dos outros[2]. O conhecimento é um trabalho retencional. Os dispositivos retensionais estão nas mãos dos juristas e religiosos, políticos e espirituais que definem os seus critérios de selecção (direito canónico selecção dos bons enunciados, das boas acções, costumes e procedimentos correctos). São pensados como processos de individuação que supõem a participação do múltiplo para a produção do um. Ora, o trabalho efectua-se com instrumentos, utensílios de trabalho, técnicas. A escrita ortográfica é já uma técnica da memória. “Nós”, ocidentais, fizemos desta técnica a nossa segunda natureza, enquanto temos tendência para apenas ver tecnologia onde são visíveis aparelhos materiais, esquecendo o que é a técnica em geral. O leitor literal é já um aparelho, está “aparelhado”: acede de si mesmo ao conteúdo de um registo literal com a condição de ter passado anos a automatizar, a maquinizar o funcionamento da sua memória, transformando-se em instrumento de leitura. Teremos de pensar contrariamente àquilo que se acreditava outrora – que havia infraestruturas fixas que não eram determinadas – que a técnica era simplesmente um produto da sociedade. Mas não, a sociedade é que é um produto da técnica! Quando se inventou a escrita então passamos a ter o Estado, as cidades, novas religiões. Porque a técnica da escrita precedeu tudo isso. Colocar a técnica à distância é ainda uma ideia de burguês do século XIX (Eça). É absurdo opor a técnica à cultura. A técnica é a condição da cultura enquanto permite a transmissão. O homem é um ser cultural na medida em que ele é também essencialmente um ser técnico (Stiegler, 2004: 59). Há uma época da técnica, chamada tecnologia, em que a cultura entra em crise porque se torna industrial e como tal submetida aos imperativos do cálculo comercial. Os gestos são conservados nos objectos que são todos suportes de registo dos comportamentos humanos, i.é., do espírito humano. È com a sedentarização que se desenvolvem sistemas de numerização que vão dar aquilo que levou aos sistemas de escrita.

 

Todas as ciências inventaram meios para se deslocar dum ponto de vista e um outro: isso chama-se a relatividade! Um outro fantasma transportado pelos monoteísmos zeladores (que pervivem nas Luzes e no cientismo) que persistem na ideia de que se poder um dia conseguir “restabelecer” a linguagem original monovalente contras todas as errâncias e confusões da realidade que na linguagem têm a forma da controvérsia e das imagens múltiplas. No dizer de Sloterdijk: “eles gostariam de tornar audível o monólogo das coisas tais como são em si, e restituir os factos sem véu, as primeiras estruturas, as instruções puras do Ser, sem ter que entrar no mundo intermediário das línguas, das imagens e das projecções, com as suas leis específicas”[3]. É o fantasma de uma linguagem humana sem ambivalência e sem o “ruído” que toda a linguagem transporta: substituamo-lo por um código que ainda não foi contaminado pela contradição, pela negação e o erro. Donde o interesse que concedem aos extremistas lógicos, morais e religiosos a uma linguagem situado para lá do discurso humano. Daí a mão que estendem aos rigoristas matemáticos.

 

Os acontecimentos que se desenrolam diante dos nossos olhos são ao mesmo tempo naturais e culturais. Todo o esforço do pensamento moderno foi para separar o cultural do natural, a natureza da sociedade. O que mais fascina no iluminismo não é o seu programa intelectual que passou à história como portador de uma razão universal, triunfante e emancipadora. O que mais fascina são as personagens duplas de um Cagliostro, um agente duplo, e de Casanova, um cabalista especialista em criptografia e um espião. O que mais fascina é que no seu seio floresçam sociedades ocultas como a maçonaria, as práticas esotéricas e as escritas secretas.

 

A ciência consiste em demonstrar que os fenómenos culturais não são naturais e que nos enganamos se misturamos os tremores de terra e os rumores de guerra, como o faz o texto do apocalipse. Mas, de repente, a ciência toma consciência que as actividades do homem estão prestes a destruir a natureza – o famigerado rigor japonês escondia, afinal, falhas técnicas graves que as agências de centrais nucleares se encarregaram de mistificar. É a ciência que regressa ao Apocalipse. “A essência da técnica não é outra coisa que a técnica”[4].

