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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
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Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues |
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ANNA
CAROLINA REGNER
Darwin:
o colecionador de cartas
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EDITOR | TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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DIREÇÃO |
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Maria Estela Guedes |
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Em esta homenagem à grande figura portuguesa de Ana
Luísa janeira para a História e Filosofia da Ciência, com trabalhos
pioneiros não só em Portugal mas em tantas outras terras, entre as
quais encontra-se a minha, Brasil, quero dar um exemplo de sua
influência em mim, com uma reflexão que a ela dedico. Com a Ana
Luisa despertei para o significado epistemológico do colecionismo.
Examinando-o sob a ótica da coleção das cartas darwinianas,
reconheço a importância desse significado.
O motivo que me leva a explorar o espírito de
Charles Darwin, o celebrado autor da Origem das Espécies não é o
fato de que ele tenha sido cientista, nem de que tenha sido o grande
marco revolucionário da História Natural. Por certo quando o
cientista é um “naturalista”, cresce a tendência a vê-lo como um “colecionador”,
pois a História Natural tem sido sobejamente dita “classificatória”,
ainda que sob tal rótulo muitas vezes se oculte um certo desdém
teórico, sem que se faça jus ao enorme esforço teórico que sustenta
e emerge da atividade classificatória. Qualquer classificação
requer um princípio que a oriente a determinar quais sejam as
“classes” – o que necessariamente envolve um modo de ver as coisas,
um catalogar ontológico e não apenas prático – e a reconhecer a
pertinência a uma classe. |
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Charles Darwin pode, de muitas maneiras, ser visto
como um colecionador, desde menino, deliciado com o “inventar nomes”,
com suas pedras e seus besouros:
Ao tempo em que fui diariamente a essa escola
(refere-se à escola do Rev. G. Case, na primavera de 1817), “meu gosto
pela história natural e, mais especialmente, por colecionar, estava bem
desenvolvido. Eu tentava inventar nomes para as plantas e coletar toda a
sorte de coisas: conchas, selos, francos, moedas e minerais. A paixão
por coletar, que leva um homem a se tornar um naturalista sistemático,
um virtuoso ou um miserável, era muito forte em mim e era claramente
inato, uma vez que nenhuma de minas irmãs ou meu irmão tinham tal gosto.
(Darwin, 1993, p.22-23).
Com respeito à ciência, continuei coletando materiais com muito zelo,
mas muito a-cientificamente – tudo que me era importante era dar um nome
a um novo mineral, e dificilmente tentei classificá-los. Devo ter
observado insetos com algum cuidado, pois quando eu tinha dez anos
(1819) fui a Plas Edwards, na costa de Wales, por três semanas e fiquei
muito interessado e surpreso ao ver um grande inseto hemíptero, preto e
vermelho, muitas mariposas (Zygæna),e uma Cicindela,os quais não são
encontrados em Shropshire. Quase tomei a decisão de começar a colecionar
todos os insetos mortos que eu pudesse encontrar, pois, consultando
minha irmã, conclui que não estava certo matar insetos a fim de fazer
uma coleção. A partir da leitura do livro de White, Selborn, tive muito
prazer em observar os hábitos dos pássaros e mesmo fazer algumas
anotações sobre o tema. Na minha simplicidade, lembro-me de
surpreender-me pelo fato de todos os cavalheiros não se tornarem
ornitologistas (Darwin, 1993, p. 45)
Depois, no ponto decisivo de sua vida, à bordo do Beagle, na juventude
de seus 21 anos, foi o colecionador das evidências geológicas,
zoológicas e botânicas que sustentariam a radical mudança no modo de ver
a natureza das coisas que inaugura com sua teoria da seleção natural e
seu desejo de contribuir para com a ciência:
A viagem no Beagle foi, de longe, o evento mais
importante em minha vida e determinou toda a minha carreira; (...)
Tenho sempre acreditado que devo à viagem o primeiro treinamento ou
educação que realmente tive de minha mente. Fui levado a atentar com
cuidado a vários ramos da história natural e assim meus poderes de
observação foram aperfeiçoados, embora já fossem bem desenvolvidos.
(Darwin, 1993, p. 76-77)
Ao longo de todo o seu trabalho, a paciência, o
cuidado, a organização, o “faro” para com os fatos decisivos, tudo isso
unido a uma fértil imaginação e habilidade argumentativa pontuariam todo
o seu trabalho. Em sua Autobiografia, diz:
Minha dedicação tem sido tão grande quanto
poderia sê-lo na observação e coleção de fatos. O que é mais
importante, meu amor pela ciência natural tem sido permanente e
ardente. Esse amor puro tem sido, porém, muito auxiliado pela
ambição em ser estimado pelos meus colegas naturalistas. Desde minha
tenra juventude tive o mais forte desejo de entender ou explicar
qualquer coisa que eu observasse, isto é, em agrupar todos os fatos
sob algumas leis gerais” (Darwin, 1993, p. 141)
Contudo, não é ainda com esses testemunhos do
espírito colecionador de Darwin que quero aqui me ocupar. Fascina-me, em
particular, o Darwin colecionador de cartas. Ainda inconclusa, a
publicação da coleção completa de cartas de Darwin pela Cambridge
University Press, sob a editoria de Frederick Bukhardt, Duncan M. Porter
e outros, encontra-se já no volume XVIII e apenas atinge a
correspondência até o ano de 1870. Desde seus 12 anos de idade Darwin
colecionava cartas. Espírito de colecionador, colecionador de
lembranças, de informações, de afetos? Escrever e ler cartas eram parte
de sua rotina. Como nos relata seu filho Francis Darwin: “Ele tomou como
regra guardar todas as cartas que recebia; esse fora um hábito que
aprendera de seu pai e que dizia lhe ser de grande utilidade”. (Darwin,
1958, p. 78).
Nas Reminiscências sobre seu pai (Darwin, 1958, p.
78-79), Francis conta que ele não deixava sem resposta nem mesmo as
cartas mais tolas. Seus correspondentes mereciam-lhe consideração e
muitas vezes pedia ao filho, quando lhe ditava alguma carta, que
cuidasse e escrevesse bem, pois tratava-se de um estrangeiro. Como
pensava que suas cartas poderiam ser lidas sem atenção, dizia-lhe para
chamar a atenção do leitor a uma oração importante, iniciando com um
parágrafo óbvio. Sentado à sua poltrona, próximo à lareira, à tarde,
escrevia suas cartas que, quando longas, eram ditadas a partir de um
esboço às costas de um manuscrito ou de páginas de prova de textos.
O legado epistolar de Charles Darwin é muito grande.
Há que aqui fazer um recorte. Minha proposta é a de que tomemos a
leitura de suas cartas como chave para recompor a rica trajetória
intelectual que se refletiu objetivamente em seu trabalho e na formação
de seu perfil como pesquisador. Isso envolve deixar de lado as singelas
e cativantes cartas que, em 1821 e 1822, escreve a um “querido amigo”
que não foi identificado, onde registrava suas apreciações do
comportamento familiar, suas relações com o irmão, as irmãs e suas
“cobranças” quanto à higiene e aos estudos, bem como seus afetos que iam
além do círculo familiar, seus planos para a organização de seus
instrumentos e de suas “relíquias” e esboço de máquina a ser
construída. Também passarei ao largo de suas mais ou menos acaloradas
cartas de caráter político e anti-escravagista, tanto em sua juventude a
bordo do Beagle quanto em sua maturidade, como na correspondência com
Asa Gray sobre a Guerra de Secessão, bem como passarei ao largo de suas
carinhosas cartas a irmãs, irmão Erasmus e à noiva e esposa Emma Darwin,
de suas cartas sobre suas precárias condições de saúde, de suas sofridas
cartas sobre a perda da filha Annie, ou de suas quase prosaicas cartas
comerciais e de administração de bens. Vale destacar, que minha opção
não deixa também espaço para um tema também fascinante de que trato em
outro lugar, sobre a questão da controvérsia interna que o acompanhou
durante toda a sua vida entre Deus e Ciência, desde as cartas trocadas
com a noiva Emma Wedgewood em 1838 até suas cartas de 1880 a 1881. De
fato, a sua correspondência é o manancial mais rico para se examinar
essa questão, que se mostra bastante complexa e escapa a uma rotulação
simplista de Darwin ateísta ou materialista. Perseguindo por meio da
fluência do estilo epistolar, a formação e discussão de sua teoria, e em
presenciar, pelo fio de sua correspondência, aquelas qualidades de
Darwin que o tornam um dos mais distinguidos colecionadores cientistas,
assim divido o tema. |
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I Prática e atitude de um Colecionador. |
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Contribuindo à formação de seu espírito, antes de ida para estudar em
Edimburgo, merece destaque a correspondência mantida com seu irmão
Erasmus (1822-1825), quando este estudava medicina em Cambridge,
mostrando o interesse de ambos pelo seu “laboratório de química” em um
galpão na propriedade da família em Shrewsbury. Erasmus enviava de
Cambridge instruções a Charles, que incluíam diretrizes e desenhos para
a remodelagem do laboratório. Informava sobre a compra de instrumentos e
da aquisição de minerais que levaria a Charles. Animadamente, descrevia
os experimentos realizados nas aulas em Cambridge e orientava Charles
quanto a experimentos que este deveria realizar. O gosto pela atividade
científica crescia não apenas através de coleções, mas do hábito de
experimentar.
Dos tempos de Edimburgo (1825-1827), sobressaem as cartas das irmãs,
zelosas por sua formação literária e moral. No período de sua formação
em Cambridge (1828-1831), o interesse de colecionador persiste e de
forma vigorosa, sobretudo de insetos,além do prazer de suas incursões
geológicas. Em carta a seu primo William Fox, de 12 e 30 de junho, 29 de
julho, 30 de agosto e de outubro de 1828 diz estar morrendo aos poucos
por não ter com quem falar sobre insetos e, com desenhos feitos pela
irmã de insetos por ele capturados, dá início a uma série de consultas
práticas que fará a Fox, um privilegiado consultor de Darwin pelo resto
da vida. Em 1829 inaugura-se uma característica que será marcante em seu
trabalho: a de criar uma rede informativa de dedicados correspondentes.
