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Podemos identificar duas perspectivas contraditórias face àquilo que
surge como diferente. Por um lado, o pensamento dominante na civilização
ocidental rejeita o diferente. De certo modo, esta rejeição está ligada
à cultura de morte. Por outro lado, através de correntes de pensamento
não-dominantes, surge o elogio da vida e da diferença.
Vida como diferença: a vida diferencia, seja a que nível for, da célula,
ao órgão, ao ser vivo e ao ecosistema. O elogio da morte representa a
tentativa de repetição, de fechamento e ainda de controlo, de aposta na
capacidade de previsão - e de redução da interpretação da realidade ao
modelo predefinido.
A relação entre as correntes de pensamento dominantes e não-dominantes
faz-se de forma que, segundo a perspectiva dominante, só ela mesma é
válida, de forma exclusivisista. O que é dominante, por si só, é
invasivo, pervasivo e persuasivo, apresentando-se como único detentor da
verdade, legítimo e genuíno, surgindo como óbvio, necessário e natural.
O dominante é monolítico, imperialista e totalitário.
Tal como para Foucault o exercício de poder dá-se num jogo entre quem
exerce o poder e sobre quem esse poder é exercido, sendo ambas as partes
essenciais para que o poder se concretise, também o domínio do
pensamento “mainstream” surge num jogo subtil de aparente não
reconhecimento de qualquer que seja a alternativa, mas em que essas
mesmas alternativas vão alimentando subversivamente o jogo.
No pensamento dominante temos a homogeneidade – nas correntes não
dominantes temos a diversidade, a heterogeneidade, a fragmentação e a
dispersão. Em termos históricos, em relação a cada época, é possível
identificarem-se diferentes correntes e verificar-se o jogo de mútuas
influências. Seja dum lado, seja do outro, quer o pensamente dominante,
quer o não-dominante têm de permanentemente actualizar-se, afirmando-se
a reafirmando-se na sua diferença: o pensamento dominante enraizando
mais profundamente os seus pressupostos e o não-dominante trazendo novos
pontos de vista que questionam, procuram destruir ou desestabilizar as
certezas assumidas pelos pressupostos do pensamento dominante.
Desde a Antiguidade Grega que surge a necessidade de prever, de
antecipar, de controlar, pois o desconhecido era assumido como negativo,
à partida. Em contraponto com esta postura, surgem alternativas
dispersas, já presentes nos pre-socráticos, em que o desconhecido é
entendido como dinamismo, como vida, como movimento, e é assumido como
bom e como desejável. Face à postura dominante surge quer a filosofia,
quer a medicina, como respostas intencionais de formulação de um
diagnótico ou de uma teoria, de elaboração de um tratamento, intervenção
ou resposta: a realidade é deficitária, tem falhas, e é pela intervenção
humana que essas falhas podem ser corrigidas. Alternativamente: a
realidade manifesta-se de formas infinitas e são necessários abertura e
acolhimento para que o máximo de potencialidades de cada situação
concreta, hic et nunc, se concretize. O sucesso e a eficácia da
intervenção humana passa não pela aposta em planos intelectuais e
abstractos, redutores da realidade, mas pela capacidade de aderir e de
se deixar afectar pelo dinamismo da própria realidade.
Certas áreas filosofico-científicas salientaram estas tensões, quer de
forma implícita, as ciências de gestão, quer de forma explícita, a
filosofia da ciência. Em gestão, o paradigma dominante, é ainda o mesmo
de há cem anos, com Taylor e Fayol, os pais da gestão científica,
engenheiros fascinados com o potencial da especialização de funções, da
separação de tarefas e da programação exaustiva do processo produtivo.
Esta perspectiva, de “comando e controlo” é ainda a dominante uma vez
que é a que melhor responde a situações bem conhecidas e com uma
evolução estável e previsível.
Por outro lado, as condições de turbulência, de imprevisibilidade e de
complexidade cada vez mais intensas pressionam no sentido de rejeição
deste paradigma dominante e de desenvolvimento de perspectivas
alternativas. A passagem de uma sociedade industrial para pos-industrial,
conceito este desenvolvido a partir do pos-guerra, surge como exemplo
desta transição e mudança de mentalidades. O trabalho colaborativo, a
liderança partilhada e a comunicação horizontal são exemplos de novas
abordagens de gestão que estimulam a criatividade e a inovação.
Esta tensão entre o enfoque na previsão e no planeamento através de
modelos abstractos versus a relação com a vida concreta, com a
experiência e o estímulo da novidade, dá-se em termos individuais,
organizacionais e societais. No seio de cada situação específica surge a
necessidade de contrabalançar ambas as forças. Não se trata de rejeitar
uma perspectiva em favor da outra mas sim de assumir que é o lado
dinâmico, intuitivo e criativo que antecede e que determina o que é
formal e procedimental.
Em relação à filosofia da ciência, esta vai desconstruir os pressupostos
de base de cada ciência, salientanto explicitamente a forma como cada
nova teoria destrona a anterior. Kuhn, Popper e Feyerabend salientam a
importância da historicidade, da narratividade, da interacção social e
da subjectividade na formulação científica. Em ciência, podemos
considerar o processo de criação científica, extremamente criativo e
disruptivo, tornando-se subversivo face ao conhecimento já instalado, e
o processo de aplicação da ciência, procedimental, repetitivo e fechado,
imune a críticas. A técnica, como ciência aplicada, pode ser
interpretada como neutra face às pressões sociais ou à influência do
meio, tal como o conhecimento científico, ou, alternativamente, ambos,
técnica e ciência, podem ser interpretados como fruto de uma cultura, de
uma mentalidade e, assim, não neutros e não imunes ao contexto social e
histórico.
