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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues |
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Análise
comparativa da linguagem e gênero dos registros memorialísticos
dos naturalistas italianos Ermanno Stradelli e Bartolomeu Bossi
ANA MARIA HADDAD BAPTISTA
&
MÁRCIA DO CARMO FELISMINO FUSARO
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EDITOR | TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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Índice de Autores |
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1. Introdução
Viajar sempre foi visto, pela maioria das
pessoas, com algo sedutor por várias razões. Viajar é, em certo
sentido, um recorte vertical temporal na vida, visto entrarmos e
adentrarmos em universos paralelos se comparados aos cotidianos. É
uma oportunidade de sairmos fora de uma rotina estabelecida.
Viajar é caminhar por terras e paisagens
diferentes das usuais. Geralmente nos coloca diante do diferente em
muitos sentidos. |
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Houve, especialmente, no século XIX uma verdadeira
febre por viagens em busca de paisagens naturais e explorações. Há
registros muito interessantes que fizeram a respeito do Brasil.
De acordo com Teresa Isenburg
(1900-15), a imagem de Lineu, no que diz respeito ao recolhimento e
classificação, foi seguida por muitos e, dessa forma, houve uma espécie
de “febre” em busca de uma diversificação na botânica, além das
fronteiras da Europa. Dispensável dizer o quanto a América Latina
oferecia em termos de variedades e, sobretudo, novidades. Além disso, as
narrativas que envolviam viagens e descobertas de flora e fauna faziam
um grande sucesso junto ao público em geral.
Considere-se que o momento é
bastante propício à difusão de livros e outros gêneros impressos, como
por exemplo, na área da literatura, os gêneros conto e romance. Há um
novo modelo de subjetividade que emerge e, consequentemente, exige uma
outra produção literária. O romance é um dos primeiros gêneros que
mostra o indivíduo, muitas vezes, em sua interioridade, assim como um
fruto de um meio sócio-econômico que o determina.
Além disso, houve, não somente na
área da botânica, uma verdadeira busca pela classificação em várias
áreas, como por exemplo, na área filológica. A classificação dava uma
ordem e um lugar para as coisas em geral.
Stradelli parte de Manaus através
do Rio Negro. Avança pela floresta Amazônica por intermédio, inclusive,
do Rio Branco, o Acre e outros lugares. Registra em suas memórias a
grande diversidade da fauna e flora brasileiras, assim como alguns
aspectos da vida dos indígenas que habitavam os lugares. Seus registros
contêm imagens fotográficas.
Bossi possui uma perspectiva um
pouco diferente de Stradelli. Agiu por conta da autoridade imperial e
percorreu, à época, a denominada província de Mato Grosso através de
rios.
Relata, principalmente, a
diversidade vegetal e animal. Suas observações tendem a uma análise
bastante detalhada e técnica, visto que deveria apresentar um relatório
bastante objetivo ao governo imperial.
Por intermédio dos recursos
textuais e de linguagem empregados por Stradelli e Bossi, propõe-se
alguns questionamentos: até que ponto os naturalistas estavam
preocupados em registrar com maior ou menor exatidão suas observações a
partir do que viam, considerando-se o contexto do século XIX? Os
registros não são ficcionais, logo, há um comprometimento para com a
verdade. Tal comprometimento estaria claro? Em que medida isso foi
possível? Até que ponto uma linguagem rica de elementos literários
compromete a veracidade do que foi narrado? |
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2. Stradelli: considerações importantes |
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Ermano Stradelli nasceu
em Borgotaro (Itália), em 1852, e morreu em Manaus no ano de 1926. Além
de registros escritos, deixou também muitas fotografías dos lugares
pelos quais passou no Brasil durante suas explorações.
O primeiro registro de
Stradelli iniciou-se a partir de sua saída de Manaus, no dia primeiro de
janeiro de 1888. Contudo, para os propósitos deste estudo, nos deteremos
em sua viagem de 1889, quando o naturalista parte de Manaus, através de
matas e florestas do Rio Branco.