Além de Fox, John Maurice Herbert é chamado a colaborar com espécimes de
insetos, em cartas de 13 de setembro e 3 de outubro de 1828. |
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II. O colecionador antecipa as evidências de sua teoria. |
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De 1831 a 1836
tem lugar o famoso episódio que viraria de modo decisivo a vida de
Darwin: a viagem a bordo do Beagle. O Beagle zarpou em 27 de dezembro
de 1831 e regressou em 02 de outubro de 1836. As cartas que antecedem a
viagem, de agosto a dezembro de 1831, descrevem as vicissitudes e a
benévola conspiração de fatos que determinariam seu destino: a recusa de
outros naturalistas ao convite para acompanharem a viagem, a indicação
de Henslow, o aceite de Fitz-Roy (com base em características da
Fisiognomia), a decisiva interferência de seu tio Josiah Wedgwood para
persuadir seu pai a concordar com a viagem. De sua correspondência
durante a viagem, vemos, de início, seu deslumbramento diante dos
trópicos. Em carta a seu pai de 8 de fevereiro a 1º. de março de 1832,
diz:
É completamente inútil dizer qualquer coisa sobre a paisagem. – tão
proveitoso quanto explicar as cores a um cego seria explicar a alguém
que nunca saiu da Europa a total dessemelhança de uma paisagem Tropical.
(Burkhardt, 2009, p.61)
Não vou entrar em êxtase outra vez, mas é um grande mérito eu não
enlouquecer de puro prazer (Burkhardt, 2009, p.64)
As cartas desse período introduzem-nos a questões e enfoques que serão
fundamentais ao desenvolvimento posterior da teoria darwiniana da
seleção natural. |
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O suporte mútuo de diferentes áreas da História Natural. |
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Um deles é sua
atenção às mais diversas áreas da História Natural, ainda que a Geologia
talvez seja então o ponto de elaboração mais madura. O grande
correspondente durante a sua viagem foi A. J. S. Henslow. Nas cartas a
Henslow de julho e agosto de 1832, Darwin explicitamente refere-se à sua
“coleção”, numerada, de espécimes geológicos e pede informações. Quanto
a plantas, lastima sua ignorância, que não lhe permite decidir sobre
coletar aquilo de que, segundo suas palavras, nada sabe:
É decididamente entristecedor andar pela floresta gloriosa, em meio a
tamanhos tesouros & sentir que todos são desperdiçados em mim (Burkhardt,
2009, p.66)
Considera, contudo, sua coleção de plantas dos Abrolhos quase completa,
envia 4 frascos de animais conservados em álcool, e aguarda a
finalização de mais 4 para enviá-los à casa. Faz uma enorme coleção de
aracnídeos no Rio de Janeiro e de besouros pequenos, acondicionados em
caixas de pílulas. Sempre presente é sua preocupação em aproveitar ao
máximo as embalagens antes de remetê-las para casa. Encantou-se com o
colorido e elegância das planárias e com a “maravilhosa organização” de
algumas espécies marinhas da mesma família. Em Montevidéu, coleta toda a
sorte de animais, incluindo cobras e escorpiões. Assombra-se com a
descoberta de 2 planárias vivendo sob pedras secas e pede a Henslow que
pergunte a L. Jenyns se Jenyns já ouvira falar disso.
De Montevidéu, em carta de 26 de outubro a 24 de novembro de
1832, faz de Henslow seu declarado confidente:
Como não tenho ninguém com quem conversar sobre minha sorte e azar na
coleta, estou decidido a dar vazão a tudo contigo. (Burkhardt, 2009,
p.68).
Lastima-se que um dos colecionadores do governo francês o tenha
precedido e que, “muito egoisticamente”, teme “que ele consiga a nata de
todas as coisas boas antes de mim”. |
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A sucessão geológica das formas orgânicas. |
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Relata sua sorte com os ossos
fossilizados e sua atenção à localização geológica dos mesmos. Com
detalhes, faz sua descrição e diz a Henslow:
Se eles te interessarem o bastante para que os desembrulhes, estarei
muito curioso por ouvir alguma coisa a seu respeito: - É preciso teres
cuidado, nesse caso, para não confundires os lotes – Eles estão
misturados com conchas marinhas, que me parecem idênticas às que existem
na atualidade. Mas, desde a época em que foram depositados em seus
leitos, diversas mudanças geológicas ocorreram na região. - (Burkhardt,
2009, p.69)
Em carta posterior a Henslow, de 11 de abril de 1833, a questão de tais
fósseis é retomada:
Estou convencido, por minha conversa com o descobridor, de que o
Megatherium enviado à Soc. Geol. pertence à mesma formação dos ossos que
mandei para casa & que foi lançada ao rio dos penhascos que compõem as
margens: o professor Sedgwick talvez goste de saber disso: dize-lhe que
continuo a me sentir grato por aquela breve excursão ao País de Gales. (Burkhardt,
2009, p.73)
Segue a discussão em carta enviada a Henslow em março de 1834, onde
Darwin mostra-se apreensivo com a “limpeza de todos os ossos” feita pelo
sr. Clift, temendo que os números gravados sejam perdidos, uma vez que
parte dos ossos fora encontrada em um leito de cascalho com conchas
recentes e, parte, em um leito muito diferente, juntamente com ossos de
uma Cutia, gênero aparentemente existente então apenas na América,
... e seria curioso provar que algum do mesmo gênero co-existiu com o
Megatherium; esse e muitos outros aspectos dependem inteiramente da
cuidadosa preservação dos números. (Burkhardt, 2009, p.73)
Em Porto St. Julian encontrei alguns ossos perfeitos de um animal
grande, imagino que um mastodonte – (...) – A propósito, esse Mastodonte
& o Megatherium, não tenho dúvida, foram irmãos nas antigas planícies. (Burkhardt,
2009, p.74-75) A idéia de comunidade de descendência com modificação já estava
a esgueirar-se no pensamento de Darwin[1]. Retornando à carta a Henslow
de 26 de outubro a 24 de novembro de 1832, ainda que de modo tosco,
faz-se presente a suposição do caráter intermediário exibido por alguns
pássaros e anfíbios entre diferentes raças de pássaros e de anfíbios,
respectivamente: Há um pobre exemplar de um pássaro que, a meus olhos não-ornitológicos,
parece ser uma feliz mistura de cotovia com pombo & narceja... Suponho
que se revele um pássaro conhecido, embora me tenha desconcertado. –
Capturei uns anfíbios interessantes; um belo Bipes; um novo
Trigonocephalus, que une lindamente em seus hábitos o Crotalus e o
Viperus: e uma porção de novos Sáurios (até onde vai meu conhecimento) (Burkhardt,
2009, p.69) Em Carta a Henslow de 24 de novembro de 1832, fala de novos e curiosos
gêneros de crustáceos pelágicos, a interessantes zoófitos, de uma
flustra com estrutura anômala, e a uma família de animais pelágicos,
semelhantes a Medusas, mas altamente organizados:
Examinei-os repetidamente &, com certeza, a julgar por sua estrutura,
seria impossível situá-los em qualquer ordem existente. – Talvez a Salpa
seja o animal mais próximo, embora a transparência do corpo seja
praticamente a única característica que eles têm em comum.(Burkhardt,
2009, p.69-70)
Em carta de março de 1834, fala-lhe claramente de uma nova espécie de
avestruz e aponta às distinções em relação a outras:
mas o que tem maior interesse geral é a existência incontestável (ao que
me parece) de uma outra espécie de avestruz, além do Struthio Rhea (...)
As diferenças encontram-se principalmente na cor das penas & nos flocos
das pernas, que têm penas abaixo dos joelhos; {e na} nidificação &
distribuição geográfica .(Burkhardt, 2009, p.76).
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O papel da Geologia. |
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A geologia encanta-lhe. Na carta a Henslow
de março de 1834, diz-lhe:
Ao me intrigar com a estratificação &c, sinto-me inclinado a dar toda a
atenção a tuas grandes ostras & teus megatérios ainda maiores. – mas,
depois, ao escavar uns belos ossos, pergunto-me como pode algum homem
esfalfar seus ossos martelando granito. (Burkhardt, 2009, p.75).
E logo se queixa e pede ajuda:
A propósito, não tenho uma só idéia clara sobre a clivagem, a
estratificação e as linhas de sublevação. – Não disponho de livros que
me digam muita coisa, & o que eles dizem, não posso aplicar ao que vejo.
(...) Será que podes lançar alguma luz em minha mente, dizendo-me qual é
a relação que há entre a clivagem e os planos de deposição? (Burkhardt,
2009, p.75) Apesar de tais “restrições”, seu grande atrativo à medida em que a
viagem avançava, foram os relatos de suas notas, observações e
teorizações em Geologia. À sua irmã Susan escreve de Valparaíso, em 23
de abril de 1835, relatando o sucesso de sua excursão pelos Andes até
Mendoza:
(a viagem) foi muito dispendiosa, entretanto; (mas) tenho certeza de que
meu pai não a lamentaria, se soubesse quão profundamente ela me agradou.
– foi mais do que prazer: não consigo expressar o deleite que senti ante
uma finalização tão estranha de toda a minha geologia na América – do s.
– eu mal conseguia dormir à noite, pensando no meu trabalho do dia. .(Burkhardt,
2009, p.87).
Seus estudos levam-no a supor – “convicção de sua mente” - que a imensa
massa da cadeia das Cordilheiras é tão moderna que chega a ser
contemporânea das planícies da Patagônia. Comenta:
se esse resultado for comprovado, será um dado importantíssimo na teoria
da formação do mundo.(Burkhardt, 2009, p.88)
Mas, numa carta a Henslow de 12 de agosto de 1835, revê sua avaliação:
Desde aquela ocasião viajei por terra de Valparaíso a Copiapó e vi um
pouco mais das Cordilheiras. – Algumas de minhas concepções geológicas
foram alteradas depois da última carta. – Creio que a massa superior de
estratos não é tão contemporânea quanto supus. (Burkhardt, 2009, p.91)
E propõe uma teoria em termos de uma cadeia de vulcões, expelindo lavas
que depois formaram ilhas, a partir das quais produziram camadas de um
conglomerado bruto. |
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A visão da complexidade ecológica. |
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As cartas de Darwin, relatando as coleções enviadas a Inglaterra, guardam todas as referências a plantas,
animais e fósseis. Inclusive a água mineral das fontes de água quente de
Cauquenes, no sopé dos Andes, foi cuidadosamente acondicionada e
remetida, como conta a Henslow em carta de Valparaíso, em 1834.
A importância das questões de distribuição geográfica, que serão
centrais na Origem das espécies, já aparece em sua correspondência, como
acontece em sua carta a Susan acima referida:
Como sabe, é freqüente encontrar plantas das regiões Árticas em
latitudes inferiores, a uma altitude que produz um grau idêntico de
frio. (Burkhardt, 2009, p.88)
A importância da teorização.
No que concerne à formação dos corais, seu
teorizar não requereu que revisasse posições. Em carta a sua irmã Caroline, de 29 de abril de 1836, diz: O tema da formação dos corais tem sido para mim, neste último semestre,
um assunto de especial interesse. Espero poder expor alguns fatos de um
ponto de vista mais simples & coerente do que aquele em que eles tem
sido até hoje considerados. (Burkhardt, 2009, p.95-96) O zelo pela ciência.
