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Fruto de
uma encomenda feita pelo Teatro Nacional D. Maria II, por iniciativa do
seu director de então, Lima de Freitas, destinada às comemorações do 4º
centenário da morte de Camões, a peça ver-se-á impedida de subir à cena,
pelo facto do secretário de Estado da Cultura à data (Vasco Pulido
Valente) recusar o financiamento da produção. Vítima que fora da censura
ditatorial, Natália somará também na sua carreira uma outra espécie de
censura em tempo democrático; aquela que é exercida sob a forma de
boicote económico. A peça será publicada em livro no ano seguinte, em
1981, num volume-monumento em que o editor Fernando Ribeiro de Mello
(solidário com a escritora em causas públicas, nomeadamente quando em
1966 ambos respondem em tribunal por acusação de atentado à moral, após
a edição da Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica)
parece querer desforrar a autora face ao silenciamento cénico da obra, e
onde se reunem reproduções de pinturas de diversos artistas plásticos,
realizadas a propósito para dialogarem visualmente com vários momentos
da acção que o texto apresenta (Ângelo de Sousa, Carlos Calvet, Cruzeiro
Seixas, Francisco Relógio, Júlio Resende, e Lima de Freitas).
A peça
camoniana de Natália, na sua já previsível divisão em três actos, com um
total de dezoito quadros, é acima de tudo uma luxuriante celebração da
língua, pela recriação/reinvenção de um português falado por Camões e
seus contemporâneos, que fosse digna de dar voz ao vate e receber
intertextualidades de poemas e dramaturgia de Camões ele mesmo (o caso
da representação de passagens do Auto de El-Rei Seleuco, por
personagens/actores da própria peça, com intencionalidade teatral
específica dentro da trama nuclear da peça, contendo ecos de sentido
face àquilo que sucede na cena modelar dos actores em Hamlet),
como profusamente acontece ao longo da acção.
O ascendente
literário comparativo para o deflagrar da peça está, no dizer da autora,
no confronto com o paradigma romântico inaugural da literatura
portuguesa. Através do tempo histórico-estético recriado, Natália faz
dialogar a sua visão romântica com a de Garrett. «Bem mais do que o
Camões que eu procurei, o Camões desta minha peça é o Camões que me
procurou. Com ele, introduziu Garrett, no poema narrativo homónimo, o
Romantismo em Portugal. E, assim, fez a mais lúcida exegese do
saudosismo camoniano que, a par da natureza apaixonada e do instinto de
liberdade do poeta, nos fazem ouvir o pulsar de uma alma romântica na
fábrica do classicismo quinhentista.» (Correia, 1981, p.8). Tendo a
ambição cénica de uma ópera (como o reconhece o actor Jacinto Ramos, em
extratexto de apêndice à primeira edição da peça), trata-se sem dúvida
de uma ópera do verbo, onde etapas da incerta biografia do poeta são
recontadas na cena através das lendas em torno das muitas mulheres que
amou, e das quais a sua lírica deu literário testemunho. Um Camões vital
de coração vibrante e bravura genuína, cujo donjuanismo é tentativa de
esconjurar o amor frustrado por uma intangível infanta D. Maria (fábula
amorosa infundada a cuja aura occitânica a dramaturga não resiste)
condenada ao celibato por razões económicas de Estado, serve de espelho
subjectivo e personificação existencial de um Portugal que conhece o
declínio abrupto no momento mesmo em que experiencia o fugaz triunfo do
expansionismo marítimo. Muito por culpa, segundo a autora o faz dizer no
verbo do protagonista (em diálogo com Francisca de Aragão, dama da
corte, que será, por seu turno, na peça camoniana de Saramago, a
principal contracena feminina passional de Camões), da xenofobia
anti-semita que persegue aqueles que tanta importância tiveram para a
amplitude do universalismo quinhentista português, imediatamente
truncado, numa sociedade em que a cobiça perdulária ostenta o disfarce
de purga étnico-religiosa.
«D. FRANCISCA DE
ARAGÃO: O nosso Império é imenso. Não se pode agarrar a imensidão.
LUÍS DE CAMÕES:
Decepamos as mãos que podiam segurar-lhe as riquezas. Queima-se o judeu.
E a sua fazenda que passa para o fisco real também logo se queima.
