REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2011 | Número especial
Homenagem a Ana Luísa Janeira

 

Ana Luísa Janeira
Foto de José M. Rodrigues

 

A.M. AMORIM DA COSTA

 

Lucubrações com Carlos de Oliveira

 A Fórmula da Porcelana

DIREÇÃO  
Maria Estela Guedes  
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Ali termina a terra; ali o mar começa. Ali o céu toca a Água, matriz original da vida, e cai sobre a terra em que o mar se enrola. Finisterra, ali é também o finiscœlum [1].

De seu nome Blanco Pires, ele nascera ali, ali vivera a sua infância e ali se tornara também ele chefe de família a cujo sustento e bem-estar procurava providenciar com seu trabalho. Com o progresso tecnológico dos novos tempos a passar-lhe ao lado, a quinta que fora de seu avô e herdara de seu pai, já não bastava à sobrevivência da família. Impunha-se procurar novas fontes de rendimento.

A princípio, pareceu-lhe que a salvação da quinta seria a cal. Na região abundavam já alguns fornos de cal; a instalação de mais um parecia-lhe tarefa fácil e o processo pouco dispendioso e suficientemente rentável para substituir o declínio que afectava a sua cada vez mais fraca produção agrícola. A matéria-prima, o barro, era ali abundante, relativamente bom e de fácil extracção. E a mão-de-obra, e outras alternativas de oferta, também baratas. Mãos à obra, pois. E da cal, em breve passou à cerâmica. Primeiro, a comum telha e os adobos. Depois, as primeiras peças de cerâmica.

 
 
 
   
   
   
   
   
   
   
   
   
 
 

Sem necessidade de grandes inovações tecnológicas, o negócio manteve-se próspero por alguns anos, com aplicação fiel, ainda que com algumas pequenas variações de circunstância, da fórmula clássica da porcelana. Sem aprofundar a sua história, ele sabia  que essa fórmula fora desenvolvida pelos chineses ao longo de séculos e séculos, desde o longínquo século VII da era cristã. E sabia também que o Ocidente teve grandes dificuldades em ter acesso a ela. Lera algures que embora Marco Pólo (1254-1324), ainda no século XIII, após as suas viagens pelas terras do Oriente tenha sido quem primeiro falou, no Ocidente, deste tipo de faiança, só depois de meados do século XIV se deram as primeiras importações comerciais de porcelana da China para a Europa. Só com a fórmula um pouco grosseira e nem sempre muito clara que os Dominicanos conseguiram trazer de lá para cá, o seu modo de elaboração terá acabado por ser reinventado na Europa de Reis e Aristocratas seduzidos pela sua finura e beleza e ávidos da sua preciosidade.

Produto cerâmico tradicionalmente branco, compacto, duro e translúcido, na sua produção, com mais ou menos segredos, todos usavam uma massa muito elaborada composta por caulino, feldspato e quartzo. Com pigmentos variados obtidos de óxidos metálicos calcinados, essa massa tinha de passar por um processo de cozedura em que eram determinantes diferentes graus de calor de aplicação selectiva. Aqui entravam em acção as práticas dos laboratórios dos alquimistas. Nos fornos, como no almofariz de um Alquimista, da mistura de verão e inverno, com vidro moído, grãos de areia, sílica e mica esmigalhada, exposta a diferentes graus de fogo, concretizações de diferenças de um mesmo Sol incidente, o biscoito e o vidrado finais apresentariam diferentes fascínios de um mesmo tesouro escondido na realidade do material de partida.

Estes são os fascínios das mais célebres porcelanas, a da China, a saxónica de Böttger, feita com o caulino das minas de Kolditz à mistura com alabastro calcinado e feldspato, a das fábricas de Capodimonte criadas ao tempo de Carlos VII de Bourbon, e a de Sèvres, para citar apenas algumas das mais famosas.

Mas, na fronteira da ciência, da filosofia e da crença religiosa, a fórmula analítica e rudemente material de qualquer destas porcelanas esfuma-se facilmente em diferentes realidades. Seduzido pela alquimia, dificilmente o obreiro da porcelana conseguirá escapar ao fascínio duma porcelana que supere a mais macia e fina das cerâmicas, branca, compacta, ligeira e translúcida. Para além da porcelana técnica, a porcelana de alto fogo, uma porcelana mais leve que a porcelana do melhor dos caulinos, pelo nosso imaginário passará sempre uma porcelana cada vez mais fina, uma porcelana capaz de voar, uma porcelana imponderável e etérea, a porcelana dos fornos quiméricos. Qual a sua fórmula?

Conhecedor e familiarizado com a fórmula da porcelana fina que aplicava diariamente na produção que saía dos fornos da pequena indústria que mantinha e de que dependia agora a sua subsistência e a subsistência do seu grupo familiar e empresarial, ele sabia quase tudo sobre a cerâmica em Portugal; conhecia a primeira peça de porcelana que terá sido manufacturada no nosso País, em 1773, pelo tenente-coronel Bartolomeu da Costa com uma legenda muito sugestiva, alusiva à descoberta do caulim; conhecia e admirava a louça de Vandelles, essa louça fina da indústria de cerâmica criada e desenvolvida pelo Professor Domingos Vandelli, contratado pelo Marquês de Pombal para ser o primeiro Professor de História Natural e de Química na Universidade de Coimbra reformada em 1772; e sabia distingui-la bem da louça de Brioso e da faiança da fábrica do Rato, e também da faiança produzida na Real Fábrica de Porcelana, Vidro e Processos Chimicos da Vista Alegre. Tudo isso ele sabia. Mas, quanto mais familiarizado se sentia com a fórmula da porcelana que produzia em seus fornos, mais sonhava com a fórmula dessa outra porcelana capaz de voar, a porcelana etérea.