A importância que a Geologia passa a assumir ao
longo de sua viagem claramente transparece em um trecho de carta
dirigida a a sua irmã Caroline, de 29 de abril de 1836, em que seu afã
geológico vem associado a uma questão metodológica que lhe será central
em sua trajetória intelectual, a busca incansável pela clareza:
Minha ocupação consiste em rearranjar velhas notas geológicas: um
rearranjo que, em geral, consiste em reescrevê-las por completo. Estou
apenas começando a descobrir a dificuldade de expressar as idéias no
papel. Enquanto isso consiste unicamente em descrições, é muito fácil.;
mas, quando o raciocínio entra em jogo, estabelecer uma ligação
apropriada, {ter} clareza e uma fluência moderada são, para mim, como já
disse, uma dificuldade da qual eu não fazia idéia. - (Burkhardt, 2009,
p.97)
Seu zelo pela ciência e pelo reconhecimento de trazer uma contribuição à
ciência já desponta com força no longo período epistolar que reflete sua
viagem. Susan Darwin relatou a Darwin em carta de 22 de novembro de 1835
as palavras de Sedwick sobre Darwin dirigidas a Samuel Butler, diretor
da escola freqüentada por Darwin em sua infância:
Ele ... já mandou para casa uma Coleção que suplanta qualquer elogio. –
para ele, foi a melhor coisa do mundo ter partido na Viagem de
descobrimento – Havia um certo risco que viesse a se transformar em um
homem ocioso: agora, no entanto, seu caráter se firmará &, se Deus
poupar sua vida, ele terá um grande nome entre os naturalistas da Europa
(Correspondence, v. 1, p.469)
Em carta à irmã Susan de 04 de agosto de 1836, ao final da viagem,
Darwin comenta:
Tuas duas cartas estavam repletas de boas notícias: - especialmente as
expressões que me disseste que o Prof. Sedgwick usou sobre minhas
coleções. – confesso que elas são profundamente gratificantes. – Confio
que ao menos parte delas venha a se confirmar verdadeira, & que eu possa
agir como penso agora: - que o homem que se atreve a desperdiçar uma
hora do tempo não descobriu o valor da vida. – O fato do Prof. Sedgwick
chegar a mencionar meu nome traz-me a esperança de que ele me auxilie
com a sua orientação, da qual, em muitas questões geológicas, sinto-me
muito necessitado ... (Burkhardt, 2009, p.98)
Podemos encontrar na correspondência de sua viagem a bordo do Beagle,
muito das questões centrais com que se ocupará ao longo de sua vida,
além de certas características típicas de seu modo de investigação
futura, tal como a constituição de redes epistolares de informação. É
curioso, então, depararmo-nos com a escassa referência, em sua
correspondência, feita a Galápagos – cuja visita será apontada na Origem
das Espécies como determinante de suas buscas explicativas e de seu
objeto. Mais surpreendente se torna em vista de sua declarada
expectativa pela chegada a Galápagos, carta a Caroline Darwin de 19/julho
– 12/agosto de 1835 (Correspondence, vol I, p.458), tendo mesmo dito a
Fox, carta de 9-12/agosto de 1835 (Correspondence, vol I, p.460) que
seria o ponto mais esperado de sua viagem. Dessa visita, em suas cartas,
ficou um breve registro de que trabalhou duro, referindo-se a sua
atenção à flora, aos pássaros, sem qualquer detalhamento, e fazendo
alguns comentários sobre sua geologia – carta a Henslow de janeiro de
1836 (Correspondence, vol I, p.485).
Mas tal escassez de informação pode redundar em um argumento a favor de
uma visão já evolucionista. Para um naturalista que recomenda não se
basear na memória, conselho dado em seu Retrospecto, tanto na versão
original como na da 2a edição de seu diário, Darwin devia sentir-se
bastante confiante quanto à sua capacidade de guardar as impressões, que
deveriam ser suficientemente fortes e claras, dos fenômenos de Galápagos.
Não é improvável pensar que a força e clareza dessas impressões fluíssem
de seu encaixe num esquema já delineado em seus suportes, na mente de
Darwin. Este esquema, que será claramente estruturado no Notebook de
1837, foi evolucionista. Não parece provável que Darwin não houvesse de
imediato registrado suas observações sobre Galápagos por não lhe
parecerem então suficientemente importantes. Ele freqüentemente
registrava as mais comezinhas observações. Uma possível razão para sua
inicial omissão de registros poderia ser a atenção que, em 1835, estava
devotando a seu trabalho geológico, Isso por si não reduz o papel de uma
visão evolucionista e pode bem inserir-se na perspectiva de um
procedimento que será característico na Origem: o mútuo suporte provido
por evidências e considerações geológicas e biológicas. |
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III. O estabelecimento de um programa de pesquisa. |
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Em suporte a essas
minha considerações, assinalo outro indicador importante. Ao regressar à
Inglaterra, Darwin abre importantes coleções de notas, seus Notebooks de
1836 a 1844 que, bem arranjadas, constituem o programa de investigação
levado a cabo por Darwin ao longo de sua vida e que resultará em seus
diversos livros e memoires. Em particular, em julho de 1837 abre o
Notebbok sobre Transmutação, onde encontramos todos os principais pontos
de sua teoria, com fartas referências aos fenômenos de Galápagos,
inclusive com a clara consciência de Darwin quanto a suas demandas
revolucionárias na Cosmologia, Filosofia da Mente e Metafísica. No
entanto, a correspondência desse decisivo período teórico, cala sobre o
seu projeto como um todo e atém-se antes a comentários sobre a
publicação dos volumes referentes à viagem do Beagle e questões mais ou
menos pontuais sobre o material coletado em sua viagem e enviado a
naturalistas em seus diversos campos para identificação e avaliação.
Aqui e ali aparecem perguntas postas a seus interlocutores sobre
fenômenos da maior pertinência ao desenvolvimento de suas idéias – como
sobre aquisição de instintos, de distribuição geográfica de plantas,
variedades e espécies. Esse trabalho colocou-o em comunicação com os
principais naturalistas de então, mas apenas a um reduzido grupo (Lyell,
Henslow, Jenyns, Waterhouse e Fox), como mostra sua correspondência,
Darwin disse que estava coletando todos os fatos sobre a origem e
variação das espécies (carta a Henslow de novembro de 1839).
A Charles Lyell, em carta de 30 de julho de 1837, fala de seu interesse
pela questão das espécies, da forma americana de pássaros e répteis das
ilhas de Galápagos (e pergunta-lhe o que tem observado de seu trabalho
com conchas), da arbitrariedade das classificações dos naturalistas, dos
resultados das observações feitas por Darwin e Owen sobre cinco grandes
Edentatas de Bahia Blanca, sobre como viveram e se extinguiram, sobre a
não relação do grosso dos animais com a exuberância da vegetação:
Que mistério extraordin. é a causa das mortes desses inúmeros animais,
tão recentemente & com tão poucas alterações físicas (Burkhardt, 2000,
p.108)
A Henslow indaga sobre distribuição geográfica de plantas (10 de
novembro de 1839), a William Fox sobre cruzamentos entre todas as aves e
animais domésticos (25 de janeiro de 1841) e, com rigorosos detalhes,
envia a Henry Thomas de la Beche (7 de fevereiro de 1842) um
questionário sobre cruzamentos entre cavalos, gado, cães, gatos, aves,
porcos e caprinos domésticos e selvagens – quanto a cores, tamanhos etc.
Darwin introduz no seu círculo de fontes de informação a criadores e
agricultores. Em particular, suas mais importantes cartas sobre seleção
artificial foram trocadas com William Herbert, Dean de Manchester. A
seleção artificial aparece como um ponto importante de suas
preocupações, bem como as possíveis aplicações de sua teoria,
notadamente na busca de definições mais claras de espécie e das relações
entre as espécies. Seu grande interlocutor a esse respeito fora G. R.
Waterhouse – o que entender por sistema “natural”? Para Darwin, a
comunidade de descendência com modificação era a resposta correta.
De um modo geral, porém, a correspondência desse período nem de longe
retrata o fervilhar das idéias do programa darwiniano. Esse silêncio,
contudo, vem ao encontro da cautela que Darwin teve em postergar até
1859 a publicação de sua teoria que tinha seus elementos básicos já em
seus Notebooks de 1836 a 1844 e sua estrutura geral nos Ensaios de 1842
e, mormente no de 1844. A esse longo período – de 1842 a 1859 -
corresponde uma farta correspondência em que Darwin trabalha
minuciosamente as evidências e o detalhamento teórico que marcarão a
extraordinária força persuasiva de sua teoria.
Em 1842, Darwin escreve seu primeiro Ensaio, onde sua teoria é
exposta em suas linhas gerais, mas já segundo a estrutura que exibirá na
Origem das Espécies, exibindo, inclusive, as principais dificuldades que
lhe seriam levantadas e o encaminha,mento para seu tratamento. Não há
referência ao ensaio em sua correspondência. Seguindo seu trabalho, em
1843 assumem importância dois novos interlocutores: George Robert
Waterhouse e Joseph Dalton Hooker. Hooker, a quem conheceu em setembro
de 1843, passará a ser o grande correspondente de Darwin no período que
vai de 1843 até a publicação da Origem e pelo resto de sua vida. Com
Waterhouse (26 de julho de 1843) discute as relações numéricas e
qualitativas entre os seres vivos existentes e as formas fossilizadas:
Seria preciso um capítulo para defender a idéia de como é provável que a
geologia nunca tenha revelado & nunca venha a revelar mais do que uma
dentre um milhão de formas que existiram ... (Burkhardt, 2009,
p.127-128)
Hooker será seu grande consultor em botânica, com questões que se
iniciam na carta de 13 ou 20 de novembro de 1843. Henslow remetera a
Hooker a coleção de plantas colhida na viagem do Beagle. Darwin
expõe-lhe sua principal atenção ao caso das flores alpinas da Terra do
Fogo, das plantas de Galápagos e seu paralelo com a flora de Santa
Helena. De aí em frente, intensa será a correspondência e a amizade
entre ambos. Em 1844, uma farta correspondência com Hooker foca em
especial questões de distribuição geográfica.
Em 1844, Darwin conclui uma versão bem mais detalhada de seu Ensaio de
1842 e, em carta de 5 de julho de 1844 à sua esposa Emma, pede-lhe que,
em caso de sua morte, tome as providências necessárias para a publicação
do mesmo:
Minha. Querida. Emma.
Acabo de terminar meu esboço de minha teoria sobre as espécies. Se, como
creio, minha teoria for verdadeira, & se ela for aceita até mesmo por um
só juiz competente, isso será um passo considerável na ciência.