 

Se a técnica moderna foi possível é porque tekhne tem desde a alba da língua grega antiga a mesma significação que episteme (…) Tekhne não é um conceito do fazer, mas do saber (…). A questão da técnica, a saber a capacitação da natureza como armazenamento da energia é uma caracterização fraca. De resto, desde Heidegger, começamos a sabemos que a techné não é um utensílio. Sabemo-lo apesar de todas as resistências a essa compreensão. Ora, importa saber também que a techné está no centro dos debates no dealbar do Cristianismo, nomeadamente através da definição da techné politiké. Já aí, penso que a técnica é definível como «modo de desvelamento das coisas», mas também, é preciso não esquecê-lo, processo de «ocultação». Ocultação porquê? Porque o ser da técnica é, precisamente, aquilo que nela se oculta. O ser oculta-se, o plano ontológico é substituído, na aparência mundana, pelo aparecer à luz do dia dos processos… Sublinhe-se aqui que é absolutamente necessário abandonarmos essa particular distorção do pensamento contemporâneo que coloca a mutação ontológica da técnica nos próprios processos aparentes do plano tecnológico do moderno. Esse processo está plenamente ancorado na passagem do mundo antigo pagão para a cristianização europeia. Corresponde a uma primeira tomada de consciência maciça de que «o ser é, no seu ser, para si mesmo, o seu próprio perigo», como disse lapidarmente Heidegger. O Gestell é «enquanto perigo no ser, o ser em si mesmo». A técnica não é uma instituição humana, mas é a forma como, através das instituições humanas, o ser revela algum rosto possível ou disponível. Se a natureza não designa apenas o conjunto dos vegetais e dos animais, mas também o princípio fundamental de qualquer juízo normativo, isso significa que o homem deve regular a sua ética pessoal sobre o modelo da lei da selva? “Atribuir à natureza uma significação moral é jogar falaciosamente com a polissemia dos termos? É a tese defendida pela modernidade que separou natureza e moralidade, instrumentalizando a natureza e fazendo do homem a única fonte de valor, remetendo assim a prescrição antiga de ‘seguir a natureza’ para a confusão pré-científica entre causas eficientes e causas finais” [5]. Desenha-se aqui a fractura moderna que levou ao esquecimento dos nascimentos. O ser humano deixa de se perceber como precedido pela natureza no seu próprio vir ao mundo, colocando por isso esta natureza à distância de si mesmo até a instrumentalizar, permitindo que a técnica tirasse partido de todas as causas eficientes que a sua análise científica nela descobriu. Assim liberto de qualquer “precedência” julga-se habilitado para dar valor às finalidades das acções que terá decidido de seu motu próprio. A natureza deixa de ter algo a dizer quanto às causas finais do seu agir. Desde Kant que o mundo que conhecemos de desenha assim: ciência e técnica do lado teórico, igualdade dos seres racionais do lado prático. Muito teríamos a lucrar passando por Gilbert Simondon e do uso que ele faz do conceito de transducção como permanente diferenciação e integração, segundo um regime de causalidade e de finalidade associadas. Transferida para psiquismo, esta noção permite ultrapassar as concepções do psiquismo como pura interioridade ou exterioridade, integrando estas duas concepções; permite também dar conta dos processos de individuação escapando à posição entre a pluralidade indefinida dos estados de consciência, por um lado, e da sua unidade contínua e indissolúvel por outro; estes processos permitem enfim colocar a individuação do indivíduo como um regime misto de causalidade e de eficiência que religa, através do que se chama a consciência, o indivíduo a si mesmo e ao mundo[6]. A afectividade e a emotividade são a forma transductiva por excelência. É através delas que se efectuam o pré-intencional, o intencional, a sensação e a percepção dos objectos, a acção e as práticas, a relação entre o pré-individual, o individual e o colectivo, bem como a integração da realidade propriamente individual a este conjunto. Um programa que se realiza no interior de um espaço tensivo que Simondon chama “a camada da subconsciências”, patamar inevitável e incerto da acção, intermediário isolável entre a consciência reflexiva modalizada e o inconsciente cujo modelo é frequentemente decalcado sobre ela. Ora, este espaço é o da afectividade e da emotividade, camada relacional que constitui o centro da individualidade. O modelo da transducção poderia ser uma resposta formal ao “contágio semiótico” de Landowski. O sujeito de Simondon é feito de trocas e de percursos. O domínio actancial individuado não se pode apreender sem a sua inserção na actancialidade colectiva (o outro, o mundo).

 

