PREÂMBULO
1. Edimilson trabalhava com as
costas vergadas sob o Sol. Explicava ao colega que construir uma casa é
uma «arte» como outra qualquer. O segredo é entender a pedra, «Há que a
amar o material, não lutar contra ele».
2. Miguel Ângelo acabava de polir,
com «técnica», a bela «Piedade».
3. Zulmira sentou-se na poltrona e
ajeitou a saia. Ordenou à neta: «Sente-se. É uma vergonha! Tem catorze
anos, vai casar-se dentro de dez meses e não sabe nem metade das “artes”
que qualquer mulher deve saber! Hoje não se levanta daqui sem saber
bordar o linho!»
4. Na noite nevoeirenta de Inverno,
era impossível que alguém o visse. Acercou-se dela. O efeito dos copos
bebidos pouco antes, em casa no namorado, passou-lhe logo: pressentiu o
que iria acontecer e o sangue gelou-se-lhe nas veias. Ele procurou
acalmá-la: «Não tenhas medo. Fico cheio de pena se o tiveres, mas isto
não pode acontecer de outro modo. Prometo que não vai doer muito. Sabes,
já fiz isto dezenas de vezes. E tu és tão bonita! Eu faço disto uma
«arte», tenho muita «técnica». Depois de te matar (não chores, já te
disse que não dói), vou cuidar do teu corpo, decompô-lo em partes e
reinventá-lo. Tenho pena que não te possas ver depois, considerar-te-ias
uma sublime obra de arte. Oh! Não chores, coisa pequenina!»
5. Carlos já não sabia o que seria
a sua vida sem as máquinas que tinha à sua frente. Entrara para a
fábrica há vinte anos, vira as primeiras, ainda rudimentares, chegar, e,
até passar a encarregado, crescer em número. Agora, lá em baixo,
inúmeras máquinas modernas zumbiam com alegria, delas saindo
continuamente lindos panos de todas as cores. Olhava satisfeito para o
espectáculo colorido: apetecia-lhe compor um hino aos omnipotentes
engenheiros que as concebem.
PARTE I
«Também no Olimpo existem
distinções, nem todos se misturam. Os deuses vivem separados daqueles
mortais cuja excelência lhes permitiu subir até lá e lá desfrutar da
eternidade.
Um dos locais mais frequentados por
aqueles que, na Terra, mais se quiseram aproximar da Verdade é o
Cantinho do Ti’ Olímpio, onde se continua a ter acesso a alguns dos
prazeres mediterrânicos: uma boa conversa, acompanhada por alguns dos
sabores, que a ambrósia e o néctar não fizeram esquecer. Foi assim que
demos com o Obscuro e o Estagirita, sentados, debaixo de uma latada,
frente a dois copos de bom vinho tinto, pão e um pratinho de azeitonas,
numa discussão muito animada acerca da natureza da technê.
Heraclito: Não consegui perceber
muito bem essa tua afirmação de que a técnica é a virtude da produção.
Explica-te lá melhor.
Aristóteles: Então, voltemos atrás.
Quando falo em virtude, pretendo significar a excelência, a realização
plena do que pode vir a ser feito. Ambos sabemos que, mais tarde, a
virtude chegou a ser concebida como uma “velha solteirona, vociferante e
sem dentes”[i]; mas eu
continuo a falar da virtude como excelência. A excelência, no que
respeita à técnica, não poderia ficar apenas pelo elogio da destreza ou
da habilidade; vendo melhor, creio que nem sequer a posso excluir da
metafísica.
H: Explica-me lá isso.
A: Explico – pela atracção contínua
que é exercida pelo Motor Imóvel. A manifestação mais óbvia de que os
seres tendem para a excelência é que, em todas as suas actividades,
desejam o bem. Lembras-te do que escrevi, há muitos séculos: “toda a
arte e toda a investigação, e do mesmo modo, toda a acção e escolha
parecem tender a algum bem”?[ii]
H: Lembro, lembro, mas, oh, meu caro… E o que é o bem? Se vais pela
ladeira acima ou pela ladeira abaixo, ainda que o caminho seja o mesmo,
não o vês da mesma forma! Além disso, o que é que te leva a crer que a
técnica tende obrigatoriamente para o bem?
