REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

 

 

Maria Inês Bolinhas

 

O QUADRO QUE A MÃE DE ENSOR NUNCA VIU

 
DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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NOTA PRÉVIA

O texto que se segue não é um ensaio. Trata-se de um diálogo a respeito da relação da Arte, quer com a Técnica, quer com a Antropologia Filosófica. O seu objectivo é mais o levantar questões do que que responder-lhes; e assumimo-lo como aporético.

Depois de um preâmbulo, onde se procura pôr a claro a ambiguidade da relação entre a arte e a técnica, seguem-se duas partes, dois diálogos, estando o primeiro, entre Aristóteles e Heraclito, ordenado ao segundo, entre o pintor belga James Ensor e a sua irmã, Mitche. Esta última conversa é, à semelhança do primeiro, totalmente ficcionada, embora assente em alguns dados biográficos.

 

 
 
 
   
   
   
   
   
   
 
 

 

PREÂMBULO

1. Edimilson trabalhava com as costas vergadas sob o Sol. Explicava ao colega que construir uma casa é uma «arte» como outra qualquer. O segredo é entender a pedra,  «Há que a amar o material, não lutar contra ele».

2. Miguel Ângelo acabava de polir, com «técnica», a bela «Piedade».

3. Zulmira sentou-se na poltrona e ajeitou a saia. Ordenou à neta: «Sente-se. É uma vergonha! Tem catorze anos, vai casar-se dentro de dez meses e não sabe nem metade das “artes” que qualquer mulher deve saber! Hoje não se levanta daqui sem saber bordar o linho!»

4. Na noite nevoeirenta de Inverno, era impossível que alguém o visse. Acercou-se dela. O efeito dos copos bebidos pouco antes, em casa no namorado, passou-lhe logo: pressentiu o que iria acontecer e o sangue gelou-se-lhe nas veias. Ele procurou acalmá-la: «Não tenhas medo. Fico cheio de pena se o tiveres, mas isto não pode acontecer de outro modo. Prometo que não vai doer muito. Sabes, já fiz isto dezenas de vezes. E tu és tão bonita! Eu faço disto uma «arte», tenho muita «técnica». Depois de te matar (não chores, já te disse que não dói), vou cuidar do teu corpo, decompô-lo em partes e reinventá-lo. Tenho pena que não te possas ver depois, considerar-te-ias uma sublime obra de arte. Oh! Não chores, coisa pequenina!»

5. Carlos já não sabia o que seria a sua vida sem as máquinas que tinha à sua frente. Entrara para a fábrica há vinte anos, vira as primeiras, ainda rudimentares, chegar, e, até passar a encarregado, crescer em número. Agora, lá em baixo, inúmeras máquinas modernas zumbiam com alegria, delas saindo continuamente lindos panos de todas as cores. Olhava satisfeito para o espectáculo colorido: apetecia-lhe compor um hino aos omnipotentes engenheiros que as concebem.

 

PARTE I 

«Também no Olimpo existem distinções, nem todos se misturam. Os deuses vivem separados daqueles mortais cuja excelência lhes permitiu subir até lá e lá desfrutar da eternidade.

Um dos locais mais frequentados por aqueles que, na Terra, mais se quiseram aproximar da Verdade é o Cantinho do Ti’ Olímpio, onde se continua a ter acesso a alguns dos prazeres mediterrânicos: uma boa conversa, acompanhada por alguns dos sabores, que a ambrósia e o néctar não fizeram esquecer. Foi assim que demos com o Obscuro e o Estagirita, sentados, debaixo de uma latada, frente a dois copos de bom vinho tinto, pão e um pratinho de azeitonas, numa discussão muito animada acerca da natureza da technê.

 

Heraclito: Não consegui perceber muito bem essa tua afirmação de que a técnica é a virtude da produção. Explica-te lá melhor.

Aristóteles: Então, voltemos atrás. Quando falo em virtude, pretendo significar a excelência, a realização plena do que pode vir a ser feito. Ambos sabemos que, mais tarde, a virtude chegou a ser concebida como uma “velha solteirona, vociferante e sem dentes”[i]; mas eu continuo a falar da virtude como excelência. A excelência, no que respeita à técnica, não poderia ficar apenas pelo elogio da destreza ou da habilidade; vendo melhor, creio que nem sequer a posso excluir da metafísica.

H: Explica-me lá isso.