Portanto, redijo isto, para a eventualidade de minha morte súbita, como
meu mais solene e último pedido, que estou certo de que irás considerar
da mesma forma que se eu o houvesse incluído legalmente em meu
testamento: (...)(Burkhardt, 20009, p.133)
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IV O desenvolvimento do programa. |
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O fato de que o esboço de sua teoria
sobre as espécies estava terminado, conforme o diz, serve de parâmetro
para avaliarmos, a partir da correspondência que vai de 1844 a 1859, a
contribuição da correspondência de Darwin para recompormos a teoria darwiniana. Questões relativas a distribuição geográfica de plantas e
animais parecem ter sido um ponto que Darwin considerava chave para o
fortalecimento de sua teoria, bem como, a partir de 1854, o será a
questão dos meios de transporte. A respeito dessas questões, Hooker será
o grande interlocutor, mesmo para indicar outros informantes, em um
massivo e contínuo trânsito epistolar. Com Hooker Darwin também discute,
detalhadamente, formações geológicas e teorias a respeito (ambos
divergem quanto à aceitação da teoria de Forbes!), bem como critérios
para a classificação (27 de junho e 07 de julho de 1854):
Com respeito a “superioridade”e “inferioridade”, minhas idéias são
apenas ecléticas & não muito claras. Parece-me que o desejo inevitável
de comparar todos os animais com os homens, como seres supremos, gera
uma certa confusão (Burkhardt, 2000, p.130)
Mas Darwin também dirigia-se a outros especialistas, como a Henry Denny
(7 de novembro de 18444), perguntando sobre semelhanças e diferenças
entre parasitas de pássaros em diferentes partes do mundo(Burkhardt,
2009, p.137-138). A J. D. Dana (8 de maio de 1852). Solicita doação de
morcegos ao Museu Britânico.A Jenyns (12 de outubro de 1844) pergunta
sobre os obstáculos e períodos da vida pelos quais o aumento das
populações é limitado e comunica-lhe:
Tenho continuado a ler regularmente e a compilar dados sobre a variação
dos animais e plantas domésticas & sobre a questão do que são as
espécies; disponho de um corpo de dados formidável & creio que posso
extrair algumas conclusões sólidas. A conclusão geral a que tenho sido
levado lentamente, partindo de uma convicção diametralmente oposta, é
que as espécies são mutáveis & que as espécies co-aliadas são
co-descendentes de troncos comuns. Sei o quanto me exponho à censura por
essa conclusão, mas, pelo menos, cheguei a ela de maneira bastante
honesta e deliberada.
Não publicarei nada sobre esse assunto por vários anos. (Burkhardt,
2009, p.137 – grifo meu)
Questões metodológicas de diferentes abrangências, com reflexos nas
teses da teoria darwiniana de seleção natural, também são discutidas no
período que vai de seu Ensaio à primeira publicação da Origem. Em carta
a Hooker de 6 de maio de 1847, Darwin responde ao que chamou de “ataque
selvagem” de Hooker à teimosa e tola insistência de Darwin de que nossas
plantas carboníferas teriam vivido em águas marítimas rasas. O
interessante dessa resposta está em que ela nos revela a identificação
de questões metodológicas com questões de abordagem ou mesmo de viés de
investigação, à luz de certas suposições[2] (entre essas, Darwin
questiona a legitimidade de inferências do presente ao passado):
Acaso é uma tese segura dizer (dizer) que, pelo fato de as algas serem
quase as únicas, ou as únicas plantas marinhas submersas, outros grupos
não tiveram anteriormente membros com esses hábitos (?); nos animais,
esse argumento não seria conclusivo, como eu poderia ilustrar através de
muitos exemplos; - mas estou perdendo a cabeça, quero apenas defender-me
até certo ponto, & não sofrer as conseqüências de te atacar (Burkhardt,
2009, p.147)
Preocupações metodológicas referentes a uso de aparelhos adequados
também são foco de sua atenção, como aparece em sua carta a Henslow de
01 de abril de 1848, em que lhe recomenda os microscópios produzidos por
um determinado manufatureiro como sendo “maravilhosamente” superior a
qualquer outro (Burkhardt, 2009, p.155). Questões metodológicas também
se revestem da condição de princípios gerais e estratégicos de
investigação, como quando se propõe a examinar com isenção ambos os
lados da questão, favorável e desfavorável à sua tese. Assim dirige-se a
Hooker em 25 de setembro de 1853, comentando seu trabalho sobre a flora
da Novas Zelândia:
Muitos de teus argumentos me parecem muito bem enunciados: &, até onde
vai minha experiência, a maneira franca como discutes o assunto é ímpar.
O conjunto todo me está sendo muito útil, quando quer que eu venha a me
dedicar a meu livro, embora algumas partes sejam uma ducha fria para
mim, pois faz algum tempo que decidi fornecer os argumentos favoráveis a
ambos os lados da questão (tanto quanto me for possível), em vez de
defender apenas o lado da mutabilidade (Burkhardt, 2009, p.189).
Esse será um dos procedimentos / estratégias argumentativas chave que
Darwin utilizará na elaboração e defesa do argumento da Origem.
Não apenas as discussões de enfoques, instrumentos e princípios
explicativos são cobertos por preocupações metodológicas, mas também a
formação de hábitos de pesquisa. Em especial, o treinamento requerido
pelos seus estudos sobre as cracas, que o consumiram por oito anos,
requereu uma habilidade e disciplina práticas, além da dedicação, muitas
vezes difícil, a um tópico pequeno, se pensarmos na abrangência da
temática darwiniana. Todavia, serviu também para exemplificar a feliz
combinação, em Darwin, da grande visão condutora, e do detalhado exame
das suas partes, o qual assegura a tal visão uma validade objetiva. Em
ambos os níveis de investigação, a constituição de uma rede de dedicados
correspondentes-informantes foi vital para o sucesso do empreendimento
darwiniano. Syms Covington, por exemplo, foi um daqueles decididamente
incorporados na rede por força do estudo sobre as cracas.
A abordagem crítica.
Em 1853 entra no cenário dos
correspondentes e amigos de Darwin Thomas Huxley, a quem Darwin solicita
uma resenha de seu trabalho sobre as cracas (13 de abril de 1853). Em
1854, discute com Huxley a resenha que este fizera dos Vestiges of the
natural history of creation. Nesta oportunidade, revela-se uma avaliação
que Darwin faz da situação de sua própria teoria que vai além de uma
avaliação de procedimentos ou teses parciais e a situa na trajetória das
“grandes respostas” à questão maior da origem das espécies:
Mas é possível que eu não seja um juiz imparcial, pois sou quase tão
pouco ortodoxo a respeito das espécies quanto os próprios Vestígios,
embora tenha a pretensão de não ser tão pouco racional. (Burkhardt,
2009, p.193)
Essa avaliação de algum modo antecipa àquela que será acrescida à 5ª.
edição da Origem através de sua “Notícia histórica”.
As cartas trocadas com especialistas mostram que igualmente procedem as
buscas de “evidência” para pontos específicos da teoria. Para tratar da
questão dos meios de transporte de plantas e animais a locais distantes
a partir de um centro de origem – questão característica da teoria
darwiniana em oposição à creacionista - Darwin recorre a diversos
estudiosos e observadores. A Walter Baldock Mantell (17 de novembro de
1854) recorre para saber da existência ou não, na Nova Zelândia, de
grandes blocos de pedra, especialmente angulosos, que houvessem sido
transportados por grandes distâncias. Examina com Hooker o caso dos
gêneros aberrantes, isolados em seus territórios (11 de dezembro de
1854). Realiza experimentos sobre transporte a grandes distâncias de
sementes em águas marinhas e sua posterior germinação e os descreve
minuciosamente a Hooker (07 e 13 de abril de 1855), bem como discute com
ele hipóteses sobre o meio de transporte (05 de junho e 05 de julho de
1855). William Fox continua prestando-lhe valiosas informações sobre
animais domésticos e sobre o possível transporte de ovos através de água
salgada (07 e 17 de maio e 25 de junho de 1855). William Tegetmeir passa
a integrar sua equipe de colaboradores, no que concerne ao estudo das
aves domésticas. Sabe-se quão importante será o argumento sobre a origem
dos pombos domésticos que Darwin apresentará na Origem para a defesa de
sua teoria.
A partir de abril de 1855, Darwin inicia uma intensa correspondência com
Asa Gray, botânico norte-americano e que será um dos grandes adeptos da
teoria darwiniana. Dele vale-se Darwin para informações sobre a flora
americana (25 de abril, 08 de junho e 24 de agosto de 1855, 14 de
janeiro de 1856). A carta de Darwin a Asa Gray de 5 de setembro de 1857
terá um grande valor estratégico para a defesa da paternidade darwiniana
da teoria da seleção natural. Nela, Darwin oferece um resumo de sua
teoria, antes de receber o famoso ensaio de Wallace envolvendo a seleção
natural e ameaçando a longa paternidade darwiniana da idéia. A favor de
Darwin, contou o fato de, desde há muito, Lyell e Hooker conhecerem sua
teoria e da exposição de seus pontos principais feita a Asa Gray nessa
correspondência. De fato, os anos de 1858 e 1859 foram os mais agitados
de sua correspondência intelectual. |
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V A pressão para a publicação. |
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De 1856 a 1858 estava Darwin trabalhando
sobre o seu “big book” sobre a seleção natural, quando, em 18 de junho
de 1858, recebe uma carta de Wallace, que, por razões óbvias, seria o
grande “blow” do trabalho de Darwin. Na mesma data, Darwin escreve a
Lyell:
Cerca de um ano atrás recomendaste-me a leitura de um artigo de Wallace
dos anais, o qual te havia interessado &, como eu estava escrevendo para
ele e sabia que isso lhe daria muito prazer, contei-lhe esse fato. Hoje
ele me enviou o texto anexo & pediu-me para que eu o encaminhasse a ti.
parece-me muito digno de ser lido. Tuas palavras, quando disseste que
alguém se anteciparia a mim, confirmaram-se num grau incomum. (...)
Portanto, toda a minha originalidade, importe ela no que importar,
estará, se vier algum dia a ter algum valor, não venha a se deteriorar,
uma vez que o trabalho inteiro consista na aplicação da teoria
arruinada, muito embora meu Livro (Burkhardt, 2009, p.255). Em meio a esse torvelinho aniquilante, é também do próprio Darwin que,
uma semana após, em carta de 25 de junho de 1858 dirigida a Lyell, surge
a indicação de uma solução salomônica:
Lamento muitíssimo incomodar-te, ocupado como és, com um assunto tão
meramente pessoal. mas se me deres tua opinião ponderada, estar-me-ás
prestanto um serviço maior do que qualquer outro homem, pois tenho plena
confiança em teu julgamento e tua honradez.