Ao principiar o relato
reproduz, em discurso direto, ou seja, em forma de diálogo, uma conversa
com o major Ernesto Jaque Ourique, com o intuito, de alguma forma, de
valorizar o que vai fazer, ou seja, para enfatizar o caráter de aventura
que o aguardava, visto que falaram sobre as dificuldades de uma
expedição.
Enfim, Stradelli parte
de Manaus:
O Presidente da
Província colocou à nossa disposição uma lancha a vapor da flotilha
de guerra, e a 10 de maio [1889], às 3:30 zarpamos, deixando para
tras a cidade de Manaus, como que reclinada sobre a margen do rio,
perdendo-se num longo trecho de graciosas casas escondidas entre o
verde das palmeiras e dos manguezais, entre os avanços de sua antiga
selva distante, lá no fundo seguindo as mil ondulações do terreno,
como que fugindo aos beijos de fogo de seu sol ardente.
(Stradelli, 1990, p. 230)
Depreende-se do texto
em questão detalhes de horário e data, ao mesmo tempo em que o autor não
persegue a objetividade de uma descrição. Note-se que o naturalista se
refere à cidade de Manaus a partir de uma perspectiva subjetiva.
Refere-se à cidade de Manaus usando de imagens metafóricas para dar
maior exatidão daquilo que pretende passar ao leitor.
Predomina no texto do
naturalista italiano o gênero textual narrativo, mesclado a grandes
descrições. Tal fato significa que o autor, muitas vezes, não está
preocupado com a objetidade total do que lhe parece, mesmo porque opina,
com frequência, a respeito do que vê e observa, como, por exemplo, no
seguinte trecho:
No dia onze às 6:43
recolocamo-nos a caminho, e à noite, estivemos em Tanapessassu, de
onde partimos novamente na manhã do dia 12 e chegamos à noite em
Airão. Airão está em festa, em honra – segundo me diz um dos
festeiros – ‘do glorioso santo Elias’. Ontem, ergueram o ‘mastro’ e
depois de amanhã será o banquete, com o que terminará a festa, e a
eleição do juiz, da juíza e dos mordomos para o ano que vem.Estas
festas são, para mim, uma das coisas mais características do país;
sobretudo no interior, onde a civilização ainda não tolheu seu
caráter semipagão, e onde as tradições indígenas despontam aqui e
ali a todo instante. Populações abandonadas quase absolutamente a
si mesmas, formadas pela fusão das raças indígenas, ninguém saberia
calcular por quanto tempo; no rebaixamento moral, em que se
encontram, seria de surpreender se fosse o contrário. (Stradelli,
1990, pp.231, 232)
No trecho
em questão há uma preocupação com datas e horários, o que ocorre em todo
texto do autor, assim como uma perspectiva própria a respeito dos
costumes e a moral, por exemplo.
Um ponto
importante a ser considerado é o de Stradelli haver escrito a primeira
parte de sua narração sem haver recorrido, sistematicamente, a
anotações, como sugere: “Hoje ainda admiro minha coragem, e tremo”. (Stradelli,
1990, p. 240). Tal afirmativa significa que a primeira parte do relato
foi escrita posteriormente aos acontecimentos. Nessa medida, nada
garante que os fatos em si foram narrados tal como ocorreram. O
afastamento temporal do que foi visto e vivido deturpa os fatos,
queira-se ou não. Toda retrospecção é feita a partir do momento
presente. Não há como recuperar os fatos sem o vivido após estes.
Como
afirma Saramago: “Fisicamente, habitamos um espaço, mas,
sentimentalmente, somos habitados por uma memória.” (Saramago, 2009,
p.18). Esta memória seria a de um tempo e de um espaço, entretanto,
habita-se uma memória à qual estamos presos, visto que se trata de uma
interioridade e a ela o homem está preso. Logo, não há como as
descrições não terem relações com o narrador a partir de suas próprias
memórias. E os fatos selecionados naturalmente possuem um significado
afetivo, subjetivo. De acordo com Paolo Rossi, a memória não possui um
elo somente com a o passado, mas, sobretudo, e de forma inelutável, com
a identidade, e, desta forma, com a persistência em relação ao futuro. (Paolo
Rossi, 2003, p. 27).