A: Explico – pela atracção contínua que é exercida pelo Motor Imóvel. A manifestação mais óbvia de que os seres tendem para a excelência é que, em todas as suas actividades, desejam o bem. Lembras-te do que escrevi, há muitos séculos: “toda a arte e toda a investigação, e do mesmo modo, toda a acção e escolha parecem tender a algum bem”?[ii]

H: Lembro, lembro, mas, oh, meu caro… E o que é o bem? Se vais pela ladeira acima ou pela ladeira abaixo, ainda que o caminho seja o mesmo, não o vês da mesma forma! Além disso, o que é que te leva a crer que a técnica tende obrigatoriamente para o bem?

A: Olha lá, então não és tu próprio que afirmas que o idiota é aquele que não escuta o Logos? Então o Logos é a verdade, independentemente de tu estares a subir ou a descer a ladeira. E ninguém, nem mesmo o idiota, quer ser idiota; porque o ser humano se caracteriza pelo amor à verdade e porque todo o homem deseja naturalmente conhecer. A prova disso é que as faculdades dos sentidos são amadas por si mesmas.

H: Sem te querer desviar, diz-me entretanto uma coisa: os sentidos são, ou não são todos, uma espécie de tacto?

A: Sem dúvida, “o sentido do tacto é (...) aquele cuja privação implica a morte dos animais”.[iii] “Sem o tacto nenhum outro sentido poderá ser concedido ao animal: todo o corpo – entenda-se corpo animado – possui (...) sensibilidade táctil”.[iv]

H: E não podemos considerar a visão como um tacto à distância?

A: Sem dúvida. Afinal o que é um sentido? Não é aquilo que nos põe em contacto com a realidade? De modo que todo o sentido é uma espécie de tacto. Digamos que há “tactos” que são mais directos do que outros![v]

H: O gosto não é também uma espécie de tacto?

A: Sim. Mas há a ver que apenas o gosto e o tacto são indispensáveis para a sobrevivência do animal, destinando-se os restantes a proporcionar-lhe uma existência mais agradável.[vi]

H: O que leva a estabelecer uma analogia entre o comer e o conhecer. Ou não é?

A: De certa maneira. Enquanto na nutrição o vivente assimila a matéria da substância nutritiva, no conhecimento intelectual só se assimila a forma do objecto que é conhecido. Mas o que eu queria, de facto, era demonstrar que a nossa apetência para sentir reflecte a apetência para conhecer, reflectindo esta última, por sua vez, a nossa tendência essencial para o bem. O mesmo se passa na acção: quando alguém age, não tem em vista o mal. Ao agirmos, movimentamo-nos para o bem, porque o movimento não se explica adequadamente senão em função da actualização, que é o seu fim.

H: Concebes o movimento teleologicamente…

A: Claro que sim. O movimento não é lúdico, como tu pretendes, o tempo não é uma criança que brinca! Todos os seres, quando se movem, movem-se em direcção ao sumamente perfeito Motor Imóvel.

H: E os homens? Como se dirigem eles para a perfeição? Ou seja: que tipo de movimento é esse que o homem tem para chegar à perfeição? Pois certamente que, nesse caso, a locomoção seria apenas uma ínfima expressão desse movimento. Estou a ver-te a pôr toda a gente a praticar salto em altura!

A: Com efeito, as mudanças a que me referi dão-se na alma, onde reside também a capacidade de locomoção (à excepção das almas que têm apenas a faculdade vegetativa). Se a alma é a forma primeira do corpo apto a receber vida, é nela que as mudanças se devem dar.

H: Mas que tipo de mudanças são essas? Dito de outro modo: que género de coisas vês tu que se passem na alma?

A: Existem na alma paixões, faculdades e hábitos.[vii] Mas não nos dispersemos: o nosso objectivo é esclarecer qual é o sentido e quais são as implicações de uma concepção da técnica como virtude e provar que a técnica se dirige para o bem. Sendo assim, diz-me: onde vamos colocar a virtude?

Nas paixões? As paixões são o reflexo em nós da acção de um agente externo e têm a ver com passividade. Além disso, a virtude elogia-se, enquanto nem as paixões, nem os vícios se elogiam! Além disso, a virtude tem que ver com uma escolha. E se as nossas paixões nos fazem correr, a virtude, pelo contrário, dá-nos uma certa disposição para a acção, mas não a determina.[viii]

E as faculdades...! Será a virtude uma faculdade? Não, as faculdades são inatas, são aquilo que possibilita que soframos a influência do meio externo. Se somos elogiados ou censurados pela virtude, dado que é uma escolha, não faz sentido recebermos elogios por termos nascido desta ou daquela maneira. Então, se não é nem paixão, nem faculdade, a virtude só pode ser definida como um hábito.[ix]

H: Não vás tão depressa! Mesmo que não diga respeito às faculdades, a virtude lida, de algum modo, com as paixões porque nos diz como nos devemos comportar em relação a elas. Ou não?