Não há nada no esboço de Wallace que não tenha sido escrito com muito
mais detalhes em meu esboço transcrito em 1844, & lido por Hooker há
nuns doze anos atrás. Há mais ou menos um ano enviei um resumo de minhas
idéias, do qual tenho uma cópia, a Asa Gray (em virtude da
correspondência quanto a diversos pontos), de modo que poderia, com toda
a veracidade, afirmar e provar que não tirei nada de Wallace. Eu ficaria
extremamente feliz, neste momento, em publicar um esboço de minhas
concepções gerais, com cerca de dez páginas. Mas não consigo
convencer-me de que poderia fazê-lo de maneira honrada. (...) Se eu
pudesse fazer uma publicação de maneira honrosa, declararia ter sido
induzido a publicar um resumo agora (7 muito me agradaria ter a
permissão de dizer que estava seguindo o teu conselho de muitos anos
atrás), pelo fato de Wallace haver-me remetido um esboço de minhas
conclusões gerais – Diferimos apenas quanto ao fato de eu ter sido
levado a minhas concepções a partir do que a seleção artificial faz com
os animais domésticos. Eu poderia remeter a Wallace uma cópia de minha
carta a Asa Gray, para lhe mostrar que não roubei sua doutrina. Mas não
sei dizer se fazer agora a publicação não seria vil e mesquinho; essa
foi a minha primeira impressão, & eu certamente teria agido com base
nela, não fosse por tua carta. – (...)
A propósito, espero que não faças objeção a enviar esta carta e tua
resposta a Hooker (...).(Burkhardt, 2009, p.256-257).
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VI As sucessivas edições e lapidações. |
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O desfecho dessa
situação é um dos fatos mais conhecidos da história da ciência: a
leitura conjunta dos papers de Wallace e Darwin à Linnean Society (sem
nenhuma repercussão), encaminhados por Hooker e Lyell em 30 de junho de
1858 e lidos em 10 de julho. Foram, realmente, tempos tormentosos para
Darwin. Nesses mesmos dias, perdia sua filha mais nova com febre
escarlatina. Outros membros da casa contraem a doença. Falece sua irmã
mais moça.
Em 1859, é publicada a Origem das espécies de Charles Darwin, como um
abstract do seu “big book”, com estrondoso sucesso de vendas, também
registrado em suas cartas. Em março concluíra seu o último capítulo e em
outubro finalizaria a leitura das provas gráficas. Uma intensa
correspondência com seu editor John Murray tem lugar, onde se pode
também ver as ponderações sobre o título, que finalmente é decidido como
On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the
Preservation of the favoured races in the Struggle for Life. Em 24 de
novembro o livro estava à venda e imediatamente estava esgotado.
Em dezembro preparava-se uma nova e revisada edição, publicada em 07 de
janeiro de 1860. A segunda edição sofreu poucas alterações. Uma dessas
foi a inclusão, no capítulo conclusivo, de um comentário à Origem feito
por uma autoridade religiosa (Charles Kingsley), segundo o qual é muito
mais digno da Divindade criar formas primevas capazes de se
desenvolverem em todas as formas temporal e espacialmente necessárias,
do que a cada vez intervir de novo para preencher lacunas.
A batalha, contudo, pela aceitação da teoria recém começava. Mesmo seus
mais ardorosos apoiadores, como Thomas Huxley e Asa Gray tinham suas
reservas. 1860, como bem o demonstra sua correspoindência, será marcado,
de um lado pela reação de Darwin às críticas e críticos. De outro, por
um empenho em projetos que pudessem, sobretudo pela clara ilustração do
poder explicativo e vigor metodológico da teoria, levar seus oponentes a
melhor compreendê-la. E isso significaria aumentar o número de seus
adeptos.
Como também vemos na Origem das Espécies, as cartas revelam as
diferentes estratégias de Darwin no tratamento das objeções que lhe são
feitas. Darwin parece bastante sensível à acusação de falta de
cientificidade. Seu antes admirador, Adam Sedwick, em carta de 24 de
novembro de 1859, dirige-lhe crítica “mortal” para os padrões de
cientificidade à época:
Li o seu livro mais com pesar do que com prazer (..) Você desrtou – após
um começo naquela estrada de toda a sólida verdade física – do
verdadeiro método da indução e acionou uma maquinaria tão selvagem como
a da locomotiva do Bispo Wilkins que nos levaria à Lua. (Correspondence,
vol 7, p. 396)
A uma crítica desse teor comentou Darwin em carta a Henslow de 8 de maio
de 1860:
Posso perfeitamente entender Sedwick ou qualquer outro dizer que a
seleção natural não explica amplas classes de fatos; mas isso é muito
diferente do que dizer que me afastei dos corretos princípios da
investigação científica” (Correspondence, vol 8, p. 195)[3]
Darwin também se desagradara da resenha de Asa Gray em que a seleção
natural foi apresentada como uma hipótese e não, uma teoria, ao que
respondeu a Asa Gray (carta de 18 de fevereiro de 1860): “Parece-me que
uma hipótese desenvolve-se em uma teoria apenas por explicar uma ampla
classe de fatos” (Correspondence, vol 8, p. 91). E agradou-lhe
sobremaneira a afirmação de Henry Fawcet de que sua teoria estava de
acordo com a exposição de John Stuart Mill do método da investigação
científica. Assim entendeu Darwin o elogio: inventar uma hipótese e, se
ela explicar muitos fenômenos, tornar-se-á real, diz em carta a C.J.
Bunbury, 9 de fevereiro de 1860 (Correspondence, vol 8, p. 76).
Do ponto de vista de dificuldades de conteúdo, essas foram
variadas, de onde Darwin tirou que sua teoria não havia sido
compreendida. As dificuldades que lhe foram levantadas versavam desde a
questão da origem da vida (Darwin: separa esse problema do problema da
origem das espécies) até a da multidão de formas simples existentes
(Para Darwin: a seleção natural não leva necessariamente ao progresso).
Trata-se de um período de intensa correspondência entre Darwin e Lyell,
a cujos questionamentos Darwin responde pacientemente e com detalhe,
certo de que, além de poderoso aliado, Lyell queria realmente entender a
seleção natural. Huxley insistia em como explicar, pela seleção natural,
a esterilidade interespecífica. A questão da esterilidade continuava a
ser um objeto de reflexão para Darwin. Muitas dificuldades eram
levantadas a partir da evidência geológica disponível, embora houvesse
mais geólogos “convertidos” à teoria darwiniana do que outros
naturalistas. E, a partir de março, Darwin começa a tabular e
categorizar os “convertidos”, tal como os apresenta a Hooker em carta de
3 de março de 1860:
Geólogos Zoólogos e paleontólogos
Fisiólogos Botânicos Lyell Huxley Carpenter Hooker Ramsay J. Lubbock Sir H. Holland H. C. Watson Jukes L. Jenyns (em boa
parte)
Asa Gray (em H. D. Rogers Searles wood alguma parte) Twaines
(Correspondence, vol 8, p. 116)
Porém, a dificuldade que parecia ser a mais séria para aceitação da
teoria era a das suas implicações para o caso do homem. Bem conhecida é
a polêmica havida com Samuel Wilberforce, bispo de Oxford, em que Huxley
defendeu, com toda energia e com os aplausos dos jovens estudantes, a
posição darwiniana. Hooker, por sua vez, testemunha ocular do evento,
deliciaria Darwin com sua detalhada carta (2 de julho de 1860) relatando
o evento (Correspondence, vol 8, p. 270).
O convencimento da comunidade científica. Mas o peso das
críticas e o temor de que a teoria não viesse a convencer a comunidade
científica pesava sobre Darwin. Fazia-se necessário uma ação positiva a
respeito. Uma delas consistia em obter a publicação de resenhas que
dessem a conhecer a teoria, tal como suas cartas o revelam. E foi assim
que Darwin empenhou-se em ver publicadas na Inglaterra os ensaios que
Asa Gray publicara com sucesso nos Estados Unidos. Seus ensaios
empenhavam-se em mostrar que a operação da seleção natural era
compatível com a crença de um Desígnio na Natureza. Darwin pensava que
Asa Gray entendia o argumento darwiniano e que, além disso, seus ensaios
seriam um antídoto aos ataques teológicos a seu livro na Inglaterra. A
outra estratégia estava em influir a nova geração de naturalistas com o
vigor teórico e experimental da teoria. Essa seria a tarefa para seus
projetos botânicos, nos quais reencontraria seu caro tema da
fertilização de plantas por insetos, o que o levou a seu cuidadoso
trabalho com as orquídeas. O projeto crescia de interesse à medida que
passava de um gênero a outro de orquídeas. Outro projeto botânico era o
do estudo das prímulas. Esses estudos ofereciam aos naturalistas
diferentes aspectos dos maravilhosos mecanismos adaptativos das plantas
e mostravam como suas estruturas podiam ser interpretadas à luz da
teoria da seleção natural. Como as cartas trocadas entre Darwin, Hooker
e Oliver indicam, a novidade de abordagem via seleção natural para a
pesquisa em botânica surpreendeu favoravelmente mesmo os especialistas.
Em anos seguintes, o trabalho em botânica serviu como modelo de
investigação em história natural, ilustrando graficamente o poder
conceitual e metodológico da teoria.
Em que pesem o interesse de Darwin por tais projetos, ele
também estava “convencido de que deveria trabalhar sobre variação e não
se distrair com interlúdios”, como aparece em sua carta a Lyell de 24 de
novembro de 1860 e a Daniel Oliver de 20 de outubro de 1860
(Correspondence, vol 8, p. 491 e p.440). Havia que dar seguimento aos
temas do projeto maior, o “big book” que fora interrompido pelo
“abstract”. No entanto, em novembro John Murray o chama para uma
terceira edição da Origem e Darwin propõe-se a revisar o texto,
incluindo os criticismos que sofrera e o novo material de suporte à sua
teoria. A terceira edição aparecerá em 1861. Todas as edições
subseqüentes, até a sexta e última revisada pelo próprio Darwin, em
1872, incorporarão os resultados de sua constante investigação,
argumentação, discussão e busca de evidências, todas documentadas em sua
cartas e traduzidas nas cuidadosas revisões de cada nova edição.
Na terceira edição foi acrescida uma tabela de “adições e correções à
segunda e terceira edições”, além de um “esboço histórico do progresso
de opinião sobre o origem das espécies”. O acréscimo desse esboço
permitirá uma comparação da abordagem darwiniana com outras abordagens,
ressaltando, de um lado, sua novidade própria e, de outro, colocando a
teoria darwiniana no ápice do referido progresso.