Um outro
trecho também sugere que a narração de Stradelli foi feita
posteriormente aos fatos:
De
volta a Manaus, pouco depois voltei; o Barboza, entrementes, foi
encarregado pelo governo de tentar fixar à terra e catequizar os
ririchaná. Pelo que, fui diversas vezes ao Jauapiri pedindo a todos,
medida, de resto necessária, desejando obter algum resultado sério.
Com o índio, toda precaução é pouco, e uma imprudência pode, num
instante, pôr a perder qualquer vantagem já obtida. Eis os fatos,
sobre os quais talvez me detive demasiado, mas espero obter a devida
vênia. (Stradelli, 1990, p. 242)
A partir
dessa afirmativa, Stradelli fixa seus registros na forma de um diário. O
estilo textual mescla muitos detalhes às datas. Tal fato sugere que a
narração foi baseada em anotações muitas vezes bastante precisas a
respeito dos fatos: “5 de junho – A boa e cordial acolhida recebida, fez
com que, ao invés de partir hoje, como já estabelecido, partamos
amanhã.” (Stradelli, 1990, p. 256)
Observa-se
pelos tempos verbais usados pelo naturalista que as anotações são feitas
a cada dia. Caso contrário, ele não anotaria que partiria somente no dia
seguinte. Afinal os registros diários poderiam ter sido apenas um
recurso inventado para dar maior veracidade à narrativa. Tudo indica que
o naturalista, realmente, usou do recurso de anotações diárias em muitos
momentos e não como um processo inventado. |
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3. Stradelli: as descrições mais
frequentes |
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Em suas
memórias, Stradelli estava mais preocupado em descrever o que via em
relação à paisagem, como no seguinte trecho:
As
cadeias da Parima e Paracaíma são invisíveis, e só do forte são
vistas eventualmente a N-NE os perfis azuis das Serras dos Tucanos e
do Quano Quano. O terreno do amplo vale é, segundo as observações de
Haag, formado de dois estratos de argila bem distintos, o primeiro,
ou inferior, de cor branca, muito ligeiramente amarelado, fino,
pegajoso ao tato (tauatinga e tauá), o segundo ou superior, mais
granuloso, avermelhado, contendo uma quantidade mais ou menos grande
de óxido de ferro, e misturado, sobretudo nos campos, de areias
dominam nas manifestações rochosas circunstantes, junto com pséfito
argiloso em que se encontram mica e fragmentos de xisto. (Stradelli,
1990, p. 262)
No
fragmento em referência, o naturalista italiano se detém nas descrições
da paisagem e do solo. Busca detalhar a composição material do que está
vendo, assim como os termos mais exatos, como, por exemplo: óxido de
ferro, estrato de argila e outros contidos no trecho em questão.
Muitas
vezes o autor se detém em descrições da flora, como no seguinte trecho:
A
Bertholetia eccelsa ou castanheira, diversas espécies de
euforbiaceae, a copaíba, o cumaru, a andiroba, nascem
espontaneamente sobre suas margens, [do vale] e a salsaparrilha
cresce abundante nas selvas das regiões elevadas, aos pés das
madeiras mais esplêndidas para construção e stipetteria, entre as
quais mencionarei apenas o procurado muirá pinima, vermelho com
manchas negras regulares, o muirá piranga, de um belo vermelho com
faixas negras oblongas, o muirá pixuna, negro como o ébano, o
pau-rosa, com o odor da rosa, o pausetim, o pau-rainha, para não
falar das numerosas espécies de itaúba, lauríneas, acapu, etc.