A: Sim. A virtude tem a ver com paixões e acções, nas quais o excesso e o defeito erram, enquanto o justo meio acerta. A virtude, repara, é o justo meio, o que implica, obviamente, não uma regra fixa, mas uma capacidade de ajustarmos o nosso comportamento à própria situação. Portanto, a virtude é, antes de mais, uma escolha, a virtude é um hábito selectivo! Que depende da razão, claro.

H: Quer dizer que defines a virtude como a boa escolha?

A: Exactamente.

H: Esclarece-me, então, apenas quanto a isto: o facto de nos orientamos para o bem é, para nós, essencial, embora o modo como o façamos é aleatório? Ou existe algum critério para essa “boa escolha”?

A: Existe, porque não se chega ao bem independentemente dos meios que utilizarmos. Os meios têm certamente alguma articulação com os fins. Sendo a virtude a boa escolha...

H: Não sei se concordo com tudo o que estás a dizer… Mas, prossegue. Boa escolha, de quê?

A: Ao limite, de si próprio. Vejamos quais são as actividades do ser humano, pois que é através delas que se define a orientação para o nosso fim. Existem – penso que neste ponto estamos de acordo – três tipos de actividades: teórica, prática e poiética. Das três, há que ver que a “teoria” é mais excelente, porque tem o fim em si mesma. Segue-se a “práxis” e, por fim, a “poiesis”. Todas elas expressam o modo de ser do ser humano, na medida em que o ente se diz de muitas maneiras.

H: Continua, continua...

A: Há três coisas na alma que regem a acção e a verdade. São elas a sensação, o entendimento e o desejo.[x] Ora nós temos duas partes racionais: uma é aquela com que nós contemplamos os objectos que podem ser de outra maneira. O que está em causa é a mutabilidade, se algo se move, é porque está em actualização. E...

H: Espera! Não voltámos por esta via à velha questão de que o ser é e o não ser não é? Mas, ó meu amigo, o que estás a admitir implicitamente é a existência de realidades imutáveis! Estás a esquecer-te de que “descemos e não descemos às águas do mesmo rio, somos e não somos”. Onde queres tu ancorar, meu distraído?

A: Mesmo assim terias que admitir que o Logos, em perpétuo devir, é constante na sua harmonia na contrariedade. Não se trata aqui do ser e do não ser, trata-se do ser que já é e do ser que está por ser, o qual – e nisso tens razão! – é um não ser, mas não em sentido absoluto, é um não ser relativo. A parte da alma que contempla os objectos que não podem ser de outra maneira chama-se científica; a que contempla os objectos que podem ser de outra maneira chama-se calculadora, já que calcular e deliberar são a mesma coisa e que ninguém delibera sobre o que não pode ser de outra maneira.[xi] De onde se segue que essa segunda parte, a deliberadora, diz necessariamente respeito à escolha.

H: E o que é a escolha? Já definimos a virtude como hábito selectivo e como boa escolha. Mas o que é a escolha, independentemente de ser boa ou má?

A: A escolha é um desejo deliberado ou um juízo desejado[xii]; é o princípio da acção, já que a reflexão, por si, nada põe em movimento.

H: Então e as coisas que podem ser de outra maneira, que são objecto da parte calculadora ou deliberadora da nossa alma, que são, portanto, passíveis de escolha, que coisas são?

A: Vejamos primeiro as que não podem ser de outra maneira, aquelas que são passíveis de conhecimento científico, pois só pode haver conhecimento do que é imutável.

H: Lá voltamos nós ao mesmo: o ser é e o não ser não é...!

A: Só podes ter conhecimento do que é em acto, não daquilo que está para ser! As coisas que podem ser de outra maneira são as que se podem escolher, sobre as quais se pode deliberar.[xiii] É precisamente aqui, vê bem, que se enquadra a acção, cuja virtude é a prudência. Repara ainda que a prudência não pode ser idêntica nem à técnica, nem à ciência. Não pode ser ciência porque a actuação pode ser de outra maneira (e porque a ciência vem sempre acompanhada de demonstração). A prudência é uma disposição racional verdadeira prática com respeito àquilo que é bom e mau para o homem. Falamos de ética; e a boa acção é um fim em si mesmo. Já o fazer não é um fim em si mesmo. Mas o objecto de ambas, práxis e poiesis, caracteriza-se pela contingência. Uma coisa pode acontecer e chegar a ser, ou não acontecer e não chegar a ser. Mas não se pode confundir acção e produção.

