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I
Não posso dizer que conheço todo o percurso intelectual da Ana Luísa.
Entrei, em determinado momento, até por efeitos de vizinhança, no mundo
em que ela já há muito trabalhava. No seu curriculum, apareço já, a seu
convite, como Membro do Grupo Ciências, Técnicas e Valores (CTV)
(1990-1995) e do Grupo Ciências, Técnicas e Saberes (CTS) (1993-1995). O
nosso convívio prolonga-se, logo a seguir, e sendo a Ana a co-fundadora
e a primeira Coordenadora do Centro Interdisciplinar de Ciência,
Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (1995-1999), no momento
mais ou menos defunto. Que pode ligar uma investigadora do Departamento
de Química da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
(1980-2007), a Coordenadora, em Portugal, da Red de Intercambios de la
Historia y la Epistemologia de las Ciencias Químicas e Biológicas,
México, D.C. a alguém que como eu, venho das Humanidades? Certo, há a
filosofia pelo meio, há as Ciências e os Saberes; há a Cultura
Científica e a Cibercultura (2003-2007); há a História das Ciências, a
Filosofia das Ciências, a Sociologia e a Ética das Ciências e das
Técnicas (1976-2003), há uma mesma simpatia por uma “ecologia ética”, e
veio mais tarde o estudo dos laboratórios e um congresso sobre Os
Jardins do Mundo. O que já é de monta. A Ana é sobretudo uma agregadora,
uma mediadora de inúmeros projectos que tiveram os seus frutos no tempo.
Pelo meio havia os convívios, as festas – ai aquela festa da Ciência! -,
as viagens – ai aquela gélida viagem a Nova Iorque Boston! – os muitos
colóquios ou as simples trocas de conhecimento no Grupo Ciências,
Técnicas e Saberes (CTS), bem mais férteis que todas as discussões que
envolviam os projectos da FCT e a sua diabólica engenharia financeira. A
sua passagem por Montemor-o-Novo deixou vestígios indeléveis: quem não
lembra o colóquio sobre a Ciência, a sua envolvência com alunos e
colegas com o projecto Inovação, tradição, globalização, ligado à
Herdade do Feixo do Meio, de que resultou, entre outras iniciativas, o
Workshop “Pensar o Montado”, sem esquecer o projecto “Tradição – saberes
e fazeres”, ligado às vivências, às formas de viver, de pensar e de
habitar da terra. E teríamos de falar das viagens com destino nas
ciências (http://www.cienciaeviagem.no.sapo.pt),
exemplos passados e actuais provando como a experiência e a vivência da
viagem tem influenciado e continua a influenciar a criatividade
científica. De facto, não cabe de todo à Ana Luísa a figura oitocentista
do flâneur que vagueia sem destino pelas coisas e pelo mundo. Para esta
passadora de fronteiras, a fronteira não é apenas um limite geográfico,
mas um cruzamento de saberes, uma demanda epistemológica, um projecto. O
projecto das marcas é a sua última, no tempo, grande paixão, que
continua a liderar com a tenacidade que lhe conhecemos. Uma das suas
virtudes é a obstinação. A quem se chama obstinado? Àquele que continua
a fazer o que faz mesmo quando tudo parece demonstrar que não o pode
fazer. No plano cognitivo esta atitude exprime-se deste modo: “Não
podemos mais fazer isso”, mas continuamos a fazê-lo, contra ventos e
marés. A obstinação traduz-se modalmente assim: “não posso, mas faço-o”.
Como se vê, a modalidade dominante é aqui a do querer. O
obstinado sabe que, no plano cognitivo tal é impossível, sabe que no
plano do desejo quer o impossível. Catarina de Sena não tinha outro
verbo a que se arrimar: “Io voglio”.
II
Atrevo-me a pensar o trabalho da Ana Luísa como um todo. Não há no seu
percurso más divisões, tais como natura vs cultura como
categorias semanticamente separadas. Tudo no seu percurso faz rede. Ora,
que é uma rede? Uma rede é aquilo a que Ilya Prigogine e Isabelle
Stengers chamam uma estrutura dissipativa, que simultaneamente gera
estabilidade local e mantém uma homeostase interna em condições de
equilíbrio só possível graças às trocas maciças de energia com o mundo
exterior.