Fragmentações

Razão tinha Wittgenstein quando dizia que os problemas se tornam mais claros se os reformulamos como questões sobre o significado das palavras. Que significam hoje “ciência” e “mito”? O último texto de Michel Foucault, publicado na Revue de Métaphysique et de Morale de Janeiro-Março de 1985 tem por título: “La vie: l’expérience et la science”. Escreve ele a propósito da vida: No limite, a vida (…) é aquilo que é capaz de erro (…) A vida acaba por fazer do homem um vivente que não se encontra nunca completamente no seu lugar, um vivente que está destinado a ‘errar’ e a “equivocar-se”. Arrancando o sujeito do terreno do cogito e da consciência, radica-o no terreno da vida; mas de uma vida que, na medida em que é essencialmente errância, vai mais além do vivido e da intencionalidade da fenomenologia. O conhecimento enraíza-se nos “erros” da vida. É preciso então pensar o sujeito a partir do encontro contingente com a verdade. Não fosse sabido que a história das ideias tanto “raconte l’histoire des à-côtés et des marges” (alquimia e outros espíritos animais, almanaques e outras linguagens flutuantes), como se “reconstitue des développements dans la forme linéaire de l’histoire”)[7]. Afinal os científicos (o termo só aparece no século XIX) foram durante muito tempo conhecidos por “filósofos” ou “filósofos naturais”, herdeiros que eram de toda uma tradição argumentativa que tinha sabido dosear os recursos da retórica e as exigências da demonstração. É preciosa a contribuição de Amorim da Costa para a questão, hoje mais do que nunca pertinente no mundo da educação e do ensino – a questão da especialização: “Se não é possível fugir ao processo de especialização que por si próprio cava o fosso entre as “duas culturas”, parece ser evidente que para atenuar os malefícios que dele naturalmente decorrem, a nível do cidadão e a nível da sociedade, se impõe “regulá-lo” de modo a minimizar os efeitos nocivos e maximizar os efeitos benéficos que em si mesmo a especialização simultaneamente contém”[8]. E mais adiante: “A formação geral e a desprofissionalização fazem parte da actual ideologia macroeconómica global e hegemónica do discurso político educacional a nível internacional, pouco apologista de uma mão-de-obra muito especializada à saída do sistema escolar, sobretudo a nível do Ensino Secundário”[9]. Amorim da Costa é certeiro quando afirma: “De qualquer modo que a encaremos, essa solução de descontinuidade foi provocada, fundamentalmente, pela consagração de uma visão mecanicista em detrimento da visão holística, em cuja origem está, muito mais que a contraposição do irracional contra o racional, a contraposição do entendimento (episteme) contra o uso (techne)”[10]

Não há fenómeno observável sem lentes que o focaliza de forma sempre diferente. As perspectivas negras têm a virtude de contrariar o delírio dos que pensam que vivemos no melhor dos mundos possíveis ou a ideia de que o livre arbítrio dos indivíduos tem um peso nas decisões dos grandes grupos hiper-reais. O frio abateu-se sobre as nossas regiões. A fragmentação dos sabres provocou um saber das ilhas. Vivemos de insularidades. Reduzir não é restringir. Ana Luísa é porventura uma raras professoras que ajudou os alunos a passar do cogito ao cogitamus, do anfiteatro ao teatro das acções que é a investigação no campo e nos arquivos. Peter Sloterdijk observa que todo o humanismo ocidental consiste em os adultos quererem que os seus filhos leiam em silêncio debaixo duma lâmpada, bem sossegados. Desde que as crianças começam a agitar-se, a sair, a apagar a lâmpada e a mexer, os humanistas da civilização ocidental começam a tremer. A vantagem do ecrã ou do multiformato é obrigar-nos a reflectir sobre o que fazemos quando lemos debaixo duma lâmpada. O livro está em crise desde o século XVI (E. Eisenstein, La Révolution de l’Imprimé). Esta ligeira aceleração que a numerização permite não significa uma ruptura radical entre a civilização do livro ou a barbárie numérica. A revolução numérica deve ser vista como um analisador do que se chamou o objecto-livro. O livro nunca passou de uma plataforma multimodal de produção de que o ecrã faz parte, mas em que encontramos também os diários, notas, arquivos, dossiês. A grande literatura é apenas uma fracção minúscula da ecologia da leitura.

 