utilizadas nas construções das chatas e embarcações menores, que
servem para a navegação do rio. (Stradelli, 1990, p. 263)
Depreende-se do texto em questão o filtro do naturalista quando afirma
que “mencionarei apenas” aquilo que pretende, não mencionará tudo o que
vê, além do mais há o uso do etc, ou seja, há outras plantas não
mencionadas por ele. Registrou aquilo que julgou importante para o seu
olhar, para o seu filtro, a partir de uma perspectiva subjetiva. Tal
fato nos leva a afirmar que a verdade e a fiel observação dos fatos está
comprometida pelo naturalista. Sua descrição não possui uma preocupação
classificatória, entretanto seleciona textualmente aquilo que observa.
Enumera o que vê. |
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4. Bartolomeo Bossi |
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Bartolomeo Bossi nasceu
na Ligúria (Itália), em 1817, e morreu em Nizza no ano de 1890. Durante
a primeira parte de sua vida foi marinheiro no Uruguai.
Bossi possui uma
perspectiva de viagem em que especifica seus objetivos. De acordo com
suas memórias, numa viagem que fez a Mato Grosso (na época chamada de
província), ele declara:
Minhas inclinações
de viajar, desde os primeiros anos, devo a ter abraçado a carreira
de marinheiro; e cansado do mar, lancei-me aos bosques virgens,
buscando impressões novas que já não encontraba na imensidão dos
oceanos.O leitor não deve esperar de mim esse estilo elevado que fez
a fama de tantos viajantes, mas em seu lugar encontrará a verdade
desnuda, sem esses contos fantásticos que fazem duvidar de tudo, sem
essas histórias que tanto entretêm e enchem muitas páginas.Apenas
proponho-me descrever mina viagem, para o que possa ser útil;
referirei tudo o que tiver visto e observado, tal qual se
apresentaram os objetos perante meus olhos. Minhas observações, em
certos ramos, carecerão das abstrações da ciência, mas em troca, não
faltará exatidão. O sextante, de um lado, e a máquina fotográfica,
por outro, ajudar-me-ão a revelar ao mundo o que vi e observei no
espaço que percorri. (…) Este opúsculo, se algum mérito pode ter,
será a exatidão rigorosa de seus pormenores, sem preocupar-me com
encher os vazios literários que possam achar os que se dignem lê-lo.
(Bossi, 1990, pp. 311-312).
Bossi, como se
depreende do fragmento textual de suas memórias, afirma, com convicção,
que vai descrever tudo o que vê e observa, ou seja, o naturalista crê,
de fato, que poderá abarcar toda a verdade de maneira imparcial, visto,
inclusive, afirmar que descreve tal qual as coisas se lhe apresentam.
Não menciona que ele mesmo já seria um filtro. Reconhece que não possui
as abstrações da ciência, contudo, declara que haverá exatidão. Outro
argumento é crer que a fotografía seria uma garantia de que poderá
complementar suas descrições, sempre em busca do que ele julga ser exato
no que descreve.
Um outro ponto a se
destacar seria aquele em relação aos vazios literários, o que nos
autoriza a afirmar que para ele a literatura é vista como uma espécie de
linguagem ornamental. Inclusive, condena a fantasia.
Stradelli mantém a
escritura mais geral de suas memórias num estilo predominantemente
narrativo, com alguns espaços para descrição, como no seguinte
fragmento:
Acampamos às
margens do Nóbrega. Que espetáculo tão belo! Necessito deter-me um
momento, e se minhas propensões tivessem a faculdade descritiva com
que os poetas idealizam os encantos da natureza selvagem, os
leitores desta viagem achariam uma página de Ariosto, ou de Tasso,
uma imagen de florestas encantadas onde seres fantásticos e
semideusas fabulosas tecem suas intrigas e desencadeiam paixões.A
agua do Nóbrega é clara como o cristal mais puro; corre sobre um
leito de pedras silicosas de mil cores que se vêem através do
líquido transparente. Uma floresta imensa se ergue à sua margen. A
vegetação é ali gigantesca. As árvores se erguem a uma altura
prodigiosa e misturam-se com as elevadíssimas taquaras as verdes
palmeiras , que se entremisturam com um capricho verdadeiramente
artístico sobre um solo límpido e despojado, formando às vezes um
arremedo dos portais destruídos dos templos góticos;
arcos-de-triunfo como so que comemoram as glórias épicas, imensos
túneis, onde só se escuta a passagem dos ventos ou subterráneas
catacumbas de alguma abadia da Idade Média.(…) jardins de inverno
que a arte européia parece vir copiar aquí, onde os traçou a mão
sublime da Providência. (Bossi, 1990, pp. 339).