H: Hum... Não sei. Creio que uma objecção possível ao que disseste é a de que, mesmo assim, a acção parece de algum modo uma obra calculada, podendo isso até ter repercussões sociais. Não me parece que exista grande diferença entre a acção e a produção. O que é então a técnica?

A: Claro que existe diferença! A técnica é uma disposição racional para a produção; é uma disposição produtiva acompanhada de razão verdadeira. Mas se actuar é um fim em si mesmo, já o fazer não o é. O fim do fazer não é o bem do artífice, mas a qualidade da obra feita. Agora, gostaria de resumir assim o que disse: toda a técnica versa sobre o chegar a ser. De facto, a técnica não tem a ver nem com as coisas que se produzem ou são necessariamente, nem com as coisas que se produzem de maneira natural, porque estas coisas têm o seu princípio em si mesmas.

H: Não me convences. Pensa no seguinte...»  

Um bip e uma luz que se acendeu no visor alertaram-no para a chegada de uma nova mensagem. O Capitão M45vs023, chefe da missão arqueológica da Secção de Estudos Histórico-Filosóficos do Departamento de Estudos Arqueológicos do Sistema Solar de Origem, interrompeu a sua escrita, suspirando. Pousou o estilete electrónico e leu: 

«Terra, 27 de Janeiro de 25 005.

Caro Capitão:

Entre outros objectos, encontrámos este fragmento de texto, pertencente a um autor desconhecido. Remetemos à sua consideração. Cordiais saudações.

“A dicotomia e o contraste entre o agir e o fazer representa também um sintoma da cultura ocidental. ... ao distinguir entre ciências éticas e ciências poiéticas. Lidando umas e outras com o possível, não com o necessário, do qual se ocupariam apenas as ciências especulativas, reconhece-lhes, entretanto, dignidade diferente: as poiéticas, por se ocuparem do que é realizado exteriormente ao agente, situam-se numa escala inferior à das ciências éticas, cujo possível se circunscreve ao próprio ser humano, sem se degradar no movimento exterior. ... Não se repara em que a dissociação, remotamente estabelecida pela cultura ocidental, entre o ético e o poiético, indicia já a perversão que levou o ser humano a servir-se dos outros entes em seu proveito[xiv]”. » 

 

PARTE II 

O quarto definia-se numa tonalidade rosa-velho, devido à cortina corrida que filtrava a luz naquela tarde de Maio invulgarmente quente. Ensor parou junto à porta contendo a respiração. Mitche, a sua bela e única irmã, dormia a sono solto, com a pequena filha junto ao peito. O volume da gravidez dominava totalmente a cena. Aproximou-se, de joelhos, para não perturbar a sobrinha. Sussurrou-lhe ao ouvido: «Mitche, acorda!». O corpo volumoso espreguiçou-se longamente. Aos poucos, foi arrancada ao torpor pela insistência do irmão.

- Mitche, deixa aí a Alexandra e vem comigo até ao sótão.

Ainda demasiado estremunhada para uma pronunciar uma palavra que fosse, embrulhou-se no roupão e subiu pelas escadas. Ensor fê-la entrar no seu estúdio.

- Que é que queres?, conseguiu articular.

- Espera que já vês. É só tapar esta janela com o teu robe verde e está criada a atmosfera ideal. Agora deita-te aí que vou buscar as tintas para pintar o teu retrato. Mas tens que te despir, quero pintar-te grávida e nua.

- O quê?! Mas tu já sabes que a mãe te proibiu de pintar fosse quem fosse que estivesse nu! Eu, por mim, já sabes que não me importo! Mas se ela nos aparece aí!?

- Não aparece nas próximas horas, podes estar descansada. Foi com a tia Mimi ver aquela nossa vizinha que está doente, há meses. Temos a tarde por nossa conta. Vá, tira o roupão. Despacha-te!

- Só tu é que me metes nestas coisas… Onde é que fico?

- Ali, naquele canto, por causa da luz cruzada das duas janelas.

- E qual é a pose em que V. Exa. deseja que eu me ponha? Agradeceria que fosse confortável!

- Da forma mais descontraída que possas. Pensa que estás a boiar no mar.

Já mais desperta, a irmã deitou-se no velho sofá do sótão, inundado de luz verde, cantarolando baixinho.