Conhecer foi sempre, essencialmente, organizar o inorgânico e
reorganizar o orgânico. A origem do conhecimento é também a da ordem,
quer dizer da classificação simbólica. Para ter um símbolo precisamos de
uma totalidade. Não podemos opor cultura e natura como progresso e
regressão. O progresso da cultura supõe o respeito pela natureza. E dos
outros.
O conhecimento é um trabalho retencional. Os dispositivos retensionais
estão nas mãos dos juristas e religiosos, políticos e espirituais que
definem os seus critérios de selecção (direito canónico selecção dos
bons enunciados, das boas acções, costumes e procedimentos correctos).
São pensados como processos de individuação que supõem a participação do
múltiplo para a produção do um. Ora, o trabalho efectua-se com
instrumentos, utensílios de trabalho, técnicas. A escrita ortográfica é
já uma técnica da memória. “Nós”, ocidentais, fizemos desta técnica a
nossa segunda natureza, enquanto temos tendência para apenas ver
tecnologia onde são visíveis aparelhos materiais, esquecendo o que é a
técnica em geral. O leitor literal é já um aparelho, está “aparelhado”:
acede de si mesmo ao conteúdo de um registo literal com a condição de
ter passado anos a automatizar, a maquinizar o funcionamento da sua
memória, transformando-se em instrumento de leitura. Teremos de pensar
contrariamente àquilo que se acreditava outrora – que havia
infraestruturas fixas que não eram determinadas – que a técnica era
simplesmente um produto da sociedade. Mas não, a sociedade é que é um
produto da técnica! Quando se inventou a escrita então passamos a ter o
Estado, as cidades, novas religiões. Porque a técnica da escrita
precedeu tudo isso. Colocar a técnica à distância é ainda uma ideia de
burguês do século XIX (Eça). É absurdo opor a técnica à cultura. A
técnica é a condição da cultura enquanto permite a transmissão. O homem
é um ser cultural na medida em que ele é também essencialmente um ser
técnico (Stiegler, 2004: 59). Há uma época da técnica, chamada
tecnologia, em que a cultura entra em crise porque se torna industrial e
como tal submetida aos imperativos do cálculo comercial. Os gestos são
conservados nos objectos que são todos suportes de registo dos
comportamentos humanos, i.é., do espírito humano. È com a sedentarização
que se desenvolvem sistemas de numerização que vão dar aquilo que levou
aos sistemas de escrita.
Todas as ciências inventaram meios para se deslocar dum ponto de vista e
um outro: isso chama-se a relatividade! Um outro fantasma transportado
pelos monoteísmos zeladores (que pervivem nas Luzes e no cientismo) que
persistem na ideia de que se poder um dia conseguir “restabelecer” a
linguagem original monovalente contras todas as errâncias e confusões da
realidade que na linguagem têm a forma da controvérsia e das imagens
múltiplas. No dizer de Sloterdijk: “eles gostariam de tornar audível o
monólogo das coisas tais como são em si, e restituir os factos sem véu,
as primeiras estruturas, as instruções puras do Ser, sem ter que entrar
no mundo intermediário das línguas, das imagens e das projecções, com as
suas leis específicas”[3].
É o fantasma de uma linguagem humana sem ambivalência e sem o “ruído”
que toda a linguagem transporta: substituamo-lo por um código que ainda
não foi contaminado pela contradição, pela negação e o erro. Donde o
interesse que concedem aos extremistas lógicos, morais e religiosos a
uma linguagem situado para lá do discurso humano. Daí a mão que estendem
aos rigoristas matemáticos.
Os acontecimentos que se desenrolam diante dos nossos olhos são ao mesmo
tempo naturais e culturais. Todo o esforço do pensamento moderno foi
para separar o cultural do natural, a natureza da sociedade. O que mais
fascina no iluminismo não é o seu programa intelectual que passou à
história como portador de uma razão universal, triunfante e
emancipadora. O que mais fascina são as personagens duplas de um
Cagliostro, um agente duplo, e de Casanova, um cabalista especialista em
criptografia e um espião. O que mais fascina é que no seu seio floresçam
sociedades ocultas como a maçonaria, as práticas esotéricas e as
escritas secretas.