Como depreende-se do
texto de Bossi, há um verdadeiro encantamento do naturalista pelas
paisagens que narra e descreve. Diferentemente de sua proposta de
veracidade e exatidão, ele se encanta com as paisagens que vê ao longo
de sua expedição. Os elementos propriamente literários que ele diz não
possuir estão presentes não só no fragmento em questão, mas praticamente
em todas suas memórias.
A hipérbole, um dos
muitos recursos usados na literatura, ou seja, o exagero, está bastante
presente quando o naturalista comenta a respeito da vegetação
gigantesca, por exemlo, ou quando utiliza expressões como a altura
prodigiosa, pedra de mil cores e assim por diante.
Suas comparações, e não
poderia ser muito diferente, estão de acordo com seu universo europeu,
conforme declara literalmente no texto. |
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5. Algumas comparações entre as
memórias de Stradelli e Bartolomeo Bossi |
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Constata-se pelas memórias selecionadas
para esta análise de Stradelli e Bossi que o primeiro possui um estilo
em que busca mesclar o gênero narrativo com o descritivo. Tal escolha de
discurso permite afirmar que, em relação ao gênero de sua escritura, há
uma mescla de descrição, anotações diárias e narração. Logo, não há uma
unidade textual. Constata-se um relato que resulta num gênero
propriamente híbrido. Seus relatos são fragmentados. Ora há a presença
de elementos narrativos, ora descritivos e, muitas vezes, o naturalista
recorre às anotações diárias.
Além do mais, como mostram alguns
trechos de seus diários, Stradelli se mostra mais isento se comparado a
Bossi. Sua linguagem é mais seca, despojada de pretensões literárias.
Bossi possui anotações que, em relação
ao gênero, possuem uma unidade textual. Embora negue que possua
atributos literários, não economiza hipérboles e comparações metafóricas
ao longo de suas memórias. Além do mais, um outro ponto a ser destacado
é o da preocupação para com a verdade.
Textualmente Stradelli não denuncia sua
preocupação com a objetividade, ou seja, tal como as coisas se mostram,
já Bossi reclama dessa necessidade, como mencionado em suas memórias.
Bossi também não possui um estilo em que busca mesclar os gêneros
narrativo e descritivo. Em seu estilo de escrever predomina o narrativo
com algumas descrições. Suas narrações são literalmente cheias de juízos
de valor baseados em sua vivência europeia.
Stradelli está tão preocupado com a
exatidão à qual se compromete textualmente que, em diversos momentos de
suas memórias, insere fotos que foi tirando ao longo de sua expedição.
Em nenhum momento menciona, por exemplo, que a fotografía também é uma
linguagem e que, como tal, não revela a verdade e a exatidão do que se
vê. Sabe-se que a fotografía é uma linguagem e que, no caso, foi o
naturalista quem escolheu o ângulo e outros elementos de subjetividade
que tão bem caracterizam a linguagem fotográfica. |
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Considerações finais |
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Na área propriamente literária, durante o século XIX, a concepção
predominante era de que seria possível, por intermédio dos recursos
apregoados pelos movimentos Naturalista e Realista, ficar-se próximo aos
fatos, mesmo na ficção, como, sabidamente, exemplificam romances
brasileiros como O Mulato e O Cortiço, de Aluísio de
Azevedo, uma das principais expressões da literatura Naturalista
brasileira.