- Mitche, foi dizendo Ensor enquanto preparava a paleta e os pincéis, hoje vou fazer história! E tu és o modelo do pintor que antecipará todas as correntes artísticas do próximo século.[xv]

- Ah! Essa é uma boa notícia, respondeu, mordaz. Mas o que eu quero é saber se finalmente vais começar a pintar coisas que se possam vender na loja da mãe e da tia Mimi! Aliás, nem sei o que foste fazer para a Academia de Artes, porque saíste de lá a pintar tão mal como quando entraste.

- Falar contigo ou com a mãe é desesperante! A vossa insensibilidade a tudo o que não se possa trocar por dinheiro é lamentável! Nem sei porque estás aqui…

- Não há nenhuma razão específica. Apesar de desprezar o que fazes, estar despida faz-me sentir viva. Mesmo que saiba que tu não tens jeito para lidares ou apreciares mulheres, pode ser que um dia te entusiasmes e que pintes qualquer coisa de jeito, bela.

- Depende do que pensares que é a beleza.

- Depende do que é a beleza... «O belo é aquilo que agrada à vista...», ao nariz, aos ouvidos, ao tacto e ao gosto.

Ela riu e espalhou a carne no sofá. Ensor construía o quadro, pouco a pouco.

- Mitche, o que é para ti a arte?

- Penso que a arte é o conjunto de técnicas através das quais a beleza é trazida ao mundo.

- Então a arte serve para...?

- Para tornar o mundo mais belo.

- E qual será a fonte da beleza?

- Sei lá!

- Est igitur proprie “ars” in Deo.[xvi]

- O quê? Lá vens tu com os teus autores latinos.

- Não é um autor latino, é São Tomás, é medieval.

- É igual, escreviam todos em Latim.

- Disse que a arte está em Deus.

- Ah! Pois, está bem. James, o que é isso!? Por que é estás a chorar?

- Lembrei-me do pai e das conversas que tínhamos. Tenho muitas saudades dele. Era a única pessoa com quem podia falar de coisas mais elevadas do que a contabilidade da loja ou o preço da batata.

- Eu adorava o pai, mas não deixo de reconhecer que ele não passava de um inútil adorável. Tão inútil como tu, diga-se de passagem. Aliás, é curioso que o peso morto da família esteja do lado masculino e que sejam as mulheres a angariar o sustento da casa.

- Não sejas grosseira nem injusta.

- Pois, pois... Continua lá.

- Certo dia surpreendeu-me na secretária dele, a desenhar. Eu estava aborrecido. Então ele disse-me assim: «Vejo que continuas a trabalhar duramente para seres um bom artista. Mas não sei se compreendes bem a responsabilidade da tua ocupação. Gostaria que deixasses, por uns momentos, esse esboço, para falarmos um pouco.» Pousei o carvão na mesa e ergui a cabeça para ele, sem dizer uma palavra, incitando-o, com o olhar, a que prosseguisse. Ele entendeu, como sempre. Sentou-se à minha frente e começou:

«Como sabes, o pensamento exerce-se sobre todos os campos da actividade humana. A arte é um deles. Antes de nós, muitas foram as pessoas que se debruçaram sobre a essência da arte, e é a isso que eu agora gostaria de me referir. Quero falar-te de uma concepção de arte que infelizmente está esquecida por quase todos neste momento: a de São Tomás de Aquino. Sabes o que é a arte para ele?

- Não.

- Uma virtude.

- Uma virtude?

- Sim. Parece-nos estranho e, para evitar ambiguidades, o melhor é começarmos por esclarecer o que ele entende por virtude. Dizia-nos ele que “virtutes humanae habitus sunt”[xvii], isto é, que a virtude não é algo com que se nasça; nasce-se com capacidade de se ser virtuoso, mas cada acto virtuoso é sempre uma conquista, implica sempre um esforço.

- Então, se bem entendo, a virtude tem a ver com o bom uso do livre arbítrio e implica capacidade de fazer alguma coisa. Ou não?

- Sim, a virtude humana diz respeito à capacidade de operar, o que remete para a razão. Não tem, portanto, a ver com o mero existir. A virtude humana é um «habitus operativus». E como a nossa acção nunca se orienta para o mal (há sempre uma hierarquia de bens em jogo, mesmo no caso do criminoso), a virtude humana, como bom uso do livre arbítrio, nunca se poderia orientar para o mal.

- Começo a ficar baralhado. Defina-me, por favor, então, virtude.

- «Virtus est bona qualitas mentis, qua recte vivitur, qua nullus male utitur, quam Deus in nobis sine nobis operatur».[xviii]

- Não percebi essa última parte: Deus age em nós sem nós?