Visionário e aprendiz de feiticeiro, ele acreditava poder descobri-la dentro de sua própria casa, porque acreditava que o seu segredo se escondia no próprio sangue que lhe corria nas veias, o sangue que herdara de seu avô com a quinta, o mesmo sangue que corria nas veias de seu irmão e de seu filho e todos os dias se misturava com o sangue de sua esposa, cuja carne se tornara na sua própria. Acreditava até que seu próprio avô, mesmo sem nunca ter vivido da cerâmica, nem muito menos da porcelana cujos caminhos ele se sentiu forçado a calcorrear quando acossado pelo mísero rendimento da quinta, a transportara sempre consigo, contagiado pelos vapores que respirava, saídos dessa terra em que nascera e sempre vivera, uma terra deles impregnada, qual vento prenhe dos pólenes e sementes que em seu seio transporta.

Nesta sua crença, Blanco Pires estava agora absolutamente convencido que estava nas suas mãos descobri-la. Fazê-lo, era a missão da sua vida. Apostado na descoberta, afoito, delirante e destemido, lançou mãos à obra.

Minuciosamente rebuscados todos os recantos da casa, reviu vagarosamente todos os papeis da família dispersos por todas as estantes, o cofre em miniatura, as gavetas de cómoda, os seus baús, os da mulher e os do irmão que com eles vivia, os livros de escrituração. E tudo juntou na sala principal da casa, com toda a família gravemente reunida à volta do berço de seu próprio filho, ainda tenro rebento sobre quem incidiam os olhares encantados de todos. Numa folha de papel vegetal com a planta da casa, tenta decifrar os traços e as palavras esfumados que o tempo já quase apagou , mas não consegue saber ao certo o que significam. Por sua conta e risco, aposta no significado de tudo quanto cai sob seus olhos. Para ele, tudo tem de ter um significado.

Para uma taça de madeira e cristal, com um friso de corpos nus junto do rebordo, a taça de NantEos por si magicada e a seu gosto reconstituída, espreme o leite viscoso de duas gisandras colhidas nas dunas, em que copulam os três reinos da Natureza, o animal, o vegetal e o mineral. Junta-lhe areia, cinza e sal, lenha carbonizada na lareira da casa e barro autêntico tirado do estrato geológico que separa dunas, ostras e fósseis de árvores de há milénios de anos. Tudo posto sobre um fogo intenso, espera, em transe de contemplação mística, sem permitir que a sua esperança se confunda com a ilusão. E espera até que ali se formem e cintilem grãos de brilho intenso, num processo de indiferenciação de colorido e matéria.

Entronada como sacerdotisa, a esposa parte em procura do cordeiro que é preciso imolar. No rito de imolação, os grãos luminosos formados na taça de madeira e cristal são agora jóias que a sacerdotisa deixa rolar sobre seu corpo, onde brilham como águas-marinhas, topázios, ametistas e diamantes. Ao olhá-las o aprendiz de feiticeiro dificilmente consegue manter os olhos abertos, mas uma serenidade exterior o inunda de alto a baixo. Sente-se a levitar como que suspenso no manto etéreo onde só os espíritos podem habitar, o halo santo da casa em que habita.

Junto dele, o irmão é o obreiro diligente que executa todas as operações. Com uma uma máquina fotográfica em punho, tenta registar tudo quanto ali se passa: a coagulação pelo frio do sangue do cordeiro imolado, o crescimento dos grãos que rolados sobre o corpo da sacerdotisa se tornam jóias, o aprendiz de feiticeiro a levitar, possuído pela leveza da fórmula da porcelana etérea que lhe dança na cabeça. Quando procura na Máquina fotográfica os registos, nada encontra. Tudo a que assistira não era material. Real ou não, não podia ser fotografado, nem sequer no registo invertido da mais vulgar das máquinas fotográficas.  

Impõe-se não desistir. Ali junto, no berço, de olhos arregalados, está o futuro. Mesmo sem nada entender do que se passa, a ele caberá receber em suas mãos a missão que o pai não conseguiu cumprir. A Obra é para ser continuada. A Fórmula da porcelana etérea que o pai sentiu dançar na sua cabeça, mas que se volatilizou quando a quis concretizar, à sua morte dançará na cabeça do filho. Por quantas gerações? Por tantas quantas sejam capazes de não deixar morrer a esperança.

 

 

[1].- Finisterra, Paisagem e Povoamento in Obras de Carlos de Oliveira, Lisboa, Ed.Caminho, 1992, pp.1005-1153.

 

 

 

A.M. Amorim da Costa (Portugal)
Dept. de Química, Universidade de Coimbra

 

© Maria Estela Guedes
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