A: Olha lá, então não és tu próprio que afirmas que o idiota é aquele
que não escuta o Logos? Então o Logos é a verdade, independentemente de
tu estares a subir ou a descer a ladeira. E ninguém, nem mesmo o idiota,
quer ser idiota; porque o ser humano se caracteriza pelo amor à verdade
e porque todo o homem deseja naturalmente conhecer. A prova disso é que
as faculdades dos sentidos são amadas por si mesmas.
H: Sem te querer desviar, diz-me
entretanto uma coisa: os sentidos são, ou não são todos, uma espécie de
tacto?
A: Sem dúvida, “o sentido do tacto
é (...) aquele cuja privação implica a morte dos animais”.[iii]
“Sem o tacto nenhum outro sentido poderá ser concedido ao animal: todo o
corpo – entenda-se corpo animado – possui (...) sensibilidade táctil”.[iv]
H: E não podemos considerar a visão
como um tacto à distância?
A: Sem dúvida. Afinal o que é um
sentido? Não é aquilo que nos põe em contacto com a realidade? De modo
que todo o sentido é uma espécie de tacto. Digamos que há “tactos” que
são mais directos do que outros![v]
H: O gosto não é também uma espécie de tacto?
A: Sim. Mas há a ver que apenas o
gosto e o tacto são indispensáveis para a sobrevivência do animal,
destinando-se os restantes a proporcionar-lhe uma existência mais
agradável.[vi]
H: O que leva a estabelecer uma
analogia entre o comer e o conhecer. Ou não é?
A: De certa maneira. Enquanto na
nutrição o vivente assimila a matéria da substância nutritiva, no
conhecimento intelectual só se assimila a forma do objecto que é
conhecido. Mas o que eu queria, de facto, era demonstrar que a nossa
apetência para sentir reflecte a apetência para conhecer, reflectindo
esta última, por sua vez, a nossa tendência essencial para o bem. O
mesmo se passa na acção: quando alguém age, não tem em vista o mal. Ao
agirmos, movimentamo-nos para o bem, porque o movimento não se explica
adequadamente senão em função da actualização, que é o seu fim.
H: Concebes o movimento
teleologicamente…
A: Claro que sim. O movimento não é
lúdico, como tu pretendes, o tempo não é uma criança que brinca! Todos
os seres, quando se movem, movem-se em direcção ao sumamente perfeito
Motor Imóvel.
H: E os homens? Como se dirigem
eles para a perfeição? Ou seja: que tipo de movimento é esse que o homem
tem para chegar à perfeição? Pois certamente que, nesse caso, a
locomoção seria apenas uma ínfima expressão desse movimento. Estou a
ver-te a pôr toda a gente a praticar salto em altura!
A: Com efeito, as mudanças a que me
referi dão-se na alma, onde reside também a capacidade de locomoção (à
excepção das almas que têm apenas a faculdade vegetativa). Se a alma é a
forma primeira do corpo apto a receber vida, é nela que as mudanças se
devem dar.
H: Mas que tipo de mudanças são
essas? Dito de outro modo: que género de coisas vês tu que se passem na
alma?
A: Existem na alma paixões,
faculdades e hábitos.[vii]
Mas não nos dispersemos: o nosso objectivo é esclarecer qual é o sentido
e quais são as implicações de uma concepção da técnica como virtude e
provar que a técnica se dirige para o bem. Sendo assim, diz-me: onde
vamos colocar a virtude?
Nas paixões? As paixões são o
reflexo em nós da acção de um agente externo e têm a ver com
passividade. Além disso, a virtude elogia-se, enquanto nem as paixões,
nem os vícios se elogiam! Além disso, a virtude tem que ver com uma
escolha. E se as nossas paixões nos fazem correr, a virtude, pelo
contrário, dá-nos uma certa disposição para a acção, mas não a
determina.[viii]
E as
faculdades...! Será a virtude uma faculdade? Não, as faculdades são
inatas, são aquilo que possibilita que soframos a influência do meio
externo. Se somos elogiados ou censurados pela virtude, dado que é uma
escolha, não faz sentido recebermos elogios por termos nascido desta ou
daquela maneira. Então, se não é nem paixão, nem faculdade, a virtude só
pode ser definida como um hábito.[ix]
H: Não vás tão depressa! Mesmo que
não diga respeito às faculdades, a virtude lida, de algum modo, com as
paixões porque nos diz como nos devemos comportar em relação a elas. Ou
não?