- Porque é Deus quem infunde a virtude em nós.

- Ah... Mas então não somos virtuosos; é Deus quem é virtuoso!

- Não, não. Porque para que Deus infunda a virtude no homem, este tem que consentir. O sujeito da virtude humana não poderá ser outro que não o próprio homem.

- Como é isso?

- Por exemplo, o intelecto. Quer o intelecto prático, quer o intelecto especulativo podem ser sujeitos da virtude. Não, no entanto, sem estar em relação com a vontade. No caso do intelecto prático, ele é sujeito da prudência. Sendo a prudência a “recta ratio agibilium”, para possui-la, o homem deve estar rectamente orientado no que respeita aos fins da acção.

- Compreendo. Mas, como é que se pode alcançar essa boa ordenação?

- Pela rectidão da vontade. A prudência é a virtude mais necessária para viver bem. E viver bem consiste em agir bem. A acção boa não resulta do ímpeto, mas escolha recta.

- Pai, tenho uma dúvida: correspondendo a prudência a agir bem, a arte não se encontra também incluída nela?

- Não. Embora ambas sejam virtudes intelectuais, a arte distingue-se da prudência,.» 

- Virtudes intelectuais?!, interrompeu Mitche, Que disparate! A arte não pode ser uma virtude intelectual, porque não se faz apenas na cabeça. Uma obra que não tenha saído da mioleira não conta, não existe, de facto. O que dirias tu de um pintor que afirmasse a pés juntos que tinha pintado o quadro mais maravilhoso do mundo, mas que nunca tinha saído da sua cabeça, que nunca tinha passado pelas suas mãos? Dá também a um escritor uma caneta sem tinta, a um pintor tintas de má qualidade, e vais ver a tua linda obra, essa virtude intelectual! E se, por exemplo, se a mão do artista falha? Imagina que Velazquez morria a meio de «As Meninas»!

- Isso foi também o que eu disse ao pai, mas ele esclareceu o critério em que se fundava a infalibilidade da obra de arte, segundo Tomás de Aquino. A arte, como produto da alma que encerra em si a capacidade de raciocínio, é pensada antes de ser feita, de modo que, ainda que o artista erre aquando da materialização da sua ideia – até porque pode acontecer que o material não seja de qualidade – isso não afecta a integridade da interioridade do artista.[xix] Além disso, para São Tomás, a arte comporta uma tripla operação: o estudo do que se pretende produzir e de como se pretende produzir; a escolha do material a usar e, só no fim de tudo, a própria realização do produto artístico.[xx]

Mas antes, repara, é preciso lembrarmo-nos de que nós não concebemos a arte do mesmo modo que os medievais. Neles, a arte é um conceito que engloba todas as esferas em que entra a habilidade da mão do que a que poderíamos chamar «homo artifex», ao passo que nós nos guiamos por uma concepção muito restritiva, pondo nela apenas as Belas-Artes. A «ars» latina elevava, de algum modo, o artesão – o que não é de estranhar, se pensarmos em Cristo como carpinteiro. «O “artifex” é o ferrador, o retórico, o poeta, o pintor e o tosquiador de ovelhas, (...) “ars” é um conceito muito vasto que se estende também ao que nós chamaremos artesanato ou técnica, e a teoria da arte é, antes de mais, uma “teoria dos ofícios”.»[xxi] Mas vou continuar a relatar a conversa que tivemos nesse dia. Eu disse-lhe: 

«- Isso é belo! Mas… se a arte é virtude e se a virtude é um hábito orientado para o bem, o que dizer de alguém que se serve da sua arte para prejudicar o outro homem?

- Boa objecção! Estás atento. Para São Tomás, uma coisa é o domínio da moral, outra é o domínio da arte. São autónomos. A arte não procura tornar o artista num homem bom, mas sim o homem num bom artista. O artista é um bom artista quando a sua obra é boa: “o importante para o ferreiro é fazer uma boa espada, e não importa se ela vai ser usada para fins nobres ou perversos”.[xxii] O que qualifica a obra como boa é a perícia de quem a faz.

- Isso é interessante… Então, se bem compreendi, a arte e a moral são igualmente importantes. Não é? Estão em pé de igualdade!

- São Tomás diz-nos que não. A moral equivale ao domínio da acção; a arte ao domínio do fazer. Se a prudência é «recta ratio agibilium», a arte é «recta ratio factibilium». O fazer é uma acção que produz uma obra exterior. Já o resultado do agir não fica na matéria exterior, mas sim na interioridade do próprio sujeito. Portanto, a moral é mais autónoma do que a arte. É, por isso, superior.

