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Estou certa que o monte onde habitou, com as suas
várias unidades funcionais, as largas paredes de taipa, os grossos
contrafortes e as grandes chaminés; bem como a sua primeira visita ao
Telheiro da Encosta do Castelo, onde viu o mestre e os seus “aprendizes”
em formação, pisando o barro no barreiro, enformando tijoleiras e tijolo
burro, alimentando os fornos horas a fio, terão sido pontos de partida
para as muitas questões que orientaram os projectos que, desde então,
desenvolveu com MARCA-ADL.
Era a MARCA, na altura, uma associação que procurava
caminhos alternativos para o
desenvolvimento local. A partir de alguns dos valores culturais e
ambientais do território, ainda identificado com práticas e valores do
mundo rural, buscava criar novas dinâmicas, reflectindo sobre a possível
revitalização social e económica de actividades tradicionais e produtos
locais, conferindo-lhes novas valências. Um telheiro - unidade
tradicional de produção de materiais cerâmicos para a construção, na
génese da constituição da associação; os brinquedos populares que haviam
marcado a infância das gerações mais velhas e em torno dos quais se
constituíram colecções, desenvolveram estudos e dinâmicas pedagógicas;
os usos antigos das plantas na medicina popular e alimentação, a partir
da figura de um mestre detentor ainda de valiosos saberes; e a
riquíssima paisagem rural, cuja interpretação se oferecia como um
desafio constante para a sua identificação e descodificação, começaram
por ser as matérias-primas a partir das quais, ao longo dos anos que se
seguiram, a MARCA construiu o seu percurso. A sua intervenção ía
procurando um diálogo permanente, de valores e sistemas identitários,
entre a tradição e a modernidade, na definição de um modelo de
desenvolvimento local qualificado e inovador.
Os saberes e técnicas ligados à construção
tradicional e as formas de habitar o território, pelas inúmeras
questões associadas, foram certamente uma das áreas mais marcantes da
reflexão e intervenção da Ana Luísa na MARCA. Questões mais
abrangentes, de filósofa habituada a questionar o mundo distante e a
realidade próxima: Como se habita um espaço, como se cria um lugar,
como nos ligamos ao território, às matérias disponíveis e ao ciclo
natural das estações? Porquê o apelo ao local, aos saberes, às raízes,
num mundo global dominado pelo conhecimento científico e tecnológico?
Como se caracteriza a transmissão de saberes-fazeres numa relação social
mestre-aprendiz – articulando saber acumulado, observação, experiência –
e qual o seu valor no contexto das novas formas de aprendizagem e
transmissão de conhecimentos nas nossas escolas e universidades?
Mas também questões concretas, que decorreram da
observação de um projecto: a reactivação da produção num telheiro
abandonado. Reactivado a partir de 1995, o telheiro, situado na Encosta
do Castelo de Montemor-o-Novo, é uma unidade de produção de materiais
cerâmicos para construção (tijolo burro e tijoleira), actividade que se
encontrava já extinta no concelho, onde se preservam as técnicas
artesanais e se utilizam as terras argilosas da região. Gerido pela
MARCA desde 1997, funciona na área da produção de materiais de
construção tradicionais que podem ser utilizados na recuperação de
edifícios antigos e em novas propostas na arquitectura contemporânea.
Vertente entretanto enriquecida com a produção de materiais cerâmicos
decorativos com vidrados e engobes para pavimentação e revestimento,
inspirados em padrões e motivos do património artístico da região. No
sentido de assegurar a continuidade da actividade, organizaram-se cursos
de formação profissional para jovens, procurando contribuir assim também
para a integração social e promoção de emprego. O projecto associa ainda
uma terceira vertente na área das artes plásticas ligando as técnicas e
materiais tradicionais à produção artística contemporânea. Projecto em
construção carregado de sonhos e vontades – ligados à valorização dos
saberes-fazeres tradicionais, à sua adequação às necessidades actuais, à
preservação das paisagens rurais e urbanas –, mas não isento de
dificuldades e contradições: motivar os mais jovens para uma actividade
socialmente desvalorizada e associada a contextos de pobreza e trabalho
duro; tornar uma actividade sazonal viável ao longo de todo o ano;
preservar os modos de fazer tradicionais recorrendo a alguma tecnologia
mais actual que garanta sustentabilidade económica da actividade e o
alívio da carga para os trabalhadores; conciliar a dimensão da produção
tradicional com a inovação, a criação artística e a desejável dimensão
pedagógica e museológica.
Levantadas as questões,
muitas já nas cabeças dos que quotidianamente intervinham na MARCA,
começaram a constituir-se projectos, ligados entre si, que procuravam
pensar sobre muitas destas questões. Inconformada com um ensino
desligado do real, da sociedade, Ana Luísa apressou-se a envolver os
seus alunos da disciplina de Sociologia das Ciências da Licenciatura de
Ensino/Química e Bioquímica que ministrava da Universidade de Ciências
da Universidade de Lisboa, neste questionar da realidade. O
projecto “Formas de Viver - Formas de Pensar - Formas de Habitar.