A
ciência consiste em demonstrar que os fenómenos culturais não são
naturais e que nos enganamos se misturamos os tremores de terra e os
rumores de guerra, como o faz o texto do apocalipse. Mas, de repente, a
ciência toma consciência que as actividades do homem estão prestes a
destruir a natureza – o famigerado rigor japonês escondia, afinal,
falhas técnicas graves que as agências de centrais nucleares se
encarregaram de mistificar. É a ciência que regressa ao Apocalipse. “A
essência da técnica não é outra coisa que a técnica”.
Se a técnica moderna foi possível é porque tekhne tem desde a
alba da língua grega antiga a mesma significação que episteme (…)
Tekhne não é um conceito do fazer, mas do saber (…). A questão da
técnica, a saber a capacitação da natureza como armazenamento da energia
é uma caracterização fraca. De resto, desde Heidegger, começamos a
sabemos que a techné não é um utensílio. Sabemo-lo apesar de
todas as resistências a essa compreensão. Ora, importa saber também que
a techné está no centro dos debates no dealbar do Cristianismo,
nomeadamente através da definição da techné politiké. Já aí,
penso que a técnica é definível como «modo de desvelamento das coisas»,
mas também, é preciso não esquecê-lo, processo de «ocultação». Ocultação
porquê? Porque o ser da técnica é, precisamente, aquilo que nela se
oculta. O ser oculta-se, o plano ontológico é substituído, na aparência
mundana, pelo aparecer à luz do dia dos processos… Sublinhe-se aqui que
é absolutamente necessário abandonarmos essa particular distorção do
pensamento contemporâneo que coloca a mutação ontológica da técnica nos
próprios processos aparentes do plano tecnológico do moderno. Esse
processo está plenamente ancorado na passagem do mundo antigo pagão para
a cristianização europeia. Corresponde a uma primeira tomada de
consciência maciça de que «o ser é, no seu ser, para si mesmo, o seu
próprio perigo», como disse lapidarmente Heidegger. O Gestell é
«enquanto perigo no ser, o ser em si mesmo». A técnica não é uma
instituição humana, mas é a forma como, através das instituições
humanas, o ser revela algum rosto possível ou disponível. Se a natureza
não designa apenas o conjunto dos vegetais e dos animais, mas também o
princípio fundamental de qualquer juízo normativo, isso significa que o
homem deve regular a sua ética pessoal sobre o modelo da lei da selva?
“Atribuir à natureza uma significação moral é jogar falaciosamente com a
polissemia dos termos? É a tese defendida pela modernidade que separou
natureza e moralidade, instrumentalizando a natureza e fazendo do homem
a única fonte de valor, remetendo assim a prescrição antiga de ‘seguir a
natureza’ para a confusão pré-científica entre causas eficientes e
causas finais”.
Desenha-se aqui a fractura moderna que levou ao esquecimento dos
nascimentos. O ser humano deixa de se perceber como precedido pela
natureza no seu próprio vir ao mundo, colocando por isso esta natureza à
distância de si mesmo até a instrumentalizar, permitindo que a técnica
tirasse partido de todas as causas eficientes que a sua análise
científica nela descobriu. Assim liberto de qualquer “precedência”
julga-se habilitado para dar valor às finalidades das acções que terá
decidido de seu motu próprio. A natureza deixa de ter algo a
dizer quanto às causas finais do seu agir. Desde Kant que o mundo que
conhecemos de desenha assim: ciência e técnica do lado teórico,
igualdade dos seres racionais do lado prático. Muito teríamos a lucrar
passando por Gilbert Simondon e do uso que ele faz do conceito
de transducção como permanente diferenciação e integração, segundo
um regime de causalidade e de finalidade associadas. Transferida para
psiquismo, esta noção permite ultrapassar as concepções do psiquismo
como pura interioridade ou exterioridade, integrando estas duas
concepções; permite também dar conta dos processos de individuação
escapando à posição entre a pluralidade indefinida dos estados de
consciência, por um lado, e da sua unidade contínua e indissolúvel por
outro; estes processos permitem enfim colocar a individuação do
indivíduo como um regime misto de causalidade e de eficiência que religa,
através do que se chama a consciência, o indivíduo a si mesmo e ao mundo.