A: Sim.
A virtude tem a ver com paixões e acções, nas quais o excesso e o
defeito erram, enquanto o justo meio acerta. A virtude, repara, é o
justo meio, o que implica, obviamente, não uma regra fixa, mas uma
capacidade de ajustarmos o nosso comportamento à própria situação.
Portanto, a virtude é, antes de mais, uma escolha, a virtude é um hábito
selectivo! Que depende da razão, claro.
H: Quer dizer que defines a virtude
como a boa escolha?
A: Exactamente.
H: Esclarece-me, então, apenas
quanto a isto: o facto de nos orientamos para o bem é, para nós,
essencial, embora o modo como o façamos é aleatório? Ou existe algum
critério para essa “boa escolha”?
A: Existe, porque não se chega ao
bem independentemente dos meios que utilizarmos. Os meios têm certamente
alguma articulação com os fins. Sendo a virtude a boa escolha...
H: Não sei se concordo com tudo o
que estás a dizer… Mas, prossegue. Boa escolha, de quê?
A: Ao limite, de si próprio. Vejamos quais são as actividades do ser
humano, pois que é através delas que se define a orientação para o nosso
fim. Existem – penso que neste ponto estamos de acordo – três tipos de
actividades: teórica, prática e poiética. Das três, há que ver que a
“teoria” é mais excelente, porque tem o fim em si mesma. Segue-se a
“práxis” e, por fim, a “poiesis”. Todas elas expressam o modo de ser do
ser humano, na medida em que o ente se diz de muitas maneiras.
H: Continua, continua...
A: Há três coisas na alma que regem a acção e a verdade. São elas a
sensação, o entendimento e o desejo.[x]
Ora nós temos duas partes racionais: uma é aquela com que nós
contemplamos os objectos que podem ser de outra maneira. O que está em
causa é a mutabilidade, se algo se move, é porque está em actualização.
E...
H: Espera! Não voltámos por esta
via à velha questão de que o ser é e o não ser não é? Mas, ó meu amigo,
o que estás a admitir implicitamente é a existência de realidades
imutáveis! Estás a esquecer-te de que “descemos e não descemos às águas
do mesmo rio, somos e não somos”. Onde queres tu ancorar, meu distraído?
A: Mesmo assim terias que admitir
que o Logos, em perpétuo devir, é constante na sua harmonia na
contrariedade. Não se trata aqui do ser e do não ser, trata-se do ser
que já é e do ser que está por ser, o qual – e nisso tens razão! – é um
não ser, mas não em sentido absoluto, é um não ser relativo. A parte da
alma que contempla os objectos que não podem ser de outra maneira
chama-se científica; a que contempla os objectos que podem ser de outra
maneira chama-se calculadora, já que calcular e deliberar são a mesma
coisa e que ninguém delibera sobre o que não pode ser de outra maneira.[xi]
De onde se segue que essa segunda parte, a deliberadora, diz
necessariamente respeito à escolha.
H: E o que é a escolha? Já
definimos a virtude como hábito selectivo e como boa escolha. Mas o que
é a escolha, independentemente de ser boa ou má?
A: A escolha é um desejo deliberado
ou um juízo desejado[xii];
é o princípio da acção, já que a reflexão, por si, nada põe em
movimento.
H: Então e as coisas que podem ser
de outra maneira, que são objecto da parte calculadora ou deliberadora
da nossa alma, que são, portanto, passíveis de escolha, que coisas são?
A: Vejamos primeiro as que não
podem ser de outra maneira, aquelas que são passíveis de conhecimento
científico, pois só pode haver conhecimento do que é imutável.
H: Lá voltamos nós ao mesmo: o ser
é e o não ser não é...!