Porque um leva mil cruzados, outro as casas, outro as hortas. De modo
que dá o fogo na fazenda como no dono e nem o cruzado se acha. Privando
o reino dessa gente hábil nos negócios, ficaram eles entregues a estes
nossos portugueses, tão afanosos em achar novos mundos quão gozadores
são em dissipá-los. E enquanto a gente hebreia que barbaramente
escorraçamos, vai enriquecer a Inglaterra, a França e a Itália. Somem-se
aqui os bens do Império na voragem do luxo. Não tardará muito que
apodreçam as fronteiras que os navegadores alargaram. E, recuando à
pequenez do reino antigo, ficaremos no lugar indefeso onde Castela nos
quer ver.» (Correia, 1981, p. 168)
O trauma histórico
que faz da epopeia camoniana um mítico testamento colectivo, de conteúdo
póstumo logo após tornar-se público, é também a afirmação da
superioridade gnoseológica da obra poética em face da contingência
histórica, por mais hostil que esta seja para com os criadores que
involuntariamente a imortalizam, no que esta tem de melhor e de pior; e
os bloqueios na recepção externa imediata desta peça são novos exemplos
disso mesmo.
Se a grande arte
sobrevive à época que a vê gerar, porque nos interpela com uma linguagem
arquetípica que desafia o tempo, já para Natália nenhuma figura como
Camões representará essa dimensão solar de resistência e afirmação
culturais na tradição portuguesa; como bem o atesta o título de uma das
suas palestras, inéditas, proferidas para audiência estudantil: «Camões
é a perene juventude da Cultura Portuguesa». Mas se de entre as duas
figuras tutelares da cultura literária portuguesa (Camões e Pessoa), a
solaridade é pertença de Camões, já a dimensão lunar é representada pela
dissimulação mimética do Pessoa autoral e biográfico. Se Camões é a
hipérbole subjectiva, renascentista, da vida aventurosa, erótica,
errante e profundamente incarnada, Pessoa é o emblema modernista do eu
estranhado e lacunar, no qual a obra vampirizou literalmente a vida
objectiva. Natália incorpora nesta peça o medusante olhar de Pessoa, ao
incluir na acção um excerto da Mensagem (por via do episódio do
Mostrengo), essa resposta pessoanamente possível, lapidar no sentido de
epitáfio mítico, a Os Lusíadas de Camões.
Conforme o analisou
David Mourão-Ferreira, em texto de apresentação crítica da peça, o
desafio ciclópico a que Natália se dispôs em Erros meus, má fortuna,
amor ardente, contém duplamente uma confirmação e uma surpresa:
«confirmação (...) da sua empolgante força de criadora dramatúrgica e do
seu incomparável dom para conferir, em termos de teatro, a dimensão do
mito aos temas em que toca, aos assuntos que assume, às figuras em que
desdobradamente encarna a sua própria natureza dilemática.» (in Correia,
1981, badana 1). Falar de Camões e do seu tempo significa também para
ela falar, simbolicamente, do papel e do perfil humano do poeta na
sociedade de hoje; isto é, falar de si mesma enquanto artista e cidadã
interventiva. E na expressão eponímica de «bardo das vielas», com que o
boémio e sedutor Camões é brindado na peça, é impossível não divisar uma
refracção de Natália ela mesma, figura icónica e (des)temida de
confrontos e paixões, cultivadora de tertúlias, primeiro no reduto
privado da sua casa e depois, a partir de 1971, antes ainda do advento
da democracia, no bar Botequim, por ela tornado então famoso nos
roteiros da noite lisboeta. Os «erros» da decisão subjectiva, a «má
fortuna» da história individual e colectiva, e a utopia flamejante de
eros que é catarse transformativa (o alquímico «amor ardente»);
nesta tríade do verso camoniano escolhido para título, pode Natália
projectar algo do seu trajecto como personalidade intempestiva e
hiper-carismática, venerada ou odiada, mas jamais alvo de indiferença,
visto a sua postura rejeitar, com veemência, a neutralidade abstracta de
um retrato autoral para consumo inócuo.
Quanto à
«surpresa», a que o olhar hermenêutico de Mourão-Ferreira se refere, é
porque se «verifica, nesta peça, um significativo alargamento do seu
habitual pendor de expressão barroca até àqueles extremos confins em que
o neoclássico e o romântico, por mais opostos ou distantes que sejam,
acabam por conviver numa inesperada fronteira. E isto mesmo representa
um profundo entendimento, não só da obra e da personalidade de Camões,
mas também do fecundo sincretismo da sua mesma fortuna póstuma» (in
Correia, 1981, badanas 1e 2). Esta singular simbiose estética e
estilística, que aponta simultaneamente para horizontes operáticos de
sensibilidade romântica e para proporções formais de contenção que bebem
em fonte classicista é, sem dúvida, um dos motivos de encanto sirénico
que a peça produz logo à leitura, devolvendo-nos num sabor arcaizante
uma cénica paixão de dizer; nas roupagens verbais dessa «clara língua
majestosa», como Fernando Pessoa chamou ao idioma que adoptou como
pátria na sua persona de Bernardo Soares.