A afectividade e a emotividade são a forma transductiva
por excelência. É através delas que se efectuam o pré-intencional, o
intencional, a sensação e a percepção dos objectos, a acção e as
práticas, a relação entre o pré-individual, o individual e o colectivo,
bem como a integração da realidade propriamente individual a este
conjunto. Um programa que se realiza no interior de um espaço tensivo
que Simondon chama “a camada da subconsciências”, patamar inevitável e
incerto da acção, intermediário isolável entre a consciência reflexiva
modalizada e o inconsciente cujo modelo é frequentemente decalcado sobre
ela. Ora, este espaço é o da afectividade e da emotividade,
camada relacional que constitui o centro da individualidade. O modelo da
transducção poderia ser uma resposta formal ao “contágio semiótico” de
Landowski. O sujeito de Simondon é feito de trocas e de percursos. O
domínio actancial individuado não se pode apreender sem a sua inserção
na actancialidade colectiva (o outro, o mundo).
Fragmentações
Razão tinha Wittgenstein quando dizia que os problemas se tornam mais
claros se os reformulamos como questões sobre o significado das
palavras. Que significam hoje “ciência” e “mito”?
O último texto de Michel Foucault,
publicado na Revue de Métaphysique et de Morale de Janeiro-Março
de 1985 tem por título: “La vie: l’expérience et la science”. Escreve
ele a propósito da vida: No limite, a vida (…) é aquilo que é capaz de
erro (…) A vida acaba por fazer do homem um vivente que não se encontra
nunca completamente no seu lugar, um vivente que está destinado a
‘errar’ e a “equivocar-se”. Arrancando o sujeito do terreno do cogito
e da consciência, radica-o no terreno da vida; mas de uma vida que, na
medida em que é essencialmente errância, vai mais além do vivido e da
intencionalidade da fenomenologia. O conhecimento enraíza-se nos “erros”
da vida. É preciso então pensar o sujeito a partir do encontro
contingente com a verdade. Não fosse sabido que a história das ideias
tanto “raconte l’histoire des à-côtés et des marges” (alquimia e outros
espíritos animais, almanaques e outras linguagens flutuantes), como se
“reconstitue des développements dans la forme linéaire de l’histoire”)[7].
Afinal os científicos (o termo só aparece no século XIX) foram
durante muito tempo conhecidos por “filósofos” ou “filósofos naturais”,
herdeiros que eram de toda uma tradição argumentativa que tinha sabido
dosear os recursos da retórica e as exigências da demonstração.
É
preciosa a contribuição de Amorim da Costa para a questão, hoje mais do
que nunca pertinente no mundo da educação e do ensino – a questão da
especialização: “Se não é possível fugir ao processo de especialização
que por si próprio cava o fosso entre as “duas culturas”, parece ser
evidente que para atenuar os malefícios que dele naturalmente decorrem,
a nível do cidadão e a nível da sociedade, se impõe “regulá-lo” de modo
a minimizar os efeitos nocivos e maximizar os efeitos benéficos que em
si mesmo a especialização simultaneamente contém”.
E mais adiante: “A formação geral e a desprofissionalização fazem parte
da actual ideologia macroeconómica global e hegemónica do discurso
político educacional a nível internacional, pouco apologista de uma
mão-de-obra muito especializada à saída do sistema escolar, sobretudo a
nível do Ensino Secundário”.
Amorim da Costa é certeiro quando afirma: “De qualquer modo que a
encaremos, essa solução de descontinuidade foi provocada,
fundamentalmente, pela consagração de uma visão mecanicista em
detrimento da visão holística, em cuja origem está, muito mais que a
contraposição do irracional contra o racional, a contraposição do
entendimento (episteme) contra o uso (techne)”.
Não há fenómeno observável sem lentes que o focaliza de forma sempre
diferente. As perspectivas negras têm a virtude de contrariar o delírio
dos que pensam que vivemos no melhor dos mundos possíveis ou a ideia de
que o livre arbítrio dos indivíduos tem um peso nas decisões dos grandes
grupos hiper-reais. O frio abateu-se sobre as nossas regiões. A
fragmentação dos sabres provocou um saber das ilhas. Vivemos de
insularidades. Reduzir não é restringir. Ana Luísa é porventura uma
raras professoras que ajudou os alunos a passar do cogito ao
cogitamus, do anfiteatro ao teatro das acções que é a investigação
no campo e nos arquivos. Peter Sloterdijk observa que todo o
humanismo ocidental consiste em os adultos quererem que os seus filhos
leiam em silêncio debaixo duma lâmpada, bem sossegados. Desde que as
crianças começam a agitar-se, a sair, a apagar a lâmpada e a mexer, os
humanistas da civilização ocidental começam a tremer. A vantagem do ecrã
ou do multiformato é obrigar-nos a reflectir sobre o que fazemos quando
lemos debaixo duma lâmpada. O livro está em crise desde o século XVI (E.