A: Só podes ter conhecimento do que
é em acto, não daquilo que está para ser! As coisas que podem ser de
outra maneira são as que se podem escolher, sobre as quais se pode
deliberar.[xiii] É
precisamente aqui, vê bem, que se enquadra a acção, cuja virtude é a
prudência. Repara ainda que a prudência não pode ser idêntica nem à
técnica, nem à ciência. Não pode ser ciência porque a actuação pode ser
de outra maneira (e porque a ciência vem sempre acompanhada de
demonstração). A prudência é uma disposição racional verdadeira prática
com respeito àquilo que é bom e mau para o homem. Falamos de ética; e a
boa acção é um fim em si mesmo. Já o fazer não é um fim em si mesmo. Mas
o objecto de ambas, práxis e poiesis, caracteriza-se pela contingência.
Uma coisa pode acontecer e chegar a ser, ou não acontecer e não chegar a
ser. Mas não se pode confundir acção e produção.
H:
Hum... Não sei. Creio que uma objecção possível ao que disseste é a de
que, mesmo assim, a acção parece de algum modo uma obra calculada,
podendo isso até ter repercussões sociais. Não me parece que exista
grande diferença entre a acção e a produção. O que é então a técnica?
A: Claro
que existe diferença! A técnica é uma disposição racional para a
produção; é uma disposição produtiva acompanhada de razão verdadeira.
Mas se actuar é um fim em si mesmo, já o fazer não o é. O fim do fazer
não é o bem do artífice, mas a qualidade da obra feita. Agora, gostaria
de resumir assim o que disse: toda a técnica versa sobre o chegar a ser.
De facto, a técnica não tem a ver nem com as coisas que se produzem ou
são necessariamente, nem com as coisas que se produzem de maneira
natural, porque estas coisas têm o seu princípio em si mesmas.
H: Não
me convences. Pensa no seguinte...»
Um bip e uma luz que se acendeu no
visor alertaram-no para a chegada de uma nova mensagem. O Capitão
M45vs023, chefe da missão arqueológica da Secção de Estudos
Histórico-Filosóficos do Departamento de Estudos Arqueológicos do
Sistema Solar de Origem, interrompeu a sua escrita, suspirando. Pousou o
estilete electrónico e leu:
«Terra, 27 de Janeiro de 25 005.
Caro Capitão:
Entre outros objectos, encontrámos
este fragmento de texto, pertencente a um autor desconhecido. Remetemos
à sua consideração. Cordiais saudações.
“A dicotomia e o contraste entre o
agir e o fazer representa também um sintoma da cultura ocidental. ... ao
distinguir entre ciências éticas e ciências poiéticas. Lidando umas e
outras com o possível, não com o necessário, do qual se ocupariam apenas
as ciências especulativas, reconhece-lhes, entretanto, dignidade
diferente: as poiéticas, por se ocuparem do que é realizado
exteriormente ao agente, situam-se numa escala inferior à das ciências
éticas, cujo possível se circunscreve ao próprio ser humano, sem se
degradar no movimento exterior. ... Não se repara em que a dissociação,
remotamente estabelecida pela cultura ocidental, entre o ético e o
poiético, indicia já a perversão que levou o ser humano a servir-se dos
outros entes em seu proveito[xiv]”.
»
PARTE II
O quarto definia-se numa tonalidade
rosa-velho, devido à cortina corrida que filtrava a luz naquela tarde de
Maio invulgarmente quente. Ensor parou junto à porta contendo a
respiração. Mitche, a sua bela e única irmã, dormia a sono solto, com a
pequena filha junto ao peito. O volume da gravidez dominava totalmente a
cena. Aproximou-se, de joelhos, para não perturbar a sobrinha.
Sussurrou-lhe ao ouvido: «Mitche, acorda!». O corpo volumoso
espreguiçou-se longamente. Aos poucos, foi arrancada ao torpor pela
insistência do irmão.
- Mitche, deixa aí a Alexandra e
vem comigo até ao sótão.
Ainda demasiado estremunhada para
uma pronunciar uma palavra que fosse, embrulhou-se no roupão e subiu
pelas escadas. Ensor fê-la entrar no seu estúdio.