- Então a arte define-se apenas como o conhecimento do conjunto de técnicas através do qual podem ser produzidas coisas bem feitas?

- Também não é bem isso. A arte não se esgota na técnica. Sabes o que penso? Creio que a boa obra de arte recria, de algum modo, o primeiro impulso criador.

- O primeiro impulso criador..?

- Sim, a acção criadora de Deus. Por isso, é bom que a obra de arte seja bela. Ela espelhará a beleza e a perfeição do Primeiro Ser.

- Pai, espero que me perdoe, mas não posso concordar. Não pretendo que as minha obras sejam belas. Por que é que a obra de arte tem que ser bela e perfeita se a realidade não o é? E eu não creio em Deus! Lamento, pai. Para mim, a arte tem que exprimir aquilo que eu sinto e penso; e isso não é necessariamente belo, útil, perfeito e agradável: é o que é! Isso basta-me.[xxiii]» 

Mitche interrompeu as recordações do irmão com uma gargalhada sarcástica.

- James, só tu podias dizer tais disparates! A arte serve para mostrar a beleza e para divertir. A nossa missão no mundo reduz-se a isso: trazer beleza!

- Suponho então que é por isso que te enfeitas para sair de casa, sobretudo à noite, quando a tua filha dorme...

- Não, espertinho! Estavas à espera, com certeza, de que eu, depois de ter sido abandonada nesta idade pelo meu marido, me enclausurasse? É preciso arte para tirar partido da situação em que nos encontramos. Em vez de remorder a minha pouca sorte, tento virá-la a meu favor. E acho que é isso que deverias fazer com os teus pincéis: convenceres-te de que a vida merece a pena ser vivida.

- Então para ti a arte só tem sentido como celebração da vida?

- Sem dúvida! – Mitche recostou-se prazenteiramente no sofá. – A arte pela arte, a beleza pela beleza, sem a subordinar a coisa alguma. Olha, sabes o que te faz falta? Uma mulher e filhos.

- Deves pensar que, lá por teres uma filha, cumpriste o sentido de existir. Para já, não existe sentido algum. É por isso que me defino como anarquista, porque acredito na anarquia, ou seja, acredito na ausência de qualquer princípio, seja este metafísico ou político. Sabes o que vejo quando olho para ti nesta sala inundada de luz verde-mar?

- Infelizmente não deve ser nada de interessante, por muito que eu me esforce…

- «Ah! A mulher e a sua máscara de carne, carne viva, depressa volvida para sempre numa máscara de cartão…».[xxiv] Nada mais vejo do que um cadáver adiado, que procria, como ainda algum poeta mais lúcido há de vir a dizer. O tempo vai encarregar-se de te tirar essa segurança quanto à tua beleza, vais ser mais um rosto vazio em pânico com a morte próxima. E por isso acho extraordinária essa tua descontracção! Não só puseste a pequena Alexandra no mundo, como vais pôr mais um!

- A natureza infelizmente não fez apenas animais inteligentes, pelo contrário, os estúpidos são em maior quantidade. Como tu! Só empatam, não ajudam à felicidade de ninguém!

- Do que não gostas é que te ponha frente às tuas próprias responsabilidades. Parir não é um acto virtuoso, minha cara. Não passas de um animal quando o fazes. E não quero estar presente quando tiveres que explicar à pequena Alexandra que ela um dia vai morrer.

- Mas isso é normal, não achas? Se estamos vivos, é porque temos que morrer.

- Que bonito! Basta explicar o sentido da existência, mas só o da saída. Basta dizer que desde que nascemos estamos condenados à morte? Nem penses que eu algumas vez vou dizer à minha sobrinha o que a espera.

- E achas que a vida não é suficientemente boa para justificar chamá-los à existência?

- Não. Nada justifica a opção consciente de dar a um ser a angústia suprema, que é a angústia de saber que um dia se vai deixar de ser.

- É inevitável, acabamos sempre a discutir. Nem sei como é que consigo aturar-te!

- Olha, acabei. Podes levantar-te.

- Já posso ver?

- Sim. Vê como de facto és. 

No quadro podia ver-se um esqueleto recostado num sofá. Uma esfera transparente fazia de ventre, onde estava suspenso um segundo e minúsculo esqueleto. Mitche olhou para ele atentamente, a irritação em crescendo até quase lhe nublar o raciocínio. Virou devagar a cabeça para o irmão, os olhos semicerrados, o rosto corado.