Ciências técnicas e saberes” iniciado em 2000 trouxe assim a
Montemor-o-Novo mais de uma dezena alunos, que no contacto directo com
mestres na área do tijolo, da cal, da pedra, do ferro e o azulejo,
procuraram compreender antigas formas de transmissão saberes-fazeres.
Com o projecto “Formas de Viver – Formas de Fazer
– Formas de Saber. Fazeres com Saberes”, estudante e professores
portugueses e brasileiros, de diferentes graus de ensino (básico, médio
e superior), bem como docentes e consultores de diferentes áreas
disciplinares, procuraram compreender, através de actividades de
ensino-investigação marcadamente interdisciplinares, como saberes e
ciências se foram articulando com as vivências existenciais e
matérias-primas associadas à terra, olaria e respectivas técnicas
construtivas, desde os romanos até nós. Na universidade, no âmbito do
sub-projecto “Saberes tradicionais e conhecimentos científicos
modernos”, Ana Luísa orientou os seus alunos da disciplina de
Ciências e Saberes, convidando-os a fazer uma análise reflexiva e
crítica a partir de uma entrevista a um mestre do saber tradicional e de
registos científicos sobre o tema.
Todos estes trabalhos de
alunos, docentes, investigadores, entretanto disponibilizados nos sites
www.saberes.no.sapo.pt e
www.fazeres.no.sapo.pt, resultaram num kit pedagógico que
serviu de suporte à dinamização da acção educativa dirigida ao 1º ciclo
“Como eram feitas as casas dos nossos avós?”. Professora
universitária, habituada à relação académica com alunos do ensino
superior, Ana Luísa entrou nas salas cheias de crianças de algumas das
escolas do primeiro ciclo, motivou-as, levantando questões ligada às
formas de habitar e construir no tempo dos nossos avós; calcorreou com
elas antigos caminhos de terra em busca de antigos montes. Entraram
pelas casas a dentro, desenharam, fotografaram, falaram com os seus
habitantes; no telheiro meteram todos as mãos na massa e aprenderam com
o mestre as antigas técnicas de produção de tijolos e tijoleiras; e
finalmente no pátio da escola, ergueram todos uma casa de tijolo-burro
como no tempo dos avós. (ver resultados a partir de
http://saberfazer.no.sapo.pt/). No outro lado do Atlântico, no
Brasil, outras tantas crianças numa escola em Vassouras, acompanhavam os
nossos trabalhos e envolviam-se em actividades norteadas pelas mesmas
questões.
Em 2007, o Encontro/Laboratório Habitar
Sustentado/Sustentável - Tradição e Inovação na Arquitectura e
Construção, organizado pela MARCA-ADL, em Montemor-o-Novo,
representou o culminar do envolvimento da Ana Luísa, peça fundamental na
sua organização. Com uma vertente marcadamente teórica e prática,
pretendeu-se, em torno do telheiro da Encosta do Castelo, reunir
especialistas (arquitectos, engenheiros, historiadores, filósofos) num
espaço de aprendizagem, reflexão e sensibilização para as questões da
arquitectura sustentada/sustentável. A reflexão em torno dos conceitos
de sustentado e sustentável, de paisagem cultural e sua valorização, da
noção de monumento à de património cultural, e a apresentação de
experiências no Alentejo, no Algarve, em Moçambique e no Brasil, foram
ponto de partida para um workshop participado onde se discutiram muitas
das questões que vinham sendo levantadas há vários anos: Como adequar a
reactivação da produção de materiais de construção tradicionais às novas
lógicas de mercado, à nova legislação e à falta de mão-de-obra
especializada ligada à desvalorização da actividade; ou que utilizações
para estes materiais e técnicas, na reabilitação do património em zonas
históricas, em novas propostas de arquitectura sustentável e na criação
de novos materiais para aplicações decorativas? Questões que se levantam
a partir deste lugar e deste projecto, mas que não deixam de ser comuns
a muitas das experiências de desenlvolvimento local.
Marcas da Ana Luísa
na MARCA: diversos textos de reflexão entretanto publicados; sites
na internet com divulgação das produções associadas aos projectos; KIT
pedagógico: De que Era Feita a Casa dos Nossos Avós (com textos
produzidos por alunos de História, Filosofia e Sociologia das Ciências
da FCUL), constituindo-se no seu todo como uma reserva de conhecimento
para futuras aproximações e reflexões aqui e em qualquer lugar. Porque
em comum, têm o permanente questionar das realidades a partir de
conceitos e de ideias, que a todos, hoje, inquietam: tradição e
inovação; memória versus mudança; sustentado versus sustentável;
global-local; mestre-aprendiz / professor-aluno,…
Interrogar a
realidade, as práticas, reflectir sobre o que a rodeia e a
partir daí intervir pensando e pensar agindo. Criar e envolver.
Criar projectos, processos de aprendizagem, de reflexão. E envolver,
cruzar disciplinas, pessoas, gerações, geografias. Talvez duas das mais
relevantes marcas que identificam a Ana Luísa Janeira e que deveriam
marcar qualquer processo de desenvolvimento.
Catarina
Oliveira
Presidente da Direcção da MARCA-ADL entre 2002 e 2005 |