- Que é que queres?, conseguiu
articular.
- Espera que já vês. É só tapar
esta janela com o teu robe verde e está criada a atmosfera ideal. Agora
deita-te aí que vou buscar as tintas para pintar o teu retrato. Mas tens
que te despir, quero pintar-te grávida e nua.
- O quê?! Mas tu já sabes que a mãe
te proibiu de pintar fosse quem fosse que estivesse nu! Eu, por mim, já
sabes que não me importo! Mas se ela nos aparece aí!?
- Não aparece nas próximas horas,
podes estar descansada. Foi com a tia Mimi ver aquela nossa vizinha que
está doente, há meses. Temos a tarde por nossa conta. Vá, tira o roupão.
Despacha-te!
- Só tu é que me metes nestas
coisas… Onde é que fico?
- Ali, naquele canto, por causa da
luz cruzada das duas janelas.
- E qual é a pose em que V. Exa.
deseja que eu me ponha? Agradeceria que fosse confortável!
- Da forma mais descontraída que
possas. Pensa que estás a boiar no mar.
Já mais desperta, a irmã deitou-se
no velho sofá do sótão, inundado de luz verde, cantarolando baixinho.
- Mitche, foi dizendo Ensor
enquanto preparava a paleta e os pincéis, hoje vou fazer história! E tu
és o modelo do pintor que antecipará todas as correntes artísticas do
próximo século.[xv]
- Ah! Essa é uma boa notícia,
respondeu, mordaz. Mas o que eu quero é saber se finalmente vais começar
a pintar coisas que se possam vender na loja da mãe e da tia Mimi!
Aliás, nem sei o que foste fazer para a Academia de Artes, porque saíste
de lá a pintar tão mal como quando entraste.
- Falar contigo ou com a mãe é
desesperante! A vossa insensibilidade a tudo o que não se possa trocar
por dinheiro é lamentável! Nem sei porque estás aqui…
- Não há nenhuma razão específica.
Apesar de desprezar o que fazes, estar despida faz-me sentir viva. Mesmo
que saiba que tu não tens jeito para lidares ou apreciares mulheres,
pode ser que um dia te entusiasmes e que pintes qualquer coisa de jeito,
bela.
- Depende do que pensares que é a
beleza.
- Depende do que é a beleza... «O
belo é aquilo que agrada à vista...», ao nariz, aos ouvidos, ao tacto e
ao gosto.
Ela riu e espalhou a carne no sofá.
Ensor construía o quadro, pouco a pouco.
- Mitche, o que é para ti a arte?
- Penso que a arte é o conjunto de
técnicas através das quais a beleza é trazida ao mundo.
- Então a arte serve para...?
- Para tornar o mundo mais belo.
- E qual será a fonte da beleza?
- Sei lá!
-
Est igitur proprie “ars” in Deo.[xvi]
- O quê? Lá vens tu com os teus
autores latinos.
- Não é um autor latino, é São
Tomás, é medieval.
- É igual, escreviam todos em
Latim.
- Disse que a arte está em Deus.
- Ah! Pois, está bem. James, o que
é isso!? Por que é estás a chorar?
- Lembrei-me do pai e das conversas
que tínhamos. Tenho muitas saudades dele. Era a única pessoa com quem
podia falar de coisas mais elevadas do que a contabilidade da loja ou o
preço da batata.
- Eu adorava o pai, mas não deixo
de reconhecer que ele não passava de um inútil adorável. Tão inútil como
tu, diga-se de passagem. Aliás, é curioso que o peso morto da família
esteja do lado masculino e que sejam as mulheres a angariar o sustento
da casa.
- Não sejas grosseira nem injusta.
- Pois, pois... Continua lá.