Mas se a história da
recepção teatral começa por conhecer a má fortuna «que em vida perseguiu
o poeta» (Correia, 1981, p. 9), esta viria a ser contraditada pelo
encenador Carlos Avilez, amigo e admirador de sempre da autora, que
levará a peça aos palcos sete anos após a sua publicação, em 1988, na
Sala do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em
Lisboa (com cenografia de mimese quinhentista, da pintora Emília Nadal,
e música de Carlos Zíngaro); graças à vontade decisória de Madalena
Perdigão, que tornou possível uma superprodução teatral (com Rogério
Samora em Camões, Alexandra Lencastre em Catarina de Ataíde, Lia Gama em
Infanta D. Maria, e Filipe Crawford em D. Sebastião, de entre um extenso
elenco de trinta actores) concordante com a ambição, estampada no texto,
em retratar, pelo percurso e temperamento do autor d’Os Lusíadas,
o Portugal da aventura marítima no seu apogeu histórico, logo seguido
pela derrocada nacional que coincide com a morte do poeta. Um momento
axial em que a biografia do poeta se faz intérprete de um destino
histórico colectivo; numa osmose disfórica que levou a sageza de Harold
Bloom (em palestra por este proferida na Faculdade de Letras de Lisboa,
em Maio de 2001) a atribuir à história lusa, de que Camões é bardo, os
dois rostos míticos e antagónicos de Prometeu e de Ícaro, numa sequência
dialéctica.
E curioso é
verificar que, conquanto seja a visão matrista mais iminentemente
reportada à obra de Natália, o certo é que neste caso a mãe do poeta é
figura inteiramente ausente do mitodrama camoniano da autora (se bem que
a atracção dramatizada de Camões, por uma infanta D. Maria
consideravelmente mais velha do que ele, integre de modo visível o
complexo maternal que subjaz ao comportamento donjuanesco). É importante
sublinhar que essa interacção psicobiográfica, entre o poeta e a sua
mãe, aparece teatralizada numa outra peça contemporânea da de Natália,
que elegeu também Camões como personagem a recriar em ficção
histórico-cénica, embora eivada de intentos celebratórios mais
discretos: Que Farei Com Este Livro? (1980), de José Saramago.
Trata-se de uma obra que, apesar da distância formal face à hybris
exuberante da linguagem nataliana, mercê de um prosaísmo irónico bem
característico de Saramago, encontra ainda assim uma clara convergência
com o Camões de Natália, na tónica que ambos os textos conferem à
censura inquisitorial sobre a impressão em livro da obra magna do poeta.
Ocasião esta para que na peça de Natália a autora releve a importância
psicomítica da visão politeísta sustentada pelo renascentismo de Camões,
alvo da repressão eclesial; patente no 13º quadro do acto III, cena em
que Camões se confronta com os frades inquisidores, que tentam impedir a
publicação d' Os Lusíadas, na sua versão original.
«1º FRADE: Não foi por obra das artes maléficas de Vénus que os nossos
navegadores propagaram a lei de Cristo.
LUÍS DE CAMÕES: (que
se voltou a essas palavras) Não há perigo de fé em representar
maravilhas à maneira de Homero e de Vergílio.
1º FRADE: Tinhas a
Puríssima Virgem Maria para proteger os portugueses, em vez dessa deusa
impúdica. (Durante este diálogo, foi surgindo da escuridão, no lado
oposto àquele em que o 1º Frade interpela Camões, uma mesa de estrutura
semelhante à da primeira, no alto da qual se encarrapita um segundo
frade dominicano.)
2º FRADE: Baco! A
que vem Baco quando a Santa Teologia tem execração própria por Satanás?
1º FRADE: Júpiter!
Como ousas sentar esse deus indecente e frascário no trono da
Omnipotência?
LUÍS DE CAMÕES (que
movimentou a cabeça ao ritmo deste pingue-pongue de acusações) Todos
os deuses estão vivos na memória do mundo.