Eisenstein, La Révolution de l’Imprimé). Esta ligeira aceleração
que a numerização permite não significa uma ruptura radical entre a
civilização do livro ou a barbárie numérica. A revolução numérica deve
ser vista como um analisador do que se chamou o objecto-livro. O livro
nunca passou de uma plataforma multimodal de produção de que o
ecrã faz parte, mas em que encontramos também os diários, notas,
arquivos, dossiês. A grande literatura é apenas uma fracção minúscula da
ecologia da leitura.
Coda
A
philia é um sentimento do nós e supõe dois outros
sentimentos: o do que é injusto – a diké é antes de mais defeito
de justiça – e do pudor. Ou da vergonha. A vergonha obriga à
hospitalidade, ao acolhimento dos suplicantes mas também a que vexa o
orgulho narcísico do nós humano. A guerra que nos faz hoje
abandonar toda a vergonha é económica e esta economia é uma alienação do
desejo e do afecto em que tudo é comandado pelo markting. O
pensamento económico reifica a riqueza e não vê mais do que a relação do
sujeito com o objecto. Não é mais do que uma “geometria moral” em que o
sofrimento dos homens é medido à luz de um universo asseptizado da
economia teórica. Infelizmente mergulhado num universo de concorrência,
o indivíduo moderno não aceita que se pretenda retira-lhe uma parte de
si mesmo: os seus dons, talentos, esforços – o seu mérito. Sabeis que se
chama Dédalo o engenheiro mítico criador do labirinto em que se teria
perdido Teseu se Ariana não lhe tivesse atirado o seu fio. Dédalo
construiu para o rei Minos o labirinto. Se na técnica nunca as coisas
vão bem é porque o encaminhamento lógico – o da episteme – é
sempre interrompido, desviado, modificado e que se vai de deslocações em
desvios – o daedalion em grego é o retorno astucioso fora do
caminho recto. É aquilo a que banalmente chamamos “problema técnico”, “bogue”,
obstáculo. Dédalo retoma um nome comum, dedalion que quer dizer
“desvio”, arte própria da metis que designa a habilidade técnica,
a astúcia, o truque, a ingenhosidade. Os dois termos opõem-se a via
retilínea, à episteme que fala sem desvios. As técnicas não são
apenas simples “aplicações da Ciência” ou a única “dominação da
Natureza”. As técnicas deixam no seu rasto alguns invisíveis: as
consequências inesperadas, as surpresas, os lixos, todo um novo
labirinto aberto. A técnica é sempre dobra sobre dobra, implicação,
complicação, explicação. Que lugar se dá na aprendizagem a estes
acidentes? Um teórico não é diferente dum engenheiro que escava um túnel
no Marão. O engenheiro deve negociar com a montanha a cada passo do
projecto, testar até que ponto a rocha resiste e cede. Sabeis também que
sabedoria em hebraico diz-se HOKMAH para significar a capacidade
inata que os seres humanos têm para solucionar os problemas com que
confrontam. São os artesãos e artistas. São as sábias fiadoras do Ex 35,
25-26., é a perícia dos navegantes, é Salomão e o seu onomastikon,
a catalogação dos fenómenos vistos, bem antes da catalogação das
bibliotecas de ciências naturais. “Ninguém morre tão pobre que não deixe
qualquer coisa” dizia Pascal. Jean-Luc Marion gosta de repetir que a
vida de um filósofo (coisa que não sou) se resume em três verbos:
“Nasceu, trabalhou, morreu”. Maria Gabriela Llansol dizia: “Eu sinto
como a nossa vida é curta, e que o melhor que podemos fazer, para sermos
pragmáticos, é deixar o amior número possível de vestígios certos.
Deixemos vestígios. Não há outro modo de fazer. Depois há a
invisibilidade que opera. Há outros modos de invisibilidade, mas ao
nível do mundo humano são os vestígios.”
Ana Luísa é, sem dúvida, uma dessas sábias fiadoras que deixou indícios
por onde passou. Que é o projecto das marcas senão o mais claro índice
da sua presença? |