Todavia, essa pretensão ao registro da verdade se mostra igualmente
frágil e questionável no meio literário. Justamente ao se pretenderem
isentos de subjetividade é que autores realistas-naturalistas se
mostraram mais tendenciosos em suas descrições do “real”, evidentemente
conduzidos por um contexto muito mais complexo do que suas pretensões e
que ia além de suas opções estilísticas e literárias.
Como consequência do contexto realista-naturalista, o homem é retratado
na literatura como um ser animalizado, subjugado ao instinto, por ser
essa sua condição “natural”, e também ao meio e ao contexto histórico e
social, sem alternativa de superação dessa condição, dado o determinismo
próprio dessa abordagem. Portanto, esse é o filtro através do qual os
autores desse movimento constroem as personagens e os contextos de suas
obras. Percebemos assim, também na literatura, um evidente prejuízo em
relação ao comprometimento com a verdade na descrição do real.
Tem-se um exemplo de destaque na
obra O Mulato, de Aluísio Azevedo, inauguradora do
Realismo-Naturalismo na literatura brasileira. Ainda que se trate de uma
obra de crítica anticlerical e antirracista, percebemos, logo em suas
páginas iniciais, marcas evidentes do tendencialismo com que o real é
retratado:
A Praça da
Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e
janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz
tísica e aflautada de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era
bela”, doutro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso
tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma
nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico:
“Fígado, rins e coração!'' Era uma vendedeira de fatos de boi. As
crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as
ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os
ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando
papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair,
atravessava a rua, suado vermelho afogueado, à sombra de um enorme
chapéu-de-sol. Os cães, estendidos pelas calcadas, tinham uivos que
pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo
morder os mosquitos. Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se
apregoar: “Arroz de Veneza! Mangas! Macajubas!”. Às esquinas, nas
quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e
aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua
preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço.
Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e
monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar;
para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras,
quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os
grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas. (Azevedo, 1998, pp. 2-3).
O ambiente é marcado
por condições ignóbeis de sobrevivência, descritas por expressões como
“fúnebre; miserável; seboso; cheio de sangue; coberto por uma nuvem de
moscas”. Os seres humanos são degradados, comparados a animais, em sua
condição deterministicamente natural: “voz aflautada e tísica de mulher;
preta velha, vergada; crianças nuas, com perninhas tortas; cabeças
avermelhadas pelo sol, pele crestada, ventrezinhos amarelentos e
crescidos; peixeiras, quase todas negras, muito gordas, rebolando os
grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas”. As ações humanas são
letárgicas, animalizadas, e as ações dos animais humanizadas: crianças
“corriam e guinchavam”; “os cães, estendidos pelas calçadas, tinham
uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis”; “o
quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça
morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço”.
As literaturas Realista e Naturalista buscavam menos ornamentação
literária e mais objetividade. Entretanto, como é possível notar, também
elas foram francamente contaminadas pelos preceitos e ideais
científicos, muitas vezes extremamente tendenciosos, do século XIX.
Evidentemente que tal postura ia contra os verdadeiros valores da
literatura. A literatura, conforme é sabido, depende de uma perspectiva
subjetiva e, como tal, não pode render-se a conceitos aparentemente de
objetividade e exatidão, até porque tais conceitos não garantem tal
pretensão, conforme foi analisado nas memórias dos naturalistas
italianos e no fragmento literário em referência.
Diferentemente do que se possa pensar, a rigor, a literatura ao se
distanciar dos fatos tais como eles ocorreram, pode sim, por intermédio
de uma perspectiva singular e particular ficar muito mais próxima da
verdade e da realidade do que se imagina, como também exemplificam
Deleuze e Foucault.