As cartas desse período fornecem um entendimento detalhado do método de
resolver problemas de Darwin e transpiram confiança na teoria, com a
crescente redução dos temores anteriores. As resenhas são mais
favoráveis e as arestas vão sendo aparadas. Darwin consegue publicar os
ensaios de Asa Gray na Inglaterra. Asa Gray é um dos seus mais
expressivos correspondentes do período. Assim lhe diz (carta de 26-27 de
fevereiro de 1861): “creio que seu panfleto prestará a mim e à seleção
natural um grande bem” (Correspondence, vol. 9, p. 39), ainda que Darwin
mesmo não esteja convencido da providência de que fala Gray.
Parte importante do trabalho de Darwin, revelado pelas cartas de 1861
será de natureza política: como estruturar interesses e influências de
modo a garantir e fortalecer o espaço à sua teoria. Organizou uma
cuidadosa lista de pessoas e instituições às quais enviar os ensaios de
Gray. Um número maior de especialistas começava a examinar com mais
cuidado as implicações da teoria. O apoio que sua metodologia encontrara
na filosofia da Stuart Mill, bem como o aval que obtivera de John
Herschel para sua teoria (excetuado o caso do homem), somava o suporte
de lideranças epistemológicas da época, garantindo à teoria sua
pretensão de “cientificidade”. Certamente, o apoio que mais entusiasmara
Darwin era o apoio de Henry Walter Bates, recém chegado à Inglaterra,
após 12 anos de investigações na Amazônia, anunciando que logo
publicaria material trazendo evidência empírica à teoria da seleção
natural. Opositores como Richard Owen estavam sendo batidos por
partidários como Huxley. Huxley pública e exacerbadamente apontou aos
erros de interpretação de Owen quanto a fatos anatômicos.
Cresce a aceitação da teoria darwiniana. A botânica continuou sendo um
dos maiores e frutuosos interesses de Darwin. Os projetos iniciados em
1860 por distração tornaram-se programas científicos de pesquisa que
renderiam muitos frutos à aceitação de sua teoria mais ampla. Todavia, o
tempo gasto com tais atividades não fizeram espaço para o estudo da
variação que lhe cabia realizar para dar continuidade ao grande projeto
da origem das espécies. Em 1862 persistem seus projetos botânicos, com a
publicação de dois papers e de um livro sobre polinização de orquídeas e
o incremento de seus experimentos que ele ou seus colaboradores
realizam, fartamente noticiados em suas cartas. A promoção de sua
teoria também cresce, seja pelos próprios trabalhos de Darwin, seja
pelas conferências de Huxley sobre o tema ou pelas explicações que nela
Bates encontra para fenômenos tais como o mimetismo. Em carta de 15 e 20
de novembro de 1862, Hooker comenta com Darwin:
aludem a você em não menos do que em 3 dos papers apresentados na
Linnean Society! – Não creio que você seja vaidoso, mas realmente penso
que você teria o direito de sê-lo (Correspondence, vol. 10, p.527)
A crescente divulgação e aceitação de sua teoria não significa, contudo,
superação das dificuldades. Um bom exemplo a esse respeito, testemunhado
em suas cartas, é a posição de Huxley que, embora advogando a favor da
teoria darwiniana, continua cobrando-lhe uma prova definitiva, uma
produção experimental de uma espécie nova “fisiológica”. Réplicas e
tréplicas ao argumento de cada um deles povoaram boa parte da
correspondência de Darwin nesse período. Em carta a Huxley de 18 de
dezembro de 1862, diz Darwin:
Você diz que a resposta a variedades quando cruzadas serem plenamente
estéreis é “absolutamente negativa”. Você quer dizer que Gärtner mentiu
... quando mostrou que esse era o caso com verbascum & com o milho ...
Kölreuter mente quando fala sobre as variedades de tabaco
(Correspondence, vol.10, p. 611)
A correspondência com Huxley foi uma das motivações para que Darwin
dedicasse especial atenção a seu trabalho experimental. Sua visão sobre
a questão da esterilidade foi afetada por e, ao mesmo, estimuladora de
seu trabalho sobre plantas dimórficas, que começara com o estudo da
prímula no ano anterior e a respeito do qual manteve significativa
correspondência com Hooker e com John Scott. Esse último, dotado de
habilidades experimentais e teóricas aplaudidas por Darwin e por Hooker,
fora por Darwin comissionado para realizar uma série de experimentos. Em
carta a Hooker de 12 de dezembro de 1862, diz que suas noções sobre
hibridismo foram se tornando bastante modificadas pelo seu trabalho
sobre dimorfismo, sentindo-se então fortemente inclinado a crer que a
esterilidade fosse uma qualidade selecionada para manter as espécies
incipientes distintas (Correspondence, vol.10, p. 598). Seus estudos
sobre dimorfismo envolveram também sua correspondência com Asa Gray. Os
resultados desse trabalho deram seus frutos em diferentes momentos que
se estenderam até 1864.
Seu livro sobre Orquídeas transformou-se em novo sucesso de vendas.
Darwin foi cuidadoso na organização da lista de botânicos na Inglaterra
e exterior que o receberiam. Esse sucesso foi importante para a Origem
das espécies porque foi a primeira exposição detalhada do poder da
seleção natural. Em carta a Hooker de 14 de março de 1862, diz:
Achei que o estudo das orquídeas foi eminentemente útil em mostrar-me
como quase todas as partes da flor são co-adaptadas para fertilização
por insetos e, conseqüentemente, o resultado da seleção natural
(Correspondence, vol. 10, p. 115)
Asa Gray (carta de 2-3 de julho de 1862), diz que o livro foi um
movimento nos flancos do inimigo (Correspondence, vol. 10, p. 292), uma
maneira de induzir os céticos a aceitarem a verdade da seleção natural
pela porta dos fundos.
Em que pese a crescente receptividade de suas idéias no
exterior, Darwin buscava atingir audiências ainda maiores. As cartas de
Claparède revelam a impopularidade das idéias de Darwin na França,
enquanto crescia sua aceitação na Alemanha. A tradução francesa estava
quase pronta e Claparède, exasperado com as rebeldias da tradutora,
Clemènce Royer, recomendava a Darwin que escolhesse um outro tradutor
para quando seu grande livro sobre as espécies estivesse pronto. Na
Alemnha, a tradução da Origem estava praticamente esgotada. Crescia sua
penetração na Alemanha, como nos mostram seus correspondentes. Entre os
estrangeiros, interessava-lhe contar com o apreço de De Candolle a seu
trabalho. Enviara também cópias de seu livro sobre Orquídeas a Naudin,
poi embora dispensasse os métodos e alegações de Naudin, como mostra –o
em cartas a Hooker, procurava contar com sua ajuda para entender
hibridização. Asa Gray continuava sendo seu grande apoiador nos Estados
Unidos, com quem Darwin, afora as matérias científicas, trocava
polêmicas cartas sobre a escravidão e a guerra americana. |
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VII. O programa continua. |
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As investigações e discussões de Darwin sobre
temas aparentemente bem estabelecidos na Origem não cessavam. A
propósito do trabalho de Bates, Hooker e Darwin terminaram o ano
engalfinhados na discussão sobre o papel das condições externas na
variação e produção das espécies. Hooker criticara Darwin por não
insistir o bastante sobre a incapacidade da seleção natural para
produzir variações. Darwin tornava-se cada vez mais interessado na
reação sensitiva das plantas. Também prosseguiam as discussões e as
coletas de evidência sobre o Período Glacial, com as recentes evidências
favoráveis das montanhas dos Cameroons (descoberta de plantas temperadas
a alturas tão baixas como 4.000 pés acima do nível do mar). Em carta a
Hooker de 9 de maio de 1862 (Correspondence, vol 10, p. 187, ele diz:
“Jurarei que o período glacial no mundo é tão verdadeiro quanto o
evangelho; então, deve ser verdadeiro”! E a descoberta do Archaeopteryx
engrossava as evidências favoráveis à teoria darwiniana, em que pese os
percalços de sua descrição, como será discutido em 1863.
Novas investigações também floresciam! Darwin começara a investigar as
reações do sistema nervoso dos animais a vários venenos, narcóticos
anestésicos e relatava que crescia a sua convicção de que a Drosera
deveria ter uma matéria difusa similar à matéria nervosa dos animais.
Relatava seus resultados em cartas a Fox e Hooker e pedia a este sua
opinião. Realizara mais experimentos com plantas sensitivas e
insetívoras, dizia ter mais prazer com esses experimentos do que com seu
trabalho sobre as espécies, mas teve que deixá-lo de lado para
concentrar-se, novamente, em seu livro sobra variação (que seria
publicado em 1868). Seus trabalhos estavam sendo apreciados pelos
botânicos a ponto de merecerem de Hooker - a quem Darwin considerava
como “melhor do que qualquer um no mundo” e a pessoa cuja opinião Darwin
mais valorizava (carta de 14 de outubro de 1862 - Correspondence, vol
10, p. 460) - o seguinte comentário: “você é fora de questão o melhor
observador e experimentador em Fisiologia que a Botânica já teve (carta
de 28 de junho de 1862 - Correspondence, vol 10, p. 275 ).
Sua precária saúde, se interferia com seu trabalho, também protegia-o de
compromissos mais desgastantes, como dos ataques em reuniões públicas
que lhe era desfechado pelo seu menos apreciado inimigo, Richard Owen,
como o declara em carta a Asa Gray de 9 de outubro de 1862
(Correspondence, vol.10, p. 331). Os estreitos laços entre seu mundo
familiar e afetivo e o de seu trabalho transparecem de suas cartas aos
filhos George e William. Mesmo à distância, continuavam observando,
desenhando plantas e calculando sementes – preciosas informações para
seu pai! |
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VIII. Preocupação com ressonâncias da teoria. |
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Em 1863, na segunda
metade, a correspondência e o volume do trabalho de Darwin decaíram
bastante. Sua saúde estava abalada. As cartas da primeira metade
gravitam em torno da questão da origem do homem. Revelam um Darwin
preocupado com as publicações de livros de dois amigos, Lyell (Antiquity
of Man) e Huxley (Evidence as to man’s place in nature) – como se
refletiriam em sua própria teoria? Darwin alegrou-se com as
similaridades apontadas por Huxley entre o cérebro do homem e dos
grandes macacos. Na mesma carta em que se congratulava com Huxley,
referia-se ao desapontamento causado pela excessiva cautela de Lyell em
expressar qualquer juízo sobre as espécies ou a origem do homem, a quem
Darwin também reprovaria em carta pessoal (carta a Huxley de 26 de
fevereiro de 1863 – Correspondence, vol 11, p. 180-181; carta a Lyell de
6 de março de 1863 – Correspondence, vol 11, p.207). Lyell defende-se
dizendo que, se fizesse afirmações mais fortes, muitos se rebelariam
contra elas e Asa Gray afirma que o livro de Lyell traria muitos à nova
maneira de pensar sobre as espécies, enquanto o livro de Huxley os
assustaria (carta de 20 de abril de 1863 – Correspondence, vol 11,
p.336) Em resumo, Darwin responde a Gray que a indecisão de Gray e de
Lyell a respeito da mudança das espécies por descendência o “desespera”.