Na leitura de eventos históricos é possível salientar os processos de
continuidade ou, inversamente, salientar a rotura e a mudança. O enfoque
nos processos de transição tem a vantagem de salientar aquilo que era
assumido como um dado, em termos de pensamento dominante, e que, a
partir de certa altura, é colocado em causa e é substituído por outra
interpretação ou perspectiva. Alternativamente, o enfoque na
continuidade permite identificar várias fases da génese e do
desenvolvimento de novas realidades, buscando elementos que já estavam
presentes no passado e que, de certa forma, antecipam e profetizam
aquilo que irá emergir no futuro. Esta leitura é fértil em relação ao
desenvolvimento de géneros e de estilos artísticos, em relação a
diferentes tipos de arte, as quais se influenciam mutuamente, da
arquitectura à música. Como afirma o arquitecto, músico e encenador José
Wallenstein, “a música é uma arquitectura”.
Em semiótica, na teoria do signo de Saussure, é pela diferença que se
criam novos significados. Um sinal, som ou imagem – o “significante” –
refere-se a um conceito – o “significado” – e é pela diferença entre
sinais que chegamos a significados diferentes. Para Saussure a relação
entre significante e significado é arbitrária, isto é, é determinada no
exterior da relação. São as convenções sociais e o uso da linguagem que
criam o processo de significação, de atribuição de sentido e a
possibilidade de interpretação dos sinais, dos “significantes”. O
sentido surge como a relação entre diferentes signos linguísticos. A
diferença aqui surge como fundamental. A diferença constitui-se como
elemento primordial do processo de interpretação.
Para Derrida os conceitos de “differance” e de desconstrução estão no
centro dos processos de criação de sentido e de interpretação da
realidade, processos sempre incompletos e provisórios. Segundo Derrida,
“nada existe fora do texto” – texto interpretado como contexto,
incluindo a situação concreta do uso da palavra.
Na relação connosco próprios, no jogo de espelhos interior, surge como
que um mecanismo através do qual descobrimos o outro, o diferente, a
alteridade, em nós mesmos. O novo totalmente novo é-nos inacessível, não
o podemos reconhecer. É por aproximações sucessivas que todo o
conhecimento se desenrola. Em ciência buscamos o estabelecimento de
relações e de relações entre relações. Mas para além da ligação, da
relação, é importante a transformação como processo de desenvolvimento,
de emergência e de manifestação do máximo potencial presente em cada
situação concreta. Esta transformação engloba e expressa o dinamismo da
própria realidade, sempre em movimento.
Apesar de podermos conceber a realidade como movimento, apenas a
apreendemos parcialmente, como que num filme de má qualidade em que se
apercebem as fotografias em sequência. Avançamos de ponto fixo em ponto
fixo, na ilusão de que cada ponto fixo é a realidade. Contudo o
movimento é contínuo, não existe passado, presente e futuro mas sim
presente-passado, presente-presente e presente-futuro, como nos diz
Agostinho. A questão fundamental é a de que criamos a ilusão de que é
pela cultura que avançamos, como indivíduos ou como civilização, mas é a
própria cultura que representa o que nos agarra ao que é rígido e
falsamente fixo. Daí a necessidade de ultrapassar a própria cultura.
Este processo ilustra-se com a facilidade com que aderimos a certas
ideias e concepções de nós mesmos, ou da realidade externa, e a extrema
dificuldade em reconhecer as mudanças, as diferenças, a evolução e a
transformação dessa mesma realidade, interior ou exterior.
Como aderir, acolher e exercitar esta abertura? Como exercer este
potencial? Como participar activamente no dinamismo da realidade? Para
Peirce, o âmago do conhecimento científico era alimentado pelo diálogo
dentro da comunidade científica. Seria a discussão entre pares o melhor
critério de validação e de melhoria do processo de criação científica.
Também na vida é pela comunidade, pelas diferentes comunidades de vida,
que avançamos no sentido de amplificação, de aprofundamento e de
intensificação da exploração do máximo significado e do pleno potencial
da realidade. Comunidade implica linguagem, uso da palavra e prática
social. Podemos focar aspectos concretos ligados ao trabalho solitário,
à investigação ou à reflexão isolada mas cada uma dessas actividades
subentende a existência de uma comunidade específica que a suporta.
Comunidade que envolve rostos, corpos, rotinas, ritos e gestos
concretos.
Cada comunidade, como cada instituição, tende a abafar o seu próprio
dinamismo, arrisca-se a subjugar o seu carisma àquilo que lhe é
secundário, o rito tende a prevalecer em desfavor da abertura e da
transformação. Assim, as próprias comunidades são palco de tensões que
apenas se resolvem através dos mesmos processos comuns ao contexto de
produção científica ou de evolução de uma civilização, isto é, pela
acção e pela linguagem, acção e linguagem como processos primordiais de
construção de sentido. O elogio da diferença – alteridade, dinamismo e
transformação – é a adesão a esta atitude ou filosofia de vida,
aprendida e partilhada em comunidade, entre pares. É o confronto com o
novo que nos renova.
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