- Certo dia surpreendeu-me na
secretária dele, a desenhar. Eu estava aborrecido. Então ele disse-me
assim: «Vejo que continuas a trabalhar duramente para seres um bom
artista. Mas não sei se compreendes bem a responsabilidade da tua
ocupação. Gostaria que deixasses, por uns momentos, esse esboço, para
falarmos um pouco.» Pousei o carvão na mesa e ergui a cabeça para ele,
sem dizer uma palavra, incitando-o, com o olhar, a que prosseguisse. Ele
entendeu, como sempre. Sentou-se à minha frente e começou:
«Como sabes, o pensamento exerce-se
sobre todos os campos da actividade humana. A arte é um deles. Antes de
nós, muitas foram as pessoas que se debruçaram sobre a essência da arte,
e é a isso que eu agora gostaria de me referir. Quero falar-te de uma
concepção de arte que infelizmente está esquecida por quase todos neste
momento: a de São Tomás de Aquino. Sabes o que é a arte para ele?
- Não.
- Uma
virtude.
- Uma virtude?
- Sim. Parece-nos estranho e, para
evitar ambiguidades, o melhor é começarmos por esclarecer o que ele
entende por virtude. Dizia-nos ele que “virtutes humanae habitus sunt”[xvii],
isto é, que a virtude não é algo com que se nasça; nasce-se com
capacidade de se ser virtuoso, mas cada acto virtuoso é sempre uma
conquista, implica sempre um esforço.
- Então, se bem entendo, a virtude
tem a ver com o bom uso do livre arbítrio e implica capacidade de fazer
alguma coisa. Ou não?
- Sim, a virtude humana diz
respeito à capacidade de operar, o que remete para a razão. Não tem,
portanto, a ver com o mero existir. A virtude humana é um «habitus
operativus». E como a nossa acção nunca se orienta para o mal (há sempre
uma hierarquia de bens em jogo, mesmo no caso do criminoso), a virtude
humana, como bom uso do livre arbítrio, nunca se poderia orientar para o
mal.
- Começo a ficar baralhado.
Defina-me, por favor, então, virtude.
- «Virtus est bona qualitas mentis,
qua recte vivitur, qua nullus male utitur, quam Deus in nobis sine nobis
operatur».[xviii]
- Não percebi essa última parte:
Deus age em nós sem nós?
- Porque é Deus quem infunde a
virtude em nós.
- Ah... Mas então não somos
virtuosos; é Deus quem é virtuoso!
- Não, não. Porque para que Deus infunda a virtude no homem, este tem
que consentir. O sujeito da virtude humana não poderá ser outro que não
o próprio homem.
- Como é isso?
- Por exemplo, o intelecto. Quer o
intelecto prático, quer o intelecto especulativo podem ser sujeitos da
virtude. Não, no entanto, sem estar em relação com a vontade. No caso do
intelecto prático, ele é sujeito da prudência. Sendo a prudência a
“recta ratio agibilium”, para possui-la, o homem deve estar rectamente
orientado no que respeita aos fins da acção.
- Compreendo. Mas, como é que se
pode alcançar essa boa ordenação?
- Pela rectidão da vontade. A
prudência é a virtude mais necessária para viver bem. E viver bem
consiste em agir bem. A acção boa não resulta do ímpeto, mas escolha
recta.
- Pai, tenho uma dúvida:
correspondendo a prudência a agir bem, a arte não se encontra também
incluída nela?
- Não. Embora ambas sejam virtudes
intelectuais, a arte distingue-se da prudência,.»
- Virtudes intelectuais?!,
interrompeu Mitche, Que disparate! A arte não pode ser uma virtude
intelectual, porque não se faz apenas na cabeça. Uma obra que não tenha
saído da mioleira não conta, não existe, de facto. O que dirias tu de um
pintor que afirmasse a pés juntos que tinha pintado o quadro mais
maravilhoso do mundo, mas que nunca tinha saído da sua cabeça, que nunca
tinha passado pelas suas mãos? Dá também a um escritor uma caneta sem
tinta, a um pintor tintas de má qualidade, e vais ver a tua linda obra,
essa virtude intelectual! E se, por exemplo, se a mão do artista falha?
Imagina que Velazquez morria a meio de «As Meninas»!