Coda

A philia é um sentimento do nós e supõe dois outros sentimentos: o do que é injusto – a diké é antes de mais defeito de justiça – e do pudor. Ou da vergonha. A vergonha obriga à hospitalidade, ao acolhimento dos suplicantes mas também a que vexa o orgulho narcísico do nós humano. A guerra que nos faz hoje abandonar toda a vergonha é económica e esta economia é uma alienação do desejo e do afecto em que tudo é comandado pelo markting. O pensamento económico reifica a riqueza e não vê mais do que a relação do sujeito com o objecto. Não é mais do que uma “geometria moral” em que o sofrimento dos homens é medido à luz de um universo asseptizado da economia teórica. Infelizmente mergulhado num universo de concorrência, o indivíduo moderno não aceita que se pretenda retira-lhe uma parte de si mesmo: os seus dons, talentos, esforços – o seu mérito. Sabeis que se chama Dédalo o engenheiro mítico criador do labirinto em que se teria perdido Teseu se Ariana não lhe tivesse atirado o seu fio. Dédalo construiu para o rei Minos o labirinto. Se na técnica nunca as coisas vão bem é porque o encaminhamento lógico – o da episteme – é sempre interrompido, desviado, modificado e que se vai de deslocações em desvios – o daedalion em grego é o retorno astucioso fora do caminho recto. É aquilo a que banalmente chamamos “problema técnico”, “bogue”, obstáculo. Dédalo retoma um nome comum, dedalion que quer dizer “desvio”, arte própria da metis que designa a habilidade técnica, a astúcia, o truque, a ingenhosidade. Os dois termos opõem-se a via retilínea, à episteme que fala sem desvios. As técnicas não são apenas simples “aplicações da Ciência” ou a única “dominação da Natureza”. As técnicas deixam no seu rasto alguns invisíveis: as consequências inesperadas, as surpresas, os lixos, todo um novo labirinto aberto. A técnica é sempre dobra sobre dobra, implicação, complicação, explicação. Que lugar se dá na aprendizagem a estes acidentes? Um teórico não é diferente dum engenheiro que escava um túnel no Marão. O engenheiro deve negociar com a montanha a cada passo do projecto, testar até que ponto a rocha resiste e cede. Sabeis também que sabedoria em hebraico diz-se HOKMAH para significar a capacidade inata que os seres humanos têm para solucionar os problemas com que confrontam. São os artesãos e artistas. São as sábias fiadoras do Ex 35, 25-26., é a perícia dos navegantes, é Salomão e o seu onomastikon, a catalogação dos fenómenos vistos, bem antes da catalogação das bibliotecas de ciências naturais. “Ninguém morre tão pobre que não deixe qualquer coisa” dizia Pascal. Jean-Luc Marion gosta de repetir que a vida de um filósofo (coisa que não sou) se resume em três verbos: “Nasceu, trabalhou, morreu”. Maria Gabriela Llansol dizia: “Eu sinto como a nossa vida é curta, e que o melhor que podemos fazer, para sermos pragmáticos, é deixar o amior número possível de vestígios certos. Deixemos vestígios. Não há outro modo de fazer. Depois há a invisibilidade que opera. Há outros modos de invisibilidade, mas ao nível do mundo humano são os vestígios.”[11] Ana Luísa é, sem dúvida, uma dessas sábias fiadoras que deixou indícios por onde passou. Que é o projecto das marcas senão o mais claro índice da sua presença?

   
 

[1] Ilya Prigogine e Isabelle Stengers,  Order  out of Chaos: Man’s New Dialogue with Nature, Nova Iorque, Bantam, 1984, p. 143.

[2] Augusto Ponzio, L´écoute de l´autre,  L’Harmattan, 2009.

[3] Peter Sloterdijk, La Folie de Dieu, Libella, Maren Sell, 2008, p. 118.

[4] Heidegger, Langue de tradition et langue technique, 1990, p. 22-23.

[5] Catherine Larrère,, in M. Canto-Sperber, Dictionnaire d’ éthique et de philosophie morale, PUF, 1996, Vº Nature, p. 1024.

[6] Gilbert Simondon, L’ individuation psychique et collective, Paris, Aubier, 2007.

[7] Op. cit., p. 179- 180.

[8] A. Amorim da Costa, Ciência e Mito Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010, p. 121.

[9] Op. cit., p. 122.

[10] Op. cit., p. 45.

[11] Maria Gabriela Llansol, O que é uma figura?  Mariposa Azual, 2009, p, 147.

   
   
   
   
 
 

UNIVERSIDADE DE LISBOA . FACULDADE DE CIÊNCIAS
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
SESSÃO DE HOMENAGEM À PROF.ª ANA LUÍSA JANEIRA

   
 

 

 

José Augusto Mourão (Portugal)
Professor Associado com Agregação da Universidade Nova de Lisboa. Presidente do ISTA (Instituto S. Tomas de Aquino), Director da Revista de Comunicação e Linguagens. Rege as cadeiras de Semiótica, E-textualidades e Hiperficção e Cultura no Departamento de Ciências da Comunicação. Livros publicados: A visão de Túndalo: em torno da semiótica das Visões (INIC, Lisboa, 1988); Sujeito, Paixão e Discurso. Trabalhos de Jesus (Vega, 1996); A sedução do real. Literatura e Semiótica (Vega, 1998); Ficção Interactiva. Para uma Poética do Hipertexto (Edições Universitárias Lusófonas, 2001); O fulgor é móvel - em torno da obra de Maria Gabriela Llansol (Roma, 2004); com Eduardo Franco: A influência de Joaquim de Flora na Cultura Portuguesa e Europeia (Roma, 2005); O Mundo e os Modos da Comunicação (Minerva, 2006); com Maria Augusta Babo: Semiótica. Genealogias e Cartografias  (Minerva, 2007) iperficção. A Literatura electrónica (Vega, 2009).

 

 

© Maria Estela Guedes
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