De acordo com Foucault (1990, pp. 51-52), a linguagem no século XVI, por
exemplo, é um processo misterioso, fechada em si mesma, cheia de
elementos enigmáticos que na verdade se misturam às figuras do mundo. Há
uma relação de mistério, de segredo. O que a linguagem diz oculta, via
de regra, algo mais. Há segredos a serem desvelados que a linguagem não
diz de forma clara. Nessa perspectiva, a linguagem não é um sistema
arbitrário, faz parte do mundo. Integra-se ao universo. Há uma
convergência.
Nas palavras do pensador francês:
A grande
metáfora do livro que se abre, que se soletra e que se lê para
conhecer a natureza não é mais que o reverso visível de uma outra
transferência, muito mais profunda, que constrange a linguagem a
residir do lado do mundo, em meio às plantas, às ervas, às pedras e
aos animais. (Foucault, 1990, p. 51).
Nessa medida, a linguagem por si é estudada enquanto um processo da
natureza, assim como os animais, as plantas e as estrelas possuem
analogias e suas leis obrigatórias. Nessa perspectiva, a mesma
disposição epistemológica que repousa na ciência da natureza está para o
estudo da gramática.
Contudo, desde o século XVII a linguagem se desliga das coisas. A
linguagem permanece de um lado e as coisas de outro. Há uma ruptura. A
partir desse processo, inicia-se uma representação. As palavras
representam as coisas, as ideias, os conceitos. E desta maneira uma das
grandes questões epistemológicas que vão surgir: até que ponto as
palavras significam a verdade?
De acordo com o pensador francês, nessa medida, quanto maior o ideal de
uma perspectiva predominantemente objetiva de linguagem, maior seria o
distanciamento entre as palavras e as coisas. E, segundo ele, a
literatura poderia atenuar tal distanciamento entre as palavras e as
coisas, entre aquilo que se vê e aquilo que se escreve, que se registra.
Desta forma, conclui-se, pelo exposto das análises das memórias
selecionadas que, embora Stradelli use diversos recursos de registro,
como anotações diárias, descrições e narrações, está, em parte, distante
do que viu e do que, realmente, registrou.
Bossi declara textualmente que vai colocar no papel aquilo que vê,
entretanto, perseguindo uma perspectiva objetiva de linguagem. Contudo,
ao se valer de recursos propriamente literários como comparações
metafóricas, distanciando-se de sua proposta de objetividade e numa
visão mais subjetiva, realmente cumpre sua meta e registra com mais
proximidade aquilo que testemunha, se comparado a Stradelli.
De acordo com
Deleuze (1998, p. 51), os signos da arte são superiores aos outros
porque buscam, essencialmente, as qualidades sensíveis do objeto.
Somente os signos artísticos podem, em princípio, carregar o aspecto
qualitativo de uma sensação. Diferentemente dos signos materiais, ou
seja, aqueles mais objetivos, convencionais, inteligíveis. Os signos
artísticos são imateriais, o que justifica que a linguagem literária
possibilite a apreensão do objeto de uma forma mais abrangente, mais
próxima do real, diluindo, nessa perspectiva, o possível débito da
representação entre as palavras e as coisas, como também exemplifica
Foucault. Não faltaram, conforme é sabido, (ver Bachelard, por exemplo),
pensadores de diversas áreas que fizeram uso de recursos da linguagem
literária como um mecanismo de aproximação entre objeto e representação.
Diante do exposto, os
movimentos Naturalista e Realista, que predominaram durante o século XIX,
estiveram distantes das intenções mais profundas da literatura, sob a
ótica de Deleuze e Foucault, visto que, como já foi colocado
anteriormente, buscaram uma objetividade, em termos de linguagem, assim
como em termos de perspectiva, que, na verdade, distanciam a possível
apreensão do objeto a que se destina a literatura. |
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Referências bibliográficas |
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Gilles. Proust et les
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El pasado, la memoria, el olvido.
Tradução de Guillermo Piro.
Buenos Aires: Nueva Vision, 2003. |
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Márcia do Carmo
Felismino Fusaro (Brasil).
Mestre em História da Ciência; Especialista em Língua, Literatura e
Semiótica; pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho –
UNINOVE. |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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