(carta a Asa Gray de 11 de maio de 1863 (Correspondence, vol 11,
p.402-403)
As descobertas de fosséis apresentados como humanos (Moulin-Quignon)
deixou a sociedade vitoriana mais ansiosa sobre as origens do homem e
acendeu a atenção sobre os argumentos de Darwin sobre as espécies. As
discussões esquentam mais ainda com o descontentamento causado a Darwin,
Falconer e outros pela descrição feita por Owen de um dos achados méis
significativos para a teoria darwiniana, o do Archaeopteryx A descrição
omitira alguns elementos essenciais. Em sua correspondência com Falconer
a respeito, Darwin pensava que agora talvez uma importante lacuna havia
sido preenchida no registro fóssil (carta a Falconer, 5-6 de janeiro de
1863 - Correspondence, vol 11, p.11-12). Os ataques de Owen a Darwin
continuaram, bem como as réplicas. Muitos diziam respeito à linguagem
usada por Darwin em certas passagens da Origem, que soavam como
linguagem bíblica, e a críticas desse tipo as respostas de Darwin
serviram para esclarecer as posições de ambos, estabelecer claramente
sua posição e a de Lamarck sobre a transmutação (carta ao Athenaeum de
18 de abril de 1863 - Correspondence, vol 11, p.324-325), bem como para
pressionar Lyell a tornar público até onde estaria disposto a ir. Hooker
pediu a Darwin para não mais escrever ao Athenaeum, pois lhe desagradava
o modo como tal proceder trazia a ciência ao público (carta de hooker de
7 de maio de 1863 - Correspondence, vol 11, p.387).
Enquanto temia pelo efeito negativo junto ao público de tais disputas
sobre sua teoria, crescia sua aceitação em círculos científicos
influentes, não apenas nacionais mas estrangeiros, como a
correspondência o mostra. Apesar disso, Darwin teve negada sua
indicação para a Medalha Copley da Royal Society, que lhe será dada no
ano seguinte. Em seu lugar, ganhou-a Adam Sedwick, ao que Darwin
atribuiu a influência de Richard Owen! Mas, por certo, um dos votos que
lhe foram contra foi o de Edward Sabine, Presidente (carta de Sabine a
John Phillips de 12 de novembro de !863 - Correspondence, vol 11,
p.668-669).
Dentre as discussões retomadas, persiste a crítica de Huxley a Darwin,
pedindo “prova” para a emergência de uma nova espécie por seleção
natural, fornecendo um caso em que duas formas da mesma espécie de
animal ou planta, produzida por cruzamento seletivo, ou fossem incapazes
de cruzar ou dessem lugar a híbridos estéreis. Mas Darwin continuava
discordando de Huxley quanto a tomar a esterilidade como um bom teste
para espécies, com base no que Darwin conhecia da domesticação. E Darwin
relembrara Huxley dos trabalhos de Gärtner. O criticismo de Huxley
tivera, porém, um impacto positivo, renovando o ímpeto de Darwin a
continuar seu trabalho sobre plantas dimórficas. Em 1862 publicara o
artigo sobre Prímula e, em 1863, sobre o Linum. Multiplicavam-se e
refinavam-se os experimentos para mostrar experimentalmente se havia uma
“seleção para” a esterilidade, ou se, como dissera na Origem, a
esterilidade “incidia em outras diferenças”. Seus experimentos botânicos
estreitaram seus laços de trabalho com John Scott, também interessado em
hibridização. Quando, mais adiante, John Scott, frustrado com a sua
posição de jardineiro deseja uma melhor oportunidade para seu trabalho
experimental, Darwin intercedeu junto a Hooker para que Scott obtivesse
uma posição na Índia, tentando convencer a Hooker a auxiliá-lo, em uma
intensa correspondência.
Seu trabalho com orquídeas continuava, bem como o de fertilização por
polinização, e envolvia uma rede epistolar de troca de informações. Suas
observações botânicas contribuíram para seu entendimento sobre
cruzamentos, o que daria lugar a vários artigos mais tarde publicados,
bem como aos livros Forms of Flowers e Cross and self-fertilization,
publicados em 1870. Hooker, Asa Gray and Oliver continuam sendo seus
correspondentes preferenciais para assuntos de botânica. Em 1863, seu
interesse pelo movimento das plantas ganha um tratamento de estudo
sistemático, dando, de certo modo, seqüência a seu trabalho sobre as
reações sensitivas das plantas e energia à sua troca de correspondência.
De resto, Darwin continuou a contar com a preciosa ajuda de seus filhos.
Sua filha Henrietta lia e comentava os livros de Huxley e Lyell. E,
junto aos filhos, também colaborara em uma petiçãocontra o uso de
armadilhas de aço para prender animais e o sofrimento que lhes causavam.
Muito dos seus trabalhos com plantas se justapuseram ao seu grande
projeto do livro sobre variação, sobretudo quando escrevia o capítulo
sobre “cruzamento e esterilidade”. Mas o trabalho em seu todo continuava
inconcluso. As cartas de 1864 mostram um dos períodos mais acirrados de
sua luta contra a doença, a colaboração da sua família com seu trabalho
científico (em particular, de seu filho William Erasmus, que o ajudou
com observações e desenhos de formas dimórficas), e os esforços de
Darwin, como um amigo dedicado, tentando achar uma posição para John
Scott, um investigador promissor. 1864 é um período de muito trabalho
botânico, a depreender-se não só de suas cartas, mas do paper sobre
Lythrum, que seria apresentado à Linnaean Society de Londres em 1865.
Deu continuidade ao trabalho com orquídeas, e prosseguiu em seu trabalho
dobre as leis de variação em animais domésticos e cultivo de plantas,
que só viria a ser publicado em 1868.
As cartas de 1864 mostram como o trabalho botânico de Darwin enriqueceu
a evidência para a teoria da seleção natural. Entre outros, os
resultados sobre dimorfismo e graus de fertilidade entre variedades
quando cruzadas será absorvido na 4ª. edição da Origem de Espécies
(1866). Seu principal correspondente nesse período foi Hooker. Darwin o
considerou como o maior dos velhos amigos e a opinião com a qual lhe era
mais importante contar (carta a Hooker de 26 de novembro de 1864). Com
ele Darwin discutiu muitas das perguntas sobre plantas trepadeiras,
dimorfismo, hibridação, fertilidade, efeitos da época glacial, e até
mesmo critério por distinguir entre espécies e variedades. Com seus
vários "correspondentes especializados" Darwin formou uma rede muito
efetiva que provou ser extremamente útil ao seu trabalho botânico e
experimental. As cartas igualmente ilustram a penetração internacional
crescente da teoria de Darwin na correspondência de 1864 com Ernest
Haeckel, que entusiasticamente informou a influência de Darwin na
Alemanha, e com Benjamim Walsh que se acrescentou aos defensores de
Darwin na América. A correspondência de Darwin também permite uma
comparação entre a aceitação de Darwin na Alemanha e na França, bem como
entre partidários de "gerações mais jovens" e "mais velhas".
Também de suas cartas aprendemos outras facetas da ciência. Os meandros
envolvidos na questão da indicação de Darwin para a Medalha Copley
ensinam-nos sobre aspectos políticos na produção dos méritos da ciência.
Em 1864, esta medalha, o reconhecimento britânico mais alto para
realização científica, foi dada a Darwin depois de lhe ter sido negada
em anos anteriores. Olhando para a sua correspondência do período,
relatórios de reuniões e procedimentos, vemos o quanto de relações de
poder, prestígio de campos de pesquisa e instituições, gerações e
preconceitos, bem como o papel de circunstâncias ocasionais interferem
nas avaliações científicas. As bases para darem a Darwin o lisonjeiro
prêmio omitiram o reconhecimento público do trabalho internacionalmente
conhecido de Darwin na Origem de Espécies!
As cartas de 1865 revelam um amplo espectro de interesses e discussões.
Seu principal projeto era a redação de A variação de animais e plantas
sob domesticação. Suas condições de saúde atrasam o projeto. Não
obstante, ele continuou trocando informação com uma rede mundial de
correspondentes, cientistas e criadores, sobre vários assuntos: plantas
trepadeiras, fertilização (de orquídeas, em particular), reprodução,
variação, herança, distribuição geográfica, e classificação. A maioria
dessa informação foi trazida à 4ª. edição da Origem de Espécies (1866) e
à Variação de animais e plantas sob domesticação. para Variação (1868).
Em 1865, Darwin publicou seu elogiado paper sobre plantas trepadeiras. O
trabalho de Fritz Müller sobre plantas trepadeiras preenchia importante
hiato sobre o tema e Darwin editou a respeito excerto das cartas de
Müller. O trabalho de Müller sobre crustáceos foi citado na 4ª. edição
da Origem. W. Tegtmeier, o maior perito sobre aves e pombos, era o
correspondente de Darwin sobre tais assuntos.
As cartas de 1865 revelam outros fatos importantes. À guiza de exemplo,
Darwin então submeteu a primeira versão da hipótese de pangenesis a T.
Huxley. Com H. Acland Darwin discutiu a operação de "causas finais", um
assunto sobre o qual Darwin se declarava em uma "desalentadora confusão
mental”. Em uma carta anterior a C. Daubeny (07/16/1860), Darwin
informou ter mudado sua concepção da variação como a causa final de
reprodução sexual (Notebooks), para acentuar a sexualidade (Origem) como
meio para manter as formas constantes.
O respeito de Darwin para com os " rituais " de ciência passa pela
importância que ele dá à organização de uma lista de seus diplomas,
comentados em suas cartas.
Na correspondência do ano de 1865, encontramos também registrada uma
variedade de interpretações da teoria de Darwin, seja como uma teoria do
desenvolvimento progressivo, segundo W. Martin, ou como a visão de Lyell
da Seleção Natural harmonizando-a com Criação, até à adesão entusiástica
de homens como Kingsley, Müller, Häeckel, von Vogt, Asa Gray, B. Walsh,
e J. Shaw, enfatizando vários aspectos do grande poder explicativo da
teoria darwiniana. De acordo com a veia literária de Shaw, o trabalho de
Darwin provou que a idade do romance não pereceu, pois a verdade de
Darwin era realmente mais estranha que a ficção! |
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IX. Os novos projetos. |
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Em 1866, sua correspondência conta-nos muito de
sua vida intelectual, social e emocional. A última foi marcada pela
perda de duas irmãs, Emily Catherine Langton e Susan Darwin. A segunda
foi marcada por contribuições a instituições de caridade e pelo
engajamento em uma petição contra o governador da Jamaica. Mas meu
interesse aqui recai em sua vida intelectual. Sua saúde - como ele mesmo
o diz – esteve muito melhor pela maior parte do tempo durante 1866. Como
uma conseqüência, ele teve energia para empreender vários projetos,
ocupar-se de discussões muito complexas, e até mesmo participar de uma
recepção da Royal Society de Londres, para a alegria de seus amigos e
admiradores.