- Isso foi também o que eu disse ao
pai, mas ele esclareceu o critério em que se fundava a infalibilidade da
obra de arte, segundo Tomás de Aquino. A arte, como produto da alma que
encerra em si a capacidade de raciocínio, é pensada antes de ser feita,
de modo que, ainda que o artista erre aquando da materialização da sua
ideia – até porque pode acontecer que o material não seja de qualidade –
isso não afecta a integridade da interioridade do artista.[xix]
Além disso, para São Tomás, a arte comporta uma tripla operação: o
estudo do que se pretende produzir e de como se pretende produzir; a
escolha do material a usar e, só no fim de tudo, a própria realização do
produto artístico.[xx]
Mas antes, repara, é preciso
lembrarmo-nos de que nós não concebemos a arte do mesmo modo que os
medievais. Neles, a arte é um conceito que engloba todas as esferas em
que entra a habilidade da mão do que a que poderíamos chamar «homo
artifex», ao passo que nós nos guiamos por uma concepção muito
restritiva, pondo nela apenas as Belas-Artes. A «ars» latina elevava, de
algum modo, o artesão – o que não é de estranhar, se pensarmos em Cristo
como carpinteiro. «O “artifex” é o ferrador, o retórico, o poeta, o
pintor e o tosquiador de ovelhas, (...) “ars” é um conceito muito vasto
que se estende também ao que nós chamaremos artesanato ou técnica, e a
teoria da arte é, antes de mais, uma “teoria dos ofícios”.»[xxi]
Mas vou continuar a relatar a conversa que tivemos nesse dia. Eu
disse-lhe:
«- Isso é belo! Mas… se a arte é
virtude e se a virtude é um hábito orientado para o bem, o que dizer de
alguém que se serve da sua arte para prejudicar o outro homem?
- Boa
objecção! Estás atento. Para São Tomás, uma coisa é o domínio da moral,
outra é o domínio da arte. São autónomos. A arte não procura tornar o
artista num homem bom, mas sim o homem num bom artista. O artista é um
bom artista quando a sua obra é boa: “o importante para o ferreiro é
fazer uma boa espada, e não importa se ela vai ser usada para fins
nobres ou perversos”.[xxii]
O que qualifica a obra como boa é a perícia de quem a faz.
- Isso é interessante… Então, se
bem compreendi, a arte e a moral são igualmente importantes. Não é?
Estão em pé de igualdade!
- São Tomás diz-nos que não. A
moral equivale ao domínio da acção; a arte ao domínio do fazer. Se a
prudência é «recta ratio agibilium», a arte é «recta ratio factibilium».
O fazer é uma acção que produz uma obra exterior. Já o resultado do agir
não fica na matéria exterior, mas sim na interioridade do próprio
sujeito. Portanto, a moral é mais autónoma do que a arte. É, por isso,
superior.
- Então a arte define-se apenas
como o conhecimento do conjunto de técnicas através do qual podem ser
produzidas coisas bem feitas?
- Também
não é bem isso. A arte não se esgota na técnica. Sabes o que penso?
Creio que a boa obra de arte recria, de algum modo, o primeiro impulso
criador.
- O
primeiro impulso criador..?
- Sim, a
acção criadora de Deus. Por isso, é bom que a obra de arte seja bela.
Ela espelhará a beleza e a perfeição do Primeiro Ser.
- Pai,
espero que me perdoe, mas não posso concordar. Não pretendo que as minha
obras sejam belas. Por que é que a obra de arte tem que ser bela e
perfeita se a realidade não o é? E eu não creio em Deus! Lamento, pai.
Para mim, a arte tem que exprimir aquilo que eu sinto e penso; e isso
não é necessariamente belo, útil, perfeito e agradável: é o que é! Isso
basta-me.[xxiii]»
Mitche interrompeu as recordações
do irmão com uma gargalhada sarcástica.
- James, só tu podias dizer tais
disparates! A arte serve para mostrar a beleza e para divertir. A nossa
missão no mundo reduz-se a isso: trazer beleza!
- Suponho então que é por isso que
te enfeitas para sair de casa, sobretudo à noite, quando a tua filha
dorme...
