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Sem necessidade de grandes inovações tecnológicas, o
negócio manteve-se próspero por alguns anos, com aplicação fiel, ainda
que com algumas pequenas variações de circunstância, da fórmula clássica
da porcelana. Sem aprofundar a sua história, ele sabia que essa fórmula
fora desenvolvida pelos chineses ao longo de séculos e séculos, desde o
longínquo século VII da era cristã. E sabia também que o Ocidente teve
grandes dificuldades em ter acesso a ela. Lera algures que embora Marco
Pólo (1254-1324), ainda no século XIII, após as suas viagens pelas
terras do Oriente tenha sido quem primeiro falou, no Ocidente, deste
tipo de faiança, só depois de meados do século XIV se deram as primeiras
importações comerciais de porcelana da China para a Europa. Só com a
fórmula um pouco grosseira e nem sempre muito clara que os Dominicanos
conseguiram trazer de lá para cá, o seu modo de elaboração terá acabado
por ser reinventado na Europa de Reis e Aristocratas seduzidos pela sua
finura e beleza e ávidos da sua preciosidade.
Produto cerâmico tradicionalmente branco, compacto,
duro e translúcido, na sua produção, com mais ou menos segredos, todos
usavam uma massa muito elaborada composta por caulino, feldspato e
quartzo. Com pigmentos variados obtidos de óxidos metálicos calcinados,
essa massa tinha de passar por um processo de cozedura em que eram
determinantes diferentes graus de calor de aplicação selectiva. Aqui
entravam em acção as práticas dos laboratórios dos alquimistas. Nos
fornos, como no almofariz de um Alquimista, da mistura de verão e
inverno, com vidro moído, grãos de areia, sílica e mica esmigalhada,
exposta a diferentes graus de fogo, concretizações de diferenças de um
mesmo Sol incidente, o biscoito e o vidrado finais apresentariam
diferentes fascínios de um mesmo tesouro escondido na realidade do
material de partida.
Estes são os fascínios das mais célebres porcelanas,
a da China, a saxónica de Böttger, feita com o caulino das minas de
Kolditz à mistura com alabastro calcinado e feldspato, a das fábricas de
Capodimonte criadas ao tempo de Carlos VII de Bourbon, e a de Sèvres,
para citar apenas algumas das mais famosas.
Mas, na fronteira da ciência, da filosofia e da
crença religiosa, a fórmula analítica e rudemente material de qualquer
destas porcelanas esfuma-se facilmente em diferentes realidades.
Seduzido pela alquimia, dificilmente o obreiro da porcelana conseguirá
escapar ao fascínio duma porcelana que supere a mais macia e fina das
cerâmicas, branca, compacta, ligeira e translúcida. Para além da
porcelana técnica, a porcelana de alto fogo, uma porcelana mais leve que
a porcelana do melhor dos caulinos, pelo nosso imaginário passará sempre
uma porcelana cada vez mais fina, uma porcelana capaz de voar, uma
porcelana imponderável e etérea, a porcelana dos fornos quiméricos. Qual
a sua fórmula?
Conhecedor e familiarizado com a fórmula da porcelana
fina que aplicava diariamente na produção que saía dos fornos da pequena
indústria que mantinha e de que dependia agora a sua subsistência e a
subsistência do seu grupo familiar e empresarial, ele sabia quase tudo
sobre a cerâmica em Portugal; conhecia a primeira peça de porcelana que
terá sido manufacturada no nosso País, em 1773, pelo tenente-coronel
Bartolomeu da Costa com uma legenda muito sugestiva, alusiva à
descoberta do caulim; conhecia e admirava a louça de Vandelles, essa
louça fina da indústria de cerâmica criada e desenvolvida pelo Professor
Domingos Vandelli, contratado pelo Marquês de Pombal para ser o primeiro
Professor de História Natural e de Química na Universidade de Coimbra
reformada em 1772; e sabia distingui-la bem da louça de Brioso e da
faiança da fábrica do Rato, e também da faiança produzida na Real
Fábrica de Porcelana, Vidro e Processos Chimicos da Vista Alegre. Tudo
isso ele sabia. Mas, quanto mais familiarizado se sentia com a fórmula
da porcelana que produzia em seus fornos, mais sonhava com a fórmula
dessa outra porcelana capaz de voar, a porcelana etérea.