Inicialmente concentrado em terminar seu livro sobre Variação (enviado
ao editor em dezembro de 1866), Darwin aceitou o pedido do editor para
preparar uma 4ª. edição da Origem de Espécies, cuja extensa revisão o
manteve ocupado de março a maio. Tanto a 4ª. edição da Origem como o
seu livro sobre Variação incorporaram muito das discussões registradas
em suas cartas de 1866. Tópicos sobre distribuição geográfica, período
glacial, extensão continental, e meios ocasionais de transporte eram
polemizados por Darwin e seus bem conhecidos oponentes, como Agassiz,
mas também pelo seu grande amigo e partidário, Joseph Hooker. Para
Hooker, a teoria de Darwin sobre migração e meios de transporte não
estava razoavelmente fundamentada em evidência. Parte dos argumentos de
um contra o outro – registrados nas cartas - era uma reivindicação por
"argumentos justos"! E Darwin estava preocupado com as críticas que
Hooker poderia fazer-lhe na conferência que Hooker proferiria em agosto,
na British Association for the Advancement of Science, em Nottingham, a
convite de William Grove, sobre flora insular e a teoria de Darwin.
Contudo, Hooker apresentou uma solução salomônica: ambas as teorias,
extensão continental e transporte ocasional enfrentavam "obstáculos"
insuperáveis, embora o último resolvesse racionalmente muitos fenômenos
enigmáticos para as ilhas oceânicas.
A correspondência de 1866 revela sólidas evidências a favor da teoria de
Darwin relacionadas à variação sob domesticação, a formas, fertilização
e hibridização de plantas - a partir do trabalho de Tegtmeier com aves,
de R. Kaspary com fertilização, do trabalho botânico de Fritz Muller e
das observações e desenhos do filho de Darwin, William. Uma edição alemã
nova e cuidadosa da Origem estava sendo organizada. Graças a seguidores
leais como Ernest Haeckel, Asa Gray e Benjamim Walsh, a teoria de Darwin
foi crescentemente discutida internacionalmente. Correspondentes velhos
e novos, como J. T. Moggridge, perito em orquídeas, alegremente
forneceram a Darwin material enriquecedor para suas coleções de
evidências. As cartas de 1866 são particularmente instrutivas a respeito
de dois pontos teóricos principais. Ajudam a clarificar o conceito de
"seleção natural”, enquanto nos trazem as objeções de Alfred Wallace a
esse conceito e a resposta dada por Darwin, e a posição de Darwin sobre
religião, a partir de sua resposta às dúvidas de Mary E. Boole sobre a
compatibilidade ou não da ação da seleção natural e Deus - um episódio
breve, mas profundo.
A correspondência de 1867 mostra que Darwin, nesse período, intensificou
linhas de pesquisa resultaram em duas publicações importantes, A
descendência do homem e Seleção em relação ao sexo, e Expressão das
Emoções no Homem e Animais. Com o auxílio de seus colaboradores, Darwin
fez circular um questionário sobre expressão humana, o que o levou a
receber cartas de uma rede de correspondentes ainda mais ampla.
Convencido de que a descendência humana foi influenciada fortemente pela
seleção sexual, ele também começou a perguntar a seus correspondentes
por diferenças sexuais em animais e pássaros. Ao mesmo tempo, Darwin
estava trabalhando na revisão das provas gráficas de seu trabalho sobre
a Variação de Animais e Plantas sob domesticação e, apesar de sua
intensa atividade de investigação, quase semanalmente tratava com
tradutores franceses, alemães e russos. Publicado em 30 de janeiro de
1868, Variação de Animais e Plantas sob domesticação monopolizará boa
parte de sua correspondência no período. No mesmo dia de sua publicação,
mandou uma cópia a Fritz Müller pedindo sua opinião sobre a parte da
“Pangênesis”. Como declara em carta a Hooker de de fevereiro de 1868,
“pangênesis”, sua criança querida, o desgosta bastante, ainda que tenha
feito o melhor que podia.
No que concerne à teoria da Origem das Espécies, as discussões e
experimentos que se seguiram até a 5ª. edição (1869), estão, como no
caso das demais edições, retratadas em suas cartas e incorporadas em seu
texto. Quase todos os tópicos foram enriquecidos com novos resultados ou
referências a novos trabalhos de diversos investigadores. Segundo Darwin
(carta a Victor Carus de 4 de maiode 1869), ele foi levado a colocar um
pouco mais de peso na ação direta das condições externas de vida, a
pensar que o lapso de tempo medido por anos não é tão grande como muitos
geólogos pensam e a inferir que variações são ainda menos importantes
do que anteriormente pensara, quando comparadas com as diferenças
individuais. É a edição em que aparece, pela primeira vez, a expressão
“sobrevivência do mais apto”, usada por Herbert Spencer, a cujo
respeito, diz Darwin a J. Fiske, em carta de 8 de dezembro de 1872:
À exceção de alguns pontos especiais, nem mesmo entendo a doutrina geral
De H. Spencer: pois seu estilo é um muito difícil para mom (LL, vol.
III, p.193)
Crescem as discussões sobre o homem e as implicações da teoria darwinana
para a questão da origem do homem. A correspondência entre Darwin e
Wallace é então volumosa, sendo sobre o tópico a respeoto do qual
crescem suas divergências. |
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X. A última grande revisão. |
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A última grande revisão da Origem, que
corresponde à da 6ª. edição (1872) vem, como as demais, testemunhadas em
suas cartas. Talvez o episódio mais significativo a esse respeito seja a
inclusão, de acordo com Francis Darwin, de mais um capítulo na 6ª edição
da Origem, cuja preparação começou em junho de 1871. De julho a
setembro, Darwin ocupou-se com as objeções de Mivart, talvez as mais
duras que teve de enfrentar. Decidiu incluir um capítulo novo a seu mais
inteligente e injusto inimigo (Peckham, 1959, p.22), recolhendo as
objeções antes tratadas no capítulo IV e o material novo das objeções de
Mivart e os colocando num novo capítulo VI. A Origem passava a ter
quinze capítulos e perdia a palavra On em seu título. Em janeiro de 1872
a revisão do livro para sua 6ª. edição estava terminada. A importância
aí desempenhada pelas objeções de Mivart pode ser igualmente medida pela
correspondência de Darwin. Em uma carta a Wallace de 30 de janeiro de
1871 de janeiro, Darwin pede-lhe que leia a parte de Seleção Sexual em
Lepidóptera, onde Darwin expõe as visões de Wallace. E acrescenta:
Estou com receio a respeito do livro de Mivart, que há pouco li (mas não
com suficiente cuidado ) e sinto-me absolutamente certo de que ele
pretendeu ser justo (mas foi estimulado por fervor teológico); contudo,
não penso que ele tenha sido suficientemente justo… A parte que, penso
eu, terá maior influência, é aquela onde ele dá a série inteira de casos
similares ao do palato da baleia, sobre o qual nós não podemos explicar
os passos gradativos; mas tais casos não têm nenhum peso em minha mente
(Darwin, 1888, III vol., p. 135).
Antes que desdém, sua observação de que, para ele, tais objeções não têm
peso expressa a confiança que deposita nas estratégias explicativas que
tecem a sua teoria.
O livro de Mivart foi revisado por Chaunchey Wright (North
American Review, julho de 1871) e tal resenha foi enviada a Darwin, em
uma carta de 21 de junho de 1871, com o comentário:
O livro do Sr. Mivart (Genesis of Species), do qual este artigo é,
substancialmente, uma resenha, parece-me um pano-de-fundo muito bom para
apresentar as considerações que tentei estabelecer no artigo em defesa e
ilustração da Teoria de Seleção Natural. Meu propósito especial foi
contribuir para a teoria, colocando-a em suas relações adequadas para
com as indagações filosóficas em geral. (Darwin, 1888, III vol. p. 143)
Darwin imediatamente submeteu as provas recebidas do artigo de Wright ao senso crítico de Wallace (carta de Darwin a Wallace, de 9 de
julho de 1871), considerando que o livro de Mivart tivera um grande
efeito contra a seleção natural e que, se Wallace considerasse bom o
artigo de Wright, Darwin pediria ao autor licença para publicá-lo em
panfleto, com baixo custo, para sua divulgação. O que, de fato, ocorreu.
Na sua carta a Wallace, reporta-se com a mágoa de ter sido injustiçado
pelo procedimento de Mivart, por suas citações incompletas de Darwin,
alterando o sentido de suas palavras e mesmo pela omissão de palavras.
Com o tom de um desabafo, diz que nunca antes de estudar Mivart
sentira-se tão convencido, em geral, da verdade das visões defendidas em
sua Origem das Espécies (LL, vol.III, p. 144-145). O artigo de Wright
foi divulgado na Inglaterra, com a interferência de Darwin e suas
respostas às objeções de Mivart proporcionaram uma das mais hábeis
lições sobre como refutar objeções.
Para finalizar, lembro as palavras de Jay Gould, segundo as quais as
cartas ocupam uma posição intermediária entre as obras publicadas e os
diários e anotações particulares (Burkhardt, 2009, p.12). Em uma
linguagem bem contemporânea, poderíamos dizer que as cartas, pelo menos
no caso de Darwin, proporcionam-nos aquele frescor da ciência “in the
making”. Sua coleção de cartas informa-nos tanto sobre seu modo de
proceder relacionado à pesquisa científica quanto sobre o processo de
estruturação de sua teoria. Apenas em três momentos as cartas silenciam
sobre essa estruturação: exatamente quando ela ganha seus decisivos
pilares. É quase silenciosa sua referência a Galapagos nas cartas e
nelas também não encontramos o correspondente ao momento decisivo em que
se constituíram seus Notebooks de 1836 a 1844 e, em particular, àquele
aberto em 1837, com ao alicerces da teoria que ganharia sua primeira
versão organizada em texto no também velado Ensaio de 1842. Esse
silêncio, contudo, tornar-se-á também revelador de seu trabalho: da
reflexiva instrospecção de seu vasto empreendimento teórico.
Obrigada, Ana Luisa, por me ter apontado esta caminho! |
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Anna Carolina K. P. Regner
(Brasil)
Professora de Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS),
em Porto Alegre |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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