2º FRADE: Vivos?! É
uma blasfémia.
LUÍS DE CAMÕES:
Vivos, como figuras poéticas da enorme variedade em que a natureza
manifesta o seu poder.
1º FRADE: A
natureza! A natureza! A Igreja tapou-lhes as partes vergonhosas.
LUÍS DE CAMÕES:
Destaparam-nas os portugueses que em suas navegações descobriram lugares
recônditos da terra. Neles achámos raças que não cobrem as suas
vergonhas. E nisso estão tão inocentes como em mostrar o rosto. Com
essas descobertas demos a conhecer ao mundo coisas da natureza que,
sendo obra de Deus, é boa. (No decurso desta fala de Camões, vai
saindo da sombra, ao centro, uma mesa do estido das outras, mas mais
alta. Sentado no cocoruto, o dominicano Frei Bartolomeu Ferreira,
Qualificador do Santo Ofício. A cena está agora totalmente iluminada.)
FREI BARTOLOMEU
FERREIRA: Boa... mas fraca, como a mulher. E quando o pecado a afasta da
fonte divina, só a Graça a pode redimir.
LUÍS DE CAMÕES: Não
a elimina, Reverendo.
FREI BARTOLOMEU
FERREIRA: Mas aperfeiçoa-a. A Santa Inquisição não pode mais do que
isso. Uma ou outra emenda e fecharemos os olhos às frescuras pagãs do
teu canto IX. (...)
LUÍS DE CAMÕES: Nem
à própria teologia consinto que me pegue na mão para me ensinar a fazer
versos.» (Correia, 1981, pp. 173-177)
No entanto,
o Camões nataliano aceitará ceder (seguindo aqui a lição histórica,
também glosada na peça de Saramago), manifestando analogias com o
Galileu Galilei retratado na peça de Brecht, na medida em que sacrifica
o poema ao jogo da censura em lugares pontuais do texto, para deste modo
o poder tornar património colectivo. E assim como Galileu nega em
tribunal a veracidade da tese heliocêntrica, porque isso em nada
alterará a evidência do saber científico que ela contém, também o Camões
de Natália acabará por declarar aos espectadores, no fim deste quadro:
«Cortes...
emendas... acrescentos... Não será por apagarem algumas estrelas nos
meus Cantos que eles deixarão de brilhar. (...) Venha a comédia da Fé
que, usurpando as verdades de Deus, as desfigura em beleguins das almas
que Ele inspira! (...) Os estragos da vossa intolerância não impedirão
que Os Lusíadas sejam o farol de soldados e poetas.» (Correia,
1981, p. 178)
A energia
sociocrítica que Natália incute no texto faz intuir uma outra síntese
paradoxal, especificamente teatrológica, que a autora experimentou nesta
sua peça, para além da aliança estético-literária, atrás citada, que
Mourão-Ferreira identificou. De facto, Erros meus, má fortuna, amor
ardente, no seu romântico recorte, parece partir de uma concepção de
apoteose operática, que remete o espectador/leitor para um legado
wagneriano, no qual o poeta é leitmotiv mitocêntrico; porém, numa
tensão dialéctica constante na estrutura da obra, a dimensão aguda de
criticismo histórico, que pretende captar na cena as insuficiências
deceptivas de um Portugal contemporâneo, através do diagnóstico de males
pretéritos nunca inteiramente sanados, aponta para uma epicidade
brechtiana (presente inclusive, em termos formais, na apropriação
dramatúrgica de textos camonianos e do citado excerto pessoano), que se
acentua na consciência hiper-teatral que Natália cultiva, própria de uma
cosmovisão barroca. Dada a sua intenção alegorizante, o
teatro-dentro-do-teatro, consciente de si mesmo no traçar de um fresco
histórico, impõe aquilo que é possível designar por catarse cognitiva:
isto é, o distanciamento emocional do espectador no mesmo momento em que
este experimenta a entusiasta empatia para com o trajecto vivencial e
mitopoético do protagonista – sintoma que já Walter Benjamin
descortinara no trauerspiel do período barroco, antes mesmo deste
pensador se haver confrontado com as propostas teatrais de Brecht.
Elementos teatrológicos que esta peça partilha em simultâneo com os
aparentemente inconciliáveis Wagner e Brecht parecem conviver em
conflitualidade dialéctica, num drama cujo não-realismo deliberado nos
convoca para um palco maior do que a vida, por via da arte que a imagina
e recria. |