Visionário e aprendiz de feiticeiro, ele acreditava
poder descobri-la dentro de sua própria casa, porque acreditava que o
seu segredo se escondia no próprio sangue que lhe corria nas veias, o
sangue que herdara de seu avô com a quinta, o mesmo sangue que corria
nas veias de seu irmão e de seu filho e todos os dias se misturava com o
sangue de sua esposa, cuja carne se tornara na sua própria. Acreditava
até que seu próprio avô, mesmo sem nunca ter vivido da cerâmica, nem
muito menos da porcelana cujos caminhos ele se sentiu forçado a
calcorrear quando acossado pelo mísero rendimento da quinta, a
transportara sempre consigo, contagiado pelos vapores que respirava,
saídos dessa terra em que nascera e sempre vivera, uma terra deles
impregnada, qual vento prenhe dos pólenes e sementes que em seu seio
transporta.
Nesta sua crença, Blanco Pires estava agora
absolutamente convencido que estava nas suas mãos descobri-la. Fazê-lo,
era a missão da sua vida. Apostado na descoberta, afoito, delirante e
destemido, lançou mãos à obra.
Minuciosamente rebuscados todos os recantos da casa,
reviu vagarosamente todos os papeis da família dispersos por todas as
estantes, o cofre em miniatura, as gavetas de cómoda, os seus baús, os
da mulher e os do irmão que com eles vivia, os livros de escrituração. E
tudo juntou na sala principal da casa, com toda a família gravemente
reunida à volta do berço de seu próprio filho, ainda tenro rebento sobre
quem incidiam os olhares encantados de todos. Numa folha de papel
vegetal com a planta da casa, tenta decifrar os traços e as palavras
esfumados que o tempo já quase apagou , mas não consegue saber ao certo
o que significam. Por sua conta e risco, aposta no significado de tudo
quanto cai sob seus olhos. Para ele, tudo tem de ter um significado.
Para uma taça de madeira e cristal, com um friso de
corpos nus junto do rebordo, a taça de NantEos por si magicada e a seu
gosto reconstituída, espreme o leite viscoso de duas gisandras colhidas
nas dunas, em que copulam os três reinos da Natureza, o animal, o
vegetal e o mineral. Junta-lhe areia, cinza e sal, lenha carbonizada na
lareira da casa e barro autêntico tirado do estrato geológico que separa
dunas, ostras e fósseis de árvores de há milénios de anos. Tudo posto
sobre um fogo intenso, espera, em transe de contemplação mística, sem
permitir que a sua esperança se confunda com a ilusão. E espera até que
ali se formem e cintilem grãos de brilho intenso, num processo de
indiferenciação de colorido e matéria.
Entronada como sacerdotisa, a esposa parte em procura
do cordeiro que é preciso imolar. No rito de imolação, os grãos
luminosos formados na taça de madeira e cristal são agora jóias que a
sacerdotisa deixa rolar sobre seu corpo, onde brilham como
águas-marinhas, topázios, ametistas e diamantes. Ao olhá-las o aprendiz
de feiticeiro dificilmente consegue manter os olhos abertos, mas uma
serenidade exterior o inunda de alto a baixo. Sente-se a levitar como
que suspenso no manto etéreo onde só os espíritos podem habitar, o halo
santo da casa em que habita.
Junto dele, o irmão é o obreiro diligente que executa
todas as operações. Com uma uma máquina fotográfica em punho, tenta
registar tudo quanto ali se passa: a coagulação pelo frio do sangue do
cordeiro imolado, o crescimento dos grãos que rolados sobre o corpo da
sacerdotisa se tornam jóias, o aprendiz de feiticeiro a levitar,
possuído pela leveza da fórmula da porcelana etérea que lhe dança na
cabeça. Quando procura na Máquina fotográfica os registos, nada
encontra. Tudo a que assistira não era material. Real ou não, não podia
ser fotografado, nem sequer no registo invertido da mais vulgar das
máquinas fotográficas.
Impõe-se não desistir. Ali junto, no berço, de olhos
arregalados, está o futuro. Mesmo sem nada entender do que se passa, a
ele caberá receber em suas mãos a missão que o pai não conseguiu
cumprir. A Obra é para ser continuada. A Fórmula da porcelana etérea que
o pai sentiu dançar na sua cabeça, mas que se volatilizou quando a quis
concretizar, à sua morte dançará na cabeça do filho. Por quantas
gerações? Por tantas quantas sejam capazes de não deixar morrer a
esperança. |