- James, o pai também me contou uma história engraçada. Conheces aquele episódio que se conta que aconteceu com Alexandre o Grande e os sacerdotes egípcios?

- Se conheço, não me lembro. Diz lá!

- Levaram-no até junto de um nó dado entre duas cordas, tão complexo que, disseram-lhe, quem soubesse desfazê-lo viria a ser senhor do mundo. Alexandre fixou-o longamente. De súbito, puxou da espada e cortou o nó. Tornou a embainhá-la e disse aos sacerdotes, atarantados: «O que não vence a inteligência, vence a força!»

- Não, não conhecia essa história. Mas o que tem ela a ver com o quadro?

- Com o quadro?... Não é tanto com o quadro – que aliás, é um horror – mas contigo, com essa decadência, essa morbidez, essa degradação...!

- E...?!

- Tem... isto!

O pé de Mitche, mais rápido do que poderia fazer prever a sua avançada gravidez, voou e desfez a tela em que Ensor pintara o que seria o único nu de toda a sua vida. 

  Notas
 

[i] Max Scheler, «Para a reabilitação da virtude», in DA REVIRAVOLTA DOS VALORES, tradução de Marco Antônio dos Santos Casa Nova, Petrópolis, Vozes, 1994; pp. 19-22.

[ii] Aristóteles, ÉTICA A NICÓMACO, tradução de Julían Marías, 7ª ed., Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1999; I, 1094 a.

[iii] Aristóteles, DE ANIMA, tradução de Carlos Humberto Gomes, Lisboa, Edições 70, 2001; III, 435 b 4.

[iv] Idem; 435 a 14.

[v] Cf. Idem, 435 a 18.

[vi] Cf. Idem; 434 b 20-25.

[vii] Cf. Idem, ÉTICA A NICÓMACO; II, 5, 1105 b 20-30.

[viii] Cf. Idem; 1105 b 30 – 1106 a 5.

[ix] Cf. Idem; 1106 a 5-12.

[x] Cf.  Idem; VI, 2, 1139 a 19.

[xi] Cf. Idem;VI, 1, 1139 a 5-15.

[xii] Cf. Idem; VI, 1139 a 25.

[xiii] Cf.  Idem; VI, 4, 1140a5.

[xiv] Joaquim Cerqueira Gonçalves, EM LOUVOR DA VIDA E DA MORTE, Lisboa, Colibri, 1998; pp. 55-56.

[xv] Cf. Ulrike Becks-Malorny, JAMES ENSOR, AS MÁSCARAS, O MAR E A MORTE, tradução de Alexandre Correia, Colónia, Ed. Taschen, 2000: «O artista, que se definia a si mesmo como um ser genial e único no seu género, anuncia em 1911 que “tinha antecipado todas as tendências modernas” e fê-lo “em todas as direcções”».;

[xvi] São Tomás de Aquino, SUMA CONTRA GENTILES, I, tradução de Jesus Castellano, Madrid,  Editorial Cristiana, B. A. C., 1952; cap. 93.

[xvii] São Tomás de Aquino, SUMA TEOLOGICA, Comissão de tradução presidida por Francisco Barbado Viejo, Madrid, Editorial Cristiana, B. A. C., 1956; I-II, q. 55, a. 1, co.

[xviii] Idem; I-II, q. 55, a. 4.

[xix] Cf. Jacques Maritain, ART ET SCHOLASTIQUE, Paris, Ed. Louis Rouart et Fils, 1927 ; capítulo III.

[xx] Cf. Battista Mondin, «Arte», in DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DEL PENSIERO DE SAN TOMMASO D‘AQUINO, Bologna, Edizione Studio Domenicano, 1991; p. 64.

[xxi] Umberto Eco, ARTE E BELEZA NA ESTÉTICA MEDIEVAL, tradução de António Guerreiro, 2ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 2000; p. 127.

[xxii] Ibidem.

[xxiii] André de Ridder ilustra a atitude de Ensor perante a arte e os objectivos artísticos: «... Geralmente contentava-se em declarar que não sabia ao certo o que tinha querido exprimir neste ou naquele quadro de água-forte, e que não tinha doutrinas estéticas a defender, nem doutrinas políticas a propalar...»; in Ulrike Becks-Malorny, JAMES ENSOR, AS MÁSCARAS, O MAR E A MORTE; p. 45.

[xxiv] Idem; p.11.

 
 

 

 

Maria Inês Bolinhas (Portugal)
Professora Assistente da Área Científica de Filosofia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa; investigadora de História da Filosofia Medieval.

 

 

© Maria Estela Guedes
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