- Não, espertinho! Estavas à
espera, com certeza, de que eu, depois de ter sido abandonada nesta
idade pelo meu marido, me enclausurasse? É preciso arte para tirar
partido da situação em que nos encontramos. Em vez de remorder a minha
pouca sorte, tento virá-la a meu favor. E acho que é isso que deverias
fazer com os teus pincéis: convenceres-te de que a vida merece a pena
ser vivida.
- Então para ti a arte só tem
sentido como celebração da vida?
- Sem dúvida! – Mitche recostou-se
prazenteiramente no sofá. – A arte pela arte, a beleza pela beleza, sem
a subordinar a coisa alguma. Olha, sabes o que te faz falta? Uma mulher
e filhos.
- Deves pensar que, lá por teres
uma filha, cumpriste o sentido de existir. Para já, não existe sentido
algum. É por isso que me defino como anarquista, porque acredito na
anarquia, ou seja, acredito na ausência de qualquer princípio, seja este
metafísico ou político. Sabes o que vejo quando olho para ti nesta sala
inundada de luz verde-mar?
- Infelizmente não deve ser nada de
interessante, por muito que eu me esforce…
- «Ah! A
mulher e a sua máscara de carne, carne viva, depressa volvida para
sempre numa máscara de cartão…».[xxiv]
Nada mais vejo do que um cadáver adiado, que procria, como ainda algum
poeta mais lúcido há de vir a dizer. O tempo vai encarregar-se de te
tirar essa segurança quanto à tua beleza, vais ser mais um rosto vazio
em pânico com a morte próxima. E por isso acho extraordinária essa tua
descontracção! Não só puseste a pequena Alexandra no mundo, como vais
pôr mais um!
- A
natureza infelizmente não fez apenas animais inteligentes, pelo
contrário, os estúpidos são em maior quantidade. Como tu! Só empatam,
não ajudam à felicidade de ninguém!
- Do que não gostas é que te ponha
frente às tuas próprias responsabilidades. Parir não é um acto virtuoso,
minha cara. Não passas de um animal quando o fazes. E não quero estar
presente quando tiveres que explicar à pequena Alexandra que ela um dia
vai morrer.
- Mas isso é normal, não achas? Se
estamos vivos, é porque temos que morrer.
- Que bonito! Basta explicar o
sentido da existência, mas só o da saída. Basta dizer que desde que
nascemos estamos condenados à morte? Nem penses que eu algumas vez vou
dizer à minha sobrinha o que a espera.
- E achas que a vida não é
suficientemente boa para justificar chamá-los à existência?
- Não. Nada justifica a opção
consciente de dar a um ser a angústia suprema, que é a angústia de saber
que um dia se vai deixar de ser.
- É inevitável, acabamos sempre a
discutir. Nem sei como é que consigo aturar-te!
- Olha, acabei. Podes levantar-te.
- Já posso ver?
- Sim. Vê como de facto és.
No quadro podia ver-se um esqueleto
recostado num sofá. Uma esfera transparente fazia de ventre, onde estava
suspenso um segundo e minúsculo esqueleto. Mitche olhou para ele
atentamente, a irritação em crescendo até quase lhe nublar o raciocínio.
Virou devagar a cabeça para o irmão, os olhos semicerrados, o rosto
corado.
- James, o pai também me contou uma
história engraçada. Conheces aquele episódio que se conta que aconteceu
com Alexandre o Grande e os sacerdotes egípcios?
- Se conheço, não me lembro. Diz
lá!
- Levaram-no até junto de um nó
dado entre duas cordas, tão complexo que, disseram-lhe, quem soubesse
desfazê-lo viria a ser senhor do mundo. Alexandre fixou-o longamente. De
súbito, puxou da espada e cortou o nó. Tornou a embainhá-la e disse aos
sacerdotes, atarantados: «O que não vence a inteligência, vence a
força!»
- Não, não conhecia essa história.
Mas o que tem ela a ver com o quadro?
- Com o quadro?... Não é tanto com
o quadro – que aliás, é um horror – mas contigo, com essa decadência,
essa morbidez, essa degradação...!
- E...?!
- Tem... isto!
O pé de Mitche, mais rápido do que
poderia fazer prever a sua avançada gravidez, voou e desfez a tela em
que Ensor pintara o que seria o único nu